Natural do interior de São Paulo, Rafael Martins lançou recentemente pela editora Patuá o romance “O Segredo das Lantanas”, que acompanha Humberto, um personagem que, por uma série de motivos, não consegue dormir. Partindo dessa premissa aparentemente banal, o autor, com uma linguagem crua e direta, busca chocar o leitor com acontecimentos inesperados e, ao mesmo tempo, provocá-lo a participar da construção da história, através de um mergulho em suas diversas camadas. O resultado: uma curiosa experiência de retrogosto na pós-leitura.
Rafael nasceu em Campinas, em 1982, no interior do estado, onde desde menino escrevia diários e contos em folhas de fichário. Hábito que permaneceu de alguma forma adormecido até a vida adulta. Já formado em direito e atuando como Procurador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), resolveu se desafiar e entrar no mundo literário. O autor revela que em 2018 escreveu o romance “Água Turva”, porém não o submeteu a análise de nenhuma editora, pois reconheceu que sua escrita precisaria passar por um processo de maturação.
A partir daí, na busca de refinamento da própria escrita, estudou as obras de Assis Brasil, James Wood e Prose e incorporou à sua rotina de leitura um olhar mais atento às técnicas e construções narrativas. Amparado em um certo repertório, em poucos meses concluiu “O Segredo das Lantanas”, fruto de um progresso técnico e de um meticuloso planejamento prévio. Este processo deu ao autor um novo senso de si como escritor, que já planeja outras obras para um futuro próximo. Leia a entrevista completa com o autor Rafael Martins.
Se você pudesse resumir os temas centrais do livro, quais seriam?
Rafael Martins - É um livro com muitas camadas de interpretação. Não há só um tema: ele passa por ressentimento, trauma, repetição de comportamento, recalque, abuso sexual. Em suma, diria que toca na complexidade humana. Imaginei que fossem temas que tivessem potencial de chocar, causar desconforto. Era o que eu queria.
O que motivou a escrita do livro?
Rafael Martins - Quis, em alguma medida, surpreender e chocar o leitor. Chocar com os temas abordados em suas diversas camadas e surpreender com um final, que exige uma certa perspicácia do leitor. É um livro que foi concebido para desafiar. Já assistiram "Clube da Luta" e "O Sexto Sentido"? O final desses filmes, geralmente, surpreende as pessoas. Fiquei tão boquiaberto que reassisti e tudo fez mais sentido. Quis fazer algo assim: tentei passar a perna no leitor. Alguns relatam que “ruminaram” o livro por dias, outros dizem que fizeram releitura… Enfim, é um livro que deixa um “retrogosto”. Ele fica na cabeça porque eu não entrega tudo. Creio que, até por uma questão neurológica, sei lá, ele persiste porque o leitor fica tentando buscar sentido, ligar as coisas…
Como foi o processo de escrita?
Rafael Martins - Este livro foi todo planejado. Não tem nada por acaso, não é fruto de escrita espontânea, muito pelo contrário: é todo deliberado. Exemplo: quando digo que uma determinada personagem se cortava, usava roupa comprida, parou de jogar vôlei, etc, não é por acaso, tem motivo. O leitor pode perceber ou não, pois não se trata de um livro didático. O livro tem uma linguagem simples e fluida, e foi constituído para que o leitor compreenda, com facilidade, o que foi dito, mas, também, para que ele perceba um certo “não dito”. Ou seja, para que se leia o que não está escrito. As respostas não são dadas, mas sugestionadas.
Quais são as suas principais influências literárias?
Rafael Martins - Um pouco de tudo. Gabriel Garcia Márquez, Franz Kafka, Dostoiévski. E de brasileiros, Milton Hatoum, Sérgio Sant’Anna, Machado de Assis, entre muitos outros. Machado que particularmente foi algo que estudei para a escrita de O segredo das Lantanas.
Que livros influenciaram diretamente a obra?
Rafael Martins - Nenhum diretamente. Trata-se de uma narrativa ficcional, com arrimo na crueza da vida e nas observações do cotidiano. Mas, na construção do narrador, pensei no Machado de Assis. Tanto é que, com o avançar da leitura, o leitor passa a desconfiar do narrador.
Escreve desde quando? Como começou a escrever?
Rafael Martins - Nem sei precisar desde quando. Fui um menino muito tímido, então a escrita foi uma forma de expressão. Fazia diário, escrevia contos em folhas de fichário, essas coisas… Porém, tinha o péssimo hábito de começar um texto e não terminar. Já deixei muita coisa inacabada. No âmbito profissional, a escrita se tornou minha ferramenta de trabalho. Contudo, a elaboração de peças jurídicas, ao meu ver, se distancia do trabalho com literatura, seja na linguagem, nos mecanismos, nos objetivos… Isso, inclusive, foi uma questão que precisei me atentar. Por volta de 2018/2019 fui perseguido por uma ideia. Comecei a escrever, sem técnica, sem planejamento, sem muito compromisso. Fui até o fim, pela primeira vez, e concluí um romance intitulado Água Turva. Não conhecia nada sobre o mundo literário/editorial, aí recomendaram-me submeter o livro a uma leitura crítica. Foi o que fiz. O leitor fez tantas críticas negativas - e com razão - que abandonei o projeto. Depois desta experiência, senti necessidade de estudar escrita. Não fiz oficina, pois, na época, não encontrei nenhuma em minha cidade, mas li muita coisa, dentre elas, cito Assis Brasil, James Wood, Prose. Assim, o Água Turva foi um livro de transição, diria: transição de um leitor para um escritor e de uma escrita amadora para uma mais técnica. A partir dos apontamentos do leitor crítico, do estudo sobre escrita e da mudança da minha própria leitura (agora mais atenta à construção), consegui desenvolver um trabalho mais técnico, com preocupação com linguagem, enredo e personagens. Assim, em poucos meses, nasceu O Segredo das Lantanas.
Como você definiria seu estilo de escrita?
Rafael Martins - Difícil dizer. Mas tento trabalhar com uma linguagem simples, seca, sem excessos e sem censura. É meio paradoxal, mas escrever fácil é muito difícil. Em minha primeira experiência com escrita literária (Água Turva) esse foi um ponto destacado pelo meu leitor crítico. Em alguns momentos o texto ficou rebuscado, complexo, fruto do meu contato diário com o “juridiquês”. Trabalhei bastante isso: desde a escolha semântica até a construção da frase. O resultado foi um livro (O Segredo das Lantanas) complexo, mas com linguagem fácil e corrente. Leitores relatam que leem com muita facilidade, avançam no enredo até com certo prazer, espero que proceda (risos).
Como é o seu processo de escrita?
Rafael Martins - Este processo ainda está em desenvolvimento, claro. Mas, após formular a ideia inicial, procuro estabelecer qual será o objetivo do livro: chocar, emocionar, fazer rir? No caso de O Segredo das Lantanas, foi chocar (tenho um original guardado que o objetivo é emocionar, causar reflexão, por exemplo). Tendo o objetivo definido, a construção deverá manter coerência com a finalidade. Passo a desenvolver a ideia ainda numa fase mental, até ter noção do desfecho. Atualmente, nem começo a escrever se não souber aonde quero chegar. Pois, tendo ideia do final, o caminho para se chegar ao resultado fica mais fácil e coerente. Este processo de maturação da ideia não tem prazo determinado. Só quando a ideia está madura, dou início ao processo de escrita. Diria que perco mais tempo no planejamento do que na execução propriamente. Claro que, neste interregno, faço muitas anotações e áudios no celular, para não esquecer. É até uma forma de deixar a ideia sempre viva. Terminada a primeira versão, guardo o arquivo e inicio outro projeto de escrita. Isso gera um distanciamento, quase um “detox”. Após meses sem contato com o texto inicial, faço uma releitura (que não estará mais viciada), realizo correções, ajustes, cortes de excessos… Após a revisão, submeto o texto a uma leitura crítica e a leitores próximos. Se fosse para fazer uma metáfora, diria que parece com o processo de fermentação de pão. Às vezes precisamos ter paciência e deixar a massa crescer, para conseguirmos um resultado satisfatório.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?
Rafael Martins - Sem ritual e sem meta. O que faço é manter a constância. Escrevo todas as manhãs. Acordo muito cedo, às 4h50, vou para a academia e corro. Durante a corrida já vou pensando sobre o que escreverei. Faço, praticamente, uma construção mental. Quando chego em casa, não é raro sentar em frente ao computador (todo suado) com um parágrafo já pronto na cabeça. Aí é só questão de digitar. Meu tempo é curto, algo em torno de 45 minutos, pois logo na sequência vou para o trabalho. À noite não consigo escrever e por uma série de motivos: chego com a cabeça cansada, preciso dar conta das demandas domésticas e familiares: banho nas crianças, jantar, colocar para dormir, são três filhos, a coisa aqui funciona na “força-tarefa” (risos). Então, só tenho a manhã. Tem dia que sai uma página, em outros saem um parágrafo, mas pode ocorrer de não sair nada, no máximo a revisão de parágrafo do dia anterior. E assim vou construindo, aos poucos, mas com constância. Consigno que, em geral, não tenho problema de inspiração: o problema é a falta de tempo mesmo. Porém, acredito que é justamente esta correria que me inspira, que me serve de matéria prima. Talvez se eu tivesse muito tempo disponível a página em branco poderia me assustar.
Quais são os seus projetos atuais de escrita?
Rafael Martins - Tenho um romance engavetado (em processo de descanso e fermentação, aguardando releitura e ajustes), que tratará da relação complexa entre pai e filho. Atualmente, escrevo um livro de contos.
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