Entre dramas pessoais e sucesso na carreira artística, Wanderléa revela detalhes de sua vida em autobiografia. “Foi assim” chega às livrarias em novembro e mostra versatilidade da artista que gravou boleros, choros, músicas de carnaval e os ‘malditos’ da MPB, além de ter sido estrela de um dos movimentos culturais mais importantes do Brasil, a Jovem Guarda, ao lado de Roberto e Erasmo Carlos. Original e pioneira, Wandeca, a eterna Ternurinha, também influenciou a moda e o comportamento da época
Foi em Lavras, no interior de Minas, que a menina Leinha começou a fazer seus primeiros shows caseiros, para a família, aos 3 anos de idade. Ela cantava na varanda de casa e chegou a sair pelas ruas vendendo as frutas plantadas no quintal para comprar papel crepom e compor o cenário para o seu “palco”. Não demorou muito para que a vizinhança descobrisse os dotes da menina e ela foi chamada para cantar num show de caridade da cidade. Logo depois, foi também convidada a se apresentar num programa infantil da Rádio Difusora de Lavras. A canção escolhida foi “Caminhemos”, de Herivelto Martins. Aprendeu essa e outras músicas ouvindo rádio em casa, com a mãe, que também tinha dotes artísticos, o pai e os seis irmãos. A versatilidade, o talento vocal e o domínio total do palco seriam as principais marcas da menina de Lavras que nunca deixou trocarem seu nome de batismo e seguiu como Wanderléa, numa das carreiras mais bem-sucedidas da MPB. A história toda ela conta agora em sua autobiografia, “Foi assim”, que chega às livrarias de todo o Brasil em novembro, pela editora Record.
O livro, cujos rascunhos ela escreveu durante anos e teve edição e pesquisa do jornalista Renato Vieira, foi uma espécie de terapia para Wanderléa. Ao mesmo tempo em que conquistou sucesso, independência econômica e liberdade na carreira, a cantora enfrentou uma série de dramas pessoais. A perda de uma de suas irmãs, no Rio de Janeiro, por uma bala perdida; o acidente do então namorado José Renato, filho do apresentador Chacrinha, que o deixou tetraplégico; a perda do irmão, que era seu estilista e uma espécie de assessor especial, para a AIDS, nos anos em que também viu vários de seus amigos serem derrotados pela doença; a morte da mãe, na véspera da morte de Maria Rita, mulher de Roberto Carlos, seu melhor amigo. Por fim, uma das maiores dores, a perda de seu filho Leonardo, afogado na piscina de casa, recém-comprada com o marido Lalo. “Adversidades grandes demais para enfrentar me fizeram viver um dia de cada vez. Existir, e por tantas vezes resistir, era mais importante do que guardar coisas na cabeça naturalmente desligada. Acho que agora os cantos escuros da minha vida, as lembranças perdidas, estão iluminadas de uma forma que não sei se é a melhor, mas penso ser a mais humana e verdadeira”, escreveu Wanderléa no prólogo do livro.
As páginas da autobiografia revelam também histórias saborosas vividas pela cantora, como a amizade com Roberto Carlos, de quem recebeu o primeiro beijo na boca, e Erasmo Carlos, que tentou diversas vezes namorá-la, durante o auge da Jovem Guarda, movimento que se desdobrou em programa de TV, discos, shows e filmes. Mostram ainda as dificuldades que enfrentou nas gravadoras, sempre avessas a investir em projetos originais e autorais. Tanto que nos cinco primeiros discos, na CBS, ela gravou basicamente canções de Roberto e Erasmo e, em sua maioria, versões de músicas estrangeiras, muitas vezes contra a sua vontade. Foi só em 1972, quando foi para a Polydor e fez o LP “Maravilhosa”, que tinha Nelson Motta como assistente de direção, que ela conseguiu gravar nomes como Gilberto Gil, Assis Valente, Jorge Mautner, Hyldon, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal, entre outros. No segundo disco pela empresa, “Feito gente” (1975), ela gravou Gonzaguinha, João Donato, Joyce Moreno, Sueli Costa, Luiz Melodia e Hermínio Bello de Carvalho.
Em meio à rotina frenética de shows e gravações, Wanderléa enfrentava o drama do acidente de José Renato, seu namorado, então com 22 anos. Numa viagem a uma fazenda em Petrópolis, o filho de Chacrinha resolveu mergulhar na piscina e se machucou seriamente, ficando tetraplégico. Wanderléa ficou noiva e casou com ele, com quem manteve uma relação que durou sete anos, alguns dos quais vivendo nos Estados Unidos, para onde se mudaram em busca de tratamento. No quesito grandes amores, depois de um namorado que chegou a brigar com Roberto Carlos, por ciúme do amigo e companheiro de shows de Wanderléa, ela encontrou Egberto Gismonti, com quem namorou e mantém até hoje laços de amizade. Com o músico, que escreveu a orelha deste livro, Wanderléa migrou para a EMI-Odeon e gravou “Vamos que eu já vou” (1977), disco com arranjos e produção executiva de Gismonti. Na companhia, ela fez ainda “Mais que a paixão” (1978), com produção de Renato Corrêa e composições de Djavan, Altay Veloso, Capinan, Moraes Moreira e o próprio Gismonti. Nessa fase da carreira, Wanderléa disse não ter tido muito apoio da gravadora na divulgação, mas mostrou que era mais que uma musa da jovem Guarda. Era uma grande cantora, versátil, inteligente e com total domínio de sua arte.
“Cantei boleros, choros, músicas de carnaval, gravei os tais ‘malditos’ da MPB (benditos sejam!), experimentei sonoridades eletrônicas, rasguei o verbo na hora da raiva e, em uma nova estação, me reencontrei com minhas origens. Ao longo de todos esses anos, transgredi, segui as regras da sociedade, me recolhi e logo em seguida fui em frente”, relembra, em outro trecho do prólogo. As primeiras transgressões da Ternurinha começaram em casa. Seu pai, descendente de árabe e com uma educação rígida, a acompanhava no rádio e na gravadora, mas, em determinado momento, achou que a “brincadeira” estava indo longe demais. Ele não queria que ela seguisse a carreira artística, mas Wanderléa logo conseguiu independência financeira e, com ela, a independência da família. Quando comprou um carro, o pai também não gostou. Dirigir, na década de 60, não era coisa de mulher. Suas roupas eram um capítulo à parte. Com o irmão estilista, ela inventava os próprios figurinos, ousadíssimos para a época. A moda da minissaia ganhou força com ela, para horror da sociedade da época e delírio das fãs mulheres. Na época do programa Jovem Guarda, foi criada a grife Ternurinha, com pagamento de royalties e tudo, no que ela considera o “marco zero do mercado consumidor jovem no Brasil”. “Enquanto a minissaia criada por Mary Quant ficava a um palmo do joelho, a minha era quatro dedos abaixo da pélvis”, relembra ela, num dos capítulos do livro.
Wanderléa, assim como Roberto e Erasmo, não gostava de falar de política. Mas, em termos de comportamento, a sua geração foi uma das mais transgressoras. Além das roupas e da atitude no palco, na vida pessoal ela namorava sem culpa, viajava sozinha e chegou a fazer dois abortos, dos quais fala abertamente. “Apesar das minhas convicções, passar por dois abortos, aos 20 e poucos anos, foi difícil. Não fiquei imune aos conflitos pessoais e psicológicos, que, admito, se tornaram mais presentes na maturidade. (...) Não cabe a ninguém discriminar essa atitude. Devemos apoiar e respeitar essa escolha, pois a própria mulher é a que mais sofre. A legislação deve ampará-las sem que elas sejam julgadas por esse ato”, escreve.
A maternidade traria alegrias e tristezas para a vida de Wanderléa. O primeiro filho, com o marido Lalo, nasceu em 1981. Ela vivia um momento incerto na carreira. Os álbuns mais autorais não tiveram boas vendas. “Alguns homens de gravadora têm responsabilidade nisso. Eles ainda queriam a Ternurinha, argumentando que em time que está ganhando não se mexe, e não bancaram o mínimo necessário de divulgação pelo simples propósito de boicotar meus novos voos.” Sem o público da Jovem Guarda e sem o reconhecimento da crítica, ela também teve seu estúdio roubado, com todos os equipamentos comprados nos Estados Unidos sendo levados por ladrões. Foi nessa época difícil que conheceu Lalo, músico chileno que faria um show com ela numa boate em São Paulo. Os dois logo passaram a viver juntos e veio a gravidez. Ela tinha 35 anos quando Leonardo nasceu.
Quando o menino estava prestes a completar 2 anos, ela e Lalo decidiram comprar uma casa na Zona Oeste de São Paulo, para dar a Leo uma infância mais próxima à natureza. No dia 1º de fevereiro de 1984, Wanderléa tinha uma gravação no programa de Flávio Cavalcanti, no SBT, para divulgar seu mais recente compacto. Antes de sair, tirou algumas fotos com o menino. As últimas imagens que guardaria do filho, que, sem ninguém ver, saiu da casa e caiu na piscina. Não houve tempo para o socorro. Ao contrário do marido, que se recolheu, a cantora decidiu nunca deixar de falar no menino. “Percebi que as alegrias que tive com meu filho durante seus 2 anos e 3 meses de vida foram um presente que Deus me enviou. (...) Passei a agradecer a dádiva do nosso convívio, em vez de viver para sempre lamentando sua partida.”
Wanderléa engravidaria outras duas vezes de Lalo. Na primeira, aos 40 anos, quando esperava a filha Yasmim, ela inovou: aceitou posar nua, com o barrigão à mostra, para a revista masculina Status. Na edição histórica, Erasmo escreveu pequenos versos para acompanhar as imagens. No livro, ela lembra que a atriz americana Demi Moore escandalizou o mundo, seis anos depois, com a mesma atitude, posando para a Vanity Fair. “Alguns jornalistas saudaram sua atitude, dizendo que ela havia sido inovadora nesse sentido. Modéstia à parte, a pioneira a fazer isso foi uma cantora brasileira nascida em Governador Valadares, a filha do severo seu Salim.” Yasmim nasceu em 1985 e Jadde, dois anos depois.
Ela e o marido continuam juntos, mas vivendo em casas separadas. Em seu apartamento, Lalo montou um estúdio, onde ele e Wanderléa passam horas cantando e tocando bossa nova, samba-canção e rock contemporâneo. Com ele, ela gravou CDs marcantes, como o “Nova estação” (2008), com composições de Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Johnny Alf, Roberto e Erasmo, entre outros, que ganhou o prêmio de melhor disco daquele ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O disco a levou em excursão com a família: a banda era montada por Lalo, o cenário de Yasmim e percussão de Jadde. Em novembro de 2016, Wandeca inovou mais uma vez: convidada pelo produtor cultural Frederico Reder, ela estreou como protagonista no espetáculo musical “60! Década de arromba”, grande sucesso de público e crítica em suas temporadas carioca e paulista. O espetáculo volta em novembro para o Rio, no mês em que o livro também será lançado.
Aos 71, Wanderléa está no auge e planeja lançar um disco de inéditas e outros mais autorais com o marido Lalo. A filha Yasmim está grávida de uma menina e ela se tornará avó ainda em 2017. Como escreveu no prólogo, Wanderléa acha que continua a ser a “mistura de eterna teenager com cigana centenária”, como a definiu uma vez o seu mestre de cabala.
Cantora vai lançar a obra nos dias 21 de novembro, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional; e no dia 27 de novembro na Travessa do Leblon, no Rio, a partir das 19h
Leia no blog o prólogo da obra: http://bit.ly/2A5EBzZ
ORELHA:
Escrever sobre Wanderléa é quase um exercício de sustos intercalados com ousadias. Ela é boa demais, amiga, mulher, mãe, filha, solidária, com um grau de benevolência a todos que dá gosto de conviver! Parece dominar uma energia desconhecida por nós, mortais ou súditos da sua história surpreendente, rica em solidariedade, beleza e independência. Léa tem alma do interior, gosto de mato molhado pela chuva e de terra rica que dá frutos cheirosos de cores brilhantes e vivas. É um tipo singular de pessoa, que faz com que os adjetivos percam a função de indicar-lhe um atributo…
Em 1977, fiz com meu amigo e parceiro Geraldo Carneiro uma música que representasse nossa admiração por ela, “Educação sentimental” (“Se você diz: eu te amo/ Meu coração se mira no espelho/ E faz piruetas de circo”). Ela deu vida à composição, cantou com o humor necessário, e nós ganhamos uma canção bem-humorada, bem cantada e com a cara dela. Nós nos aproximamos ainda mais: a alegria da sua companhia sempre foi bem-vinda e desejada. No mesmo ano, fizemos juntos o seu LP Vamos que eu já vou, e eu pude conhecer melhor sua musicalidade, seus amigos, suas ideias, sua liderança e sua capacidade de se reinventar todos os dias.
Para minha alegria, o destino nos permitiu uma aproximação capaz de misturar os melhores sentimentos, renovando dia a dia a esperança de que poderíamos viver mais felizes juntos. E nunca mais nos separamos. Selamos uma admiração e um respeito tão grandes quanto sua competência de viver privilegiando a beleza com esperança e fé.
Léa hoje se confunde com as filhas Yasmim e Jadde, lindas, donas do legado composto por curiosidade, paciência e experimentação. Elas são a representação da mãe, e uma prova de que sua sabedoria se refletiu, além da arte, também na vida cotidiana.
Esta autobiografia é linda, escrita com delicadeza, verdade e entrega a cada passo do processo — como fez nos anos 1970 com o disco que produzimos e com todos os outros. Bom saber que sua história poderá ser acompanhada e compreendida também pelos jovens, que seguem aplaudindo Léa, suas canções e sua trajetória, certos de que ela segue nos ensinando os bons caminhos para uma vida feliz.
Com amor, amizade e saudade, Egberto Gismonti
Livro: Foi assim
Foi em Lavras, no interior de Minas, que a menina Leinha começou a fazer seus primeiros shows caseiros, para a família, aos 3 anos de idade. Ela cantava na varanda de casa e chegou a sair pelas ruas vendendo as frutas plantadas no quintal para comprar papel crepom e compor o cenário para o seu “palco”. Não demorou muito para que a vizinhança descobrisse os dotes da menina e ela foi chamada para cantar num show de caridade da cidade. Logo depois, foi também convidada a se apresentar num programa infantil da Rádio Difusora de Lavras. A canção escolhida foi “Caminhemos”, de Herivelto Martins. Aprendeu essa e outras músicas ouvindo rádio em casa, com a mãe, que também tinha dotes artísticos, o pai e os seis irmãos. A versatilidade, o talento vocal e o domínio total do palco seriam as principais marcas da menina de Lavras que nunca deixou trocarem seu nome de batismo e seguiu como Wanderléa, numa das carreiras mais bem-sucedidas da MPB. A história toda ela conta agora em sua autobiografia, “Foi assim”, que chega às livrarias de todo o Brasil em novembro, pela editora Record.
O livro, cujos rascunhos ela escreveu durante anos e teve edição e pesquisa do jornalista Renato Vieira, foi uma espécie de terapia para Wanderléa. Ao mesmo tempo em que conquistou sucesso, independência econômica e liberdade na carreira, a cantora enfrentou uma série de dramas pessoais. A perda de uma de suas irmãs, no Rio de Janeiro, por uma bala perdida; o acidente do então namorado José Renato, filho do apresentador Chacrinha, que o deixou tetraplégico; a perda do irmão, que era seu estilista e uma espécie de assessor especial, para a AIDS, nos anos em que também viu vários de seus amigos serem derrotados pela doença; a morte da mãe, na véspera da morte de Maria Rita, mulher de Roberto Carlos, seu melhor amigo. Por fim, uma das maiores dores, a perda de seu filho Leonardo, afogado na piscina de casa, recém-comprada com o marido Lalo. “Adversidades grandes demais para enfrentar me fizeram viver um dia de cada vez. Existir, e por tantas vezes resistir, era mais importante do que guardar coisas na cabeça naturalmente desligada. Acho que agora os cantos escuros da minha vida, as lembranças perdidas, estão iluminadas de uma forma que não sei se é a melhor, mas penso ser a mais humana e verdadeira”, escreveu Wanderléa no prólogo do livro.
As páginas da autobiografia revelam também histórias saborosas vividas pela cantora, como a amizade com Roberto Carlos, de quem recebeu o primeiro beijo na boca, e Erasmo Carlos, que tentou diversas vezes namorá-la, durante o auge da Jovem Guarda, movimento que se desdobrou em programa de TV, discos, shows e filmes. Mostram ainda as dificuldades que enfrentou nas gravadoras, sempre avessas a investir em projetos originais e autorais. Tanto que nos cinco primeiros discos, na CBS, ela gravou basicamente canções de Roberto e Erasmo e, em sua maioria, versões de músicas estrangeiras, muitas vezes contra a sua vontade. Foi só em 1972, quando foi para a Polydor e fez o LP “Maravilhosa”, que tinha Nelson Motta como assistente de direção, que ela conseguiu gravar nomes como Gilberto Gil, Assis Valente, Jorge Mautner, Hyldon, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal, entre outros. No segundo disco pela empresa, “Feito gente” (1975), ela gravou Gonzaguinha, João Donato, Joyce Moreno, Sueli Costa, Luiz Melodia e Hermínio Bello de Carvalho.
Em meio à rotina frenética de shows e gravações, Wanderléa enfrentava o drama do acidente de José Renato, seu namorado, então com 22 anos. Numa viagem a uma fazenda em Petrópolis, o filho de Chacrinha resolveu mergulhar na piscina e se machucou seriamente, ficando tetraplégico. Wanderléa ficou noiva e casou com ele, com quem manteve uma relação que durou sete anos, alguns dos quais vivendo nos Estados Unidos, para onde se mudaram em busca de tratamento. No quesito grandes amores, depois de um namorado que chegou a brigar com Roberto Carlos, por ciúme do amigo e companheiro de shows de Wanderléa, ela encontrou Egberto Gismonti, com quem namorou e mantém até hoje laços de amizade. Com o músico, que escreveu a orelha deste livro, Wanderléa migrou para a EMI-Odeon e gravou “Vamos que eu já vou” (1977), disco com arranjos e produção executiva de Gismonti. Na companhia, ela fez ainda “Mais que a paixão” (1978), com produção de Renato Corrêa e composições de Djavan, Altay Veloso, Capinan, Moraes Moreira e o próprio Gismonti. Nessa fase da carreira, Wanderléa disse não ter tido muito apoio da gravadora na divulgação, mas mostrou que era mais que uma musa da jovem Guarda. Era uma grande cantora, versátil, inteligente e com total domínio de sua arte.
“Cantei boleros, choros, músicas de carnaval, gravei os tais ‘malditos’ da MPB (benditos sejam!), experimentei sonoridades eletrônicas, rasguei o verbo na hora da raiva e, em uma nova estação, me reencontrei com minhas origens. Ao longo de todos esses anos, transgredi, segui as regras da sociedade, me recolhi e logo em seguida fui em frente”, relembra, em outro trecho do prólogo. As primeiras transgressões da Ternurinha começaram em casa. Seu pai, descendente de árabe e com uma educação rígida, a acompanhava no rádio e na gravadora, mas, em determinado momento, achou que a “brincadeira” estava indo longe demais. Ele não queria que ela seguisse a carreira artística, mas Wanderléa logo conseguiu independência financeira e, com ela, a independência da família. Quando comprou um carro, o pai também não gostou. Dirigir, na década de 60, não era coisa de mulher. Suas roupas eram um capítulo à parte. Com o irmão estilista, ela inventava os próprios figurinos, ousadíssimos para a época. A moda da minissaia ganhou força com ela, para horror da sociedade da época e delírio das fãs mulheres. Na época do programa Jovem Guarda, foi criada a grife Ternurinha, com pagamento de royalties e tudo, no que ela considera o “marco zero do mercado consumidor jovem no Brasil”. “Enquanto a minissaia criada por Mary Quant ficava a um palmo do joelho, a minha era quatro dedos abaixo da pélvis”, relembra ela, num dos capítulos do livro.
Wanderléa, assim como Roberto e Erasmo, não gostava de falar de política. Mas, em termos de comportamento, a sua geração foi uma das mais transgressoras. Além das roupas e da atitude no palco, na vida pessoal ela namorava sem culpa, viajava sozinha e chegou a fazer dois abortos, dos quais fala abertamente. “Apesar das minhas convicções, passar por dois abortos, aos 20 e poucos anos, foi difícil. Não fiquei imune aos conflitos pessoais e psicológicos, que, admito, se tornaram mais presentes na maturidade. (...) Não cabe a ninguém discriminar essa atitude. Devemos apoiar e respeitar essa escolha, pois a própria mulher é a que mais sofre. A legislação deve ampará-las sem que elas sejam julgadas por esse ato”, escreve.
A maternidade traria alegrias e tristezas para a vida de Wanderléa. O primeiro filho, com o marido Lalo, nasceu em 1981. Ela vivia um momento incerto na carreira. Os álbuns mais autorais não tiveram boas vendas. “Alguns homens de gravadora têm responsabilidade nisso. Eles ainda queriam a Ternurinha, argumentando que em time que está ganhando não se mexe, e não bancaram o mínimo necessário de divulgação pelo simples propósito de boicotar meus novos voos.” Sem o público da Jovem Guarda e sem o reconhecimento da crítica, ela também teve seu estúdio roubado, com todos os equipamentos comprados nos Estados Unidos sendo levados por ladrões. Foi nessa época difícil que conheceu Lalo, músico chileno que faria um show com ela numa boate em São Paulo. Os dois logo passaram a viver juntos e veio a gravidez. Ela tinha 35 anos quando Leonardo nasceu.
Quando o menino estava prestes a completar 2 anos, ela e Lalo decidiram comprar uma casa na Zona Oeste de São Paulo, para dar a Leo uma infância mais próxima à natureza. No dia 1º de fevereiro de 1984, Wanderléa tinha uma gravação no programa de Flávio Cavalcanti, no SBT, para divulgar seu mais recente compacto. Antes de sair, tirou algumas fotos com o menino. As últimas imagens que guardaria do filho, que, sem ninguém ver, saiu da casa e caiu na piscina. Não houve tempo para o socorro. Ao contrário do marido, que se recolheu, a cantora decidiu nunca deixar de falar no menino. “Percebi que as alegrias que tive com meu filho durante seus 2 anos e 3 meses de vida foram um presente que Deus me enviou. (...) Passei a agradecer a dádiva do nosso convívio, em vez de viver para sempre lamentando sua partida.”
Wanderléa engravidaria outras duas vezes de Lalo. Na primeira, aos 40 anos, quando esperava a filha Yasmim, ela inovou: aceitou posar nua, com o barrigão à mostra, para a revista masculina Status. Na edição histórica, Erasmo escreveu pequenos versos para acompanhar as imagens. No livro, ela lembra que a atriz americana Demi Moore escandalizou o mundo, seis anos depois, com a mesma atitude, posando para a Vanity Fair. “Alguns jornalistas saudaram sua atitude, dizendo que ela havia sido inovadora nesse sentido. Modéstia à parte, a pioneira a fazer isso foi uma cantora brasileira nascida em Governador Valadares, a filha do severo seu Salim.” Yasmim nasceu em 1985 e Jadde, dois anos depois.
Ela e o marido continuam juntos, mas vivendo em casas separadas. Em seu apartamento, Lalo montou um estúdio, onde ele e Wanderléa passam horas cantando e tocando bossa nova, samba-canção e rock contemporâneo. Com ele, ela gravou CDs marcantes, como o “Nova estação” (2008), com composições de Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Johnny Alf, Roberto e Erasmo, entre outros, que ganhou o prêmio de melhor disco daquele ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O disco a levou em excursão com a família: a banda era montada por Lalo, o cenário de Yasmim e percussão de Jadde. Em novembro de 2016, Wandeca inovou mais uma vez: convidada pelo produtor cultural Frederico Reder, ela estreou como protagonista no espetáculo musical “60! Década de arromba”, grande sucesso de público e crítica em suas temporadas carioca e paulista. O espetáculo volta em novembro para o Rio, no mês em que o livro também será lançado.
Aos 71, Wanderléa está no auge e planeja lançar um disco de inéditas e outros mais autorais com o marido Lalo. A filha Yasmim está grávida de uma menina e ela se tornará avó ainda em 2017. Como escreveu no prólogo, Wanderléa acha que continua a ser a “mistura de eterna teenager com cigana centenária”, como a definiu uma vez o seu mestre de cabala.
Cantora vai lançar a obra nos dias 21 de novembro, a partir das 19h, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional; e no dia 27 de novembro na Travessa do Leblon, no Rio, a partir das 19h
Leia no blog o prólogo da obra: http://bit.ly/2A5EBzZ
ORELHA:
Escrever sobre Wanderléa é quase um exercício de sustos intercalados com ousadias. Ela é boa demais, amiga, mulher, mãe, filha, solidária, com um grau de benevolência a todos que dá gosto de conviver! Parece dominar uma energia desconhecida por nós, mortais ou súditos da sua história surpreendente, rica em solidariedade, beleza e independência. Léa tem alma do interior, gosto de mato molhado pela chuva e de terra rica que dá frutos cheirosos de cores brilhantes e vivas. É um tipo singular de pessoa, que faz com que os adjetivos percam a função de indicar-lhe um atributo…
Em 1977, fiz com meu amigo e parceiro Geraldo Carneiro uma música que representasse nossa admiração por ela, “Educação sentimental” (“Se você diz: eu te amo/ Meu coração se mira no espelho/ E faz piruetas de circo”). Ela deu vida à composição, cantou com o humor necessário, e nós ganhamos uma canção bem-humorada, bem cantada e com a cara dela. Nós nos aproximamos ainda mais: a alegria da sua companhia sempre foi bem-vinda e desejada. No mesmo ano, fizemos juntos o seu LP Vamos que eu já vou, e eu pude conhecer melhor sua musicalidade, seus amigos, suas ideias, sua liderança e sua capacidade de se reinventar todos os dias.
Para minha alegria, o destino nos permitiu uma aproximação capaz de misturar os melhores sentimentos, renovando dia a dia a esperança de que poderíamos viver mais felizes juntos. E nunca mais nos separamos. Selamos uma admiração e um respeito tão grandes quanto sua competência de viver privilegiando a beleza com esperança e fé.
Léa hoje se confunde com as filhas Yasmim e Jadde, lindas, donas do legado composto por curiosidade, paciência e experimentação. Elas são a representação da mãe, e uma prova de que sua sabedoria se refletiu, além da arte, também na vida cotidiana.
Esta autobiografia é linda, escrita com delicadeza, verdade e entrega a cada passo do processo — como fez nos anos 1970 com o disco que produzimos e com todos os outros. Bom saber que sua história poderá ser acompanhada e compreendida também pelos jovens, que seguem aplaudindo Léa, suas canções e sua trajetória, certos de que ela segue nos ensinando os bons caminhos para uma vida feliz.
Com amor, amizade e saudade, Egberto Gismonti
Livro: Foi assim
Autora: Wanderléa
Pesquisa e edição de Renato Vieira
Páginas: 392
Editora: Record / Grupo Editorial Record