O filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre disse, em uma peça de teatro, que "o inferno são os outros". Essa premissa, dita pelo maior expoente do existencialismo -corrente filosófica que reflete sobre o sentido que o homem dá à própria vida-, pode ser encaixada perfeitamente ao ambiente hostil retratado em "Inferno - Um Interlúdio Expressionista".
Inspirado no texto "Not About Nightingales", escrito por Tennessee Williams quando tinha 27 anos, e encenado dentro do projeto "Homens à Deriva", o espetáculo traça um paralelo entre os anos 30 e o período atual, dando pistas de que os homens de hoje ou não evoluíram em nada ou caminham a passos largos para um retrocesso difícil de ser concertado.
Em um presídio de 1937, várias histórias se entrelaçam. A fragilidade humana é o epicentro da trama e uma espécie de metáfora ao sistema prisional. É nesse caos que se faz a poesia, porque ninguém é inocente em um espaço em que todos são passíveis de erros, julgamentos e condenações justas ou não. Quem praticou um crime não aceita a inocência de ninguém e quem afirma que foi condenado injustamente também não dá aos outros o benefício da dúvida. Nesse contexto, os habitantes do presídio vivem assim. A absolvição não existe no enredo de Tennessee Williams. Pelo contrário.
O inferno, além de ser os outros, também está em cada um dos personagens e em cada espectador da peça - que absolve e condena com a mesma facilidade em que troca de roupa. Todos, com suas bagagens e pecados, estão condenados à liberdade e o que se faz com o livre arbítrio pode ser decisivo para os próximos passos. E é esse o pacto que se estabelece entre público e atores do espetáculo, em cartaz no Viga Espaço Cênico até dia 18 de fevereiro (apenas mais quatro apresentações, por isso, não perca).
Fabrício Pietro empresta seu carisma, mais uma vez, a um sujeito com índole duvidosa - embora não se repita. O papel dele conversa com o personagem que interpretou em "Jardim de Inverno", em breve de volta aos palcos de São Paulo (por isso, mais 11 motivos para assistir a peça). É possível fazer um paralelo, por exemplo, quando ele telefona para casa para falar com o filho pequeno ao mesmo tempo em que está claramente intencionado em ser infiel com a esposa no ambiente de trabalho. A diferença é que, enquanto o personagem de "Inferno" é um psicopata, o de "Inverno" é um egoísta. Em comum entre os dois, além do temperamento repleto de dualidades, estão as escolhas que estes homens imperfeitos fazem e que resultam em consequências diretas na vida dos outros e de si mesmos.
Em contraponto ao personagem, está a personagem de Camila dos Anjos - em um papel à altura de seu talento. Mas não se engane com a figura de mulher angelical que atriz e seu papel representam: ela está naquele lugar porque precisa do emprego e faz até o que não concorda para se manter empregada. Outra mulher que se destaca é a atriz Simone Rebequi, cuja personagem enfrenta a busca desesperada por um filho que desapareceu entre os homens daquele local. A dor dessa personagem é algo tão real e dilacerante que, muitas vezes, em cena, parece uma personagem à parte.
É a partir dessa busca de informações de uma mãe pelo filho que as linhas, traçadas com mãos cirúrgicas em uma parceria entre texto e direção consistente de André Garolli resultam nas coincidências que fazem deste espetáculo algo tão avassalador. No inferno, há as revoltas e os motins. Quem as lidera é o personagem de Fernando Vieira, em mais um bom momento na carreira. A interpretação enérgica que ele dá a um homem repleto de defeitos e humanidade faz com que a plateia reflita que há um lado humano em um homem repugnante que despreza a humanidade dos outros e que quer para si o que tomou de alguém. "Inferno" discute as oportunidades, fala sobre o querer o que nunca se teve, e traça uma linha tênue entre o bem e o mal.
A insanidade que permeia a insalubridade do lugar está potencializada no marinheiro Jack, defendido com muita firmeza por Lucas Guerini, em uma interpretação que vai da mais pura crueza ao mais poético momento do espetáculo. Lucas Guerini tem o mérito de iniciar o espetáculo de uma maneira contundente, na mais alta temperatura. É a partir dele, e por isso a responsabilidade imensa do ator, que todos começam no limite, e todos, nesse limite e em alta tensão, querem alguma coisa: só poderia dar errado.
Esse "querer" em "Inferno" é o céu, a redenção, as oportunidades que não chegaram. O inferno é um lugar em que a luminosidade não se vê, a não ser a partir de personagens tão puros quanto o do presidiário Jim, que está naquele lugar porque roubou para comer. Jim é interpretado pelo ator Athos Magno que, em uma atuação sensível e repleta de nuances, demonstra desde o primeiro momento em que pisa em cena que o personagem é diferente de outros que estão ali. Além disso, o amor que ele sente é capaz de trazer a redenção para outros personagens e alguns desdobramentos.
Destaca-se, também, entre os 40 atores do espetáculo, a presença hipnotizante de Wes Machado. No meio de tanto caos, ele traz a leveza da purpurina em um lugar que é só sombra. Para ver, refletir, melhorar e se reinventar, admitindo que o inferno está dentro de cada um de nós. Dosá-lo no cotidiano é a melhor maneira de conseguir estar em um mundo melhor e um pouco mais humanitário.
Além disso, "Inferno" propõe críticas bem contundentes ao longo das apresentações, que relacionam 90 anos atrás e os dias de hoje. Há indícios de que todos os problemas do mundo começaram a partir da santa ceia, será? "Este não é o 'Messias' que vocês esperavam" é só uma delas. Quem tiver um pouco de sanidade sai do espetáculo com alma lavada.
Ficha Técnica:
"Inferno - Um Interlúdio Expressionista"
Inspirado no texto "Not About Nightingales", de Tennessee Williams, dentro do projeto "Homens À Deriva". Direção: André Garolli. Assistente de direção: Mônica Granndo. Elenco: Camila dos Anjos, Fernando Vieira, Fabrício Pietro, Athos Magno, Simone Rebequi e mais 36 atores. Produção: Cia. Triptal. Assistência de produção geral: Giulia Oliveira. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes. Projeto contemplado pelo Programa Municipal De Fomento Ao Teatro Para A Cidade De São Paulo 32ª Edição – 2018.
Serviço:
VIGA Espaço Cênico
Rua Capote Valente, 1323 - Próximo ao metrô Sumaré. Telefone: (11) 3801-1843. Temporada: de 27 de janeiro até 18 de fevereiro de 2020. Segundas e terças, às 21h. Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia). Duração: 100 minutos. Classificação: 16 anos. Capacidade: 80 lugares.
Olá Hélder obrigado pela crítica tão ppontual e profícua. Em tempos tão nebulosos, ler a sua leitura da peça nos indica que o norte apontado está correto. Obrigado. Abraços
ResponderExcluirObrigado, André! Fico muito feliz com o reconhecimento e pelas palavras. Fazer arte é resistência, meu amigo. Fortalecidos pelas palavras e tentando melhorar o nosso entorno. Parabéns pelo espetáculo, ele é um milagre. Um abraço gigante.
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