terça-feira, outubro 28, 2014
Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Em outubro de 2014
Inocente ou omisso? De acordo com o Dicionário Houais da Língua Portuguesa, inocente é um adjetivo de dois gêneros que significa: que não faz mal, não é nocivo; inócuo, inofensivo; destituído de segunda intenção, de malícia; que denota candura; singelo, puro ou adjetivo de dois gêneros e substantivo de dois gêneros: diz-se de ou pessoa não conspurcada pelo pecado, pelo mal; que ou quem é inexperiente nas coisas do amor; diz-se de ou criança de tenra idade; rubrica: direito civil, direito penal, que ou aquele que não cometeu ato ilícito, penal ou civil. Já omisso é um adjetivo, aquele que se omitiu ou se omite; que não se manifesta ou não se manifestou; que deixou de mencionar ou fazer algo; que é dado ao esquecimento ou não faz o que deveria; que revela ou age com negligência; descuidado, negligente; em que há omissão; que contém falha ou lacuna.
Considerando a definição acima, tomando como objeto de estudo o texto da peça teatral "O Pagador de Promessas" do dramaturgo brasileiro Dias Gomes e a adaptação brasileira do filme homônimo, de 1962, escrito e dirigido por Anselmo Duarte, fica possível apontar as diferenças e semelhanças entre ambos.
Um bom exemplo para ilustrar uma modificação já é a cena inicial. Na criação de Dias Gomes, às escuras, um jato de luz apresenta uma pequena praça onde desembocam duas ruas, enquanto que no filme brasileiro de 1962, adaptado por Anselmo Duarte, às escuras, escuta-se um batuque, sendo que, consequentemente são apresentados aqueles que fazem o som e cantam em um terreiro de candomblé.
Contudo, deve-se salientar que esta é uma adaptação, logo baseada no texto teatral de Dias Gomes. Ao ajustar um texto existente para os cinemas é preciso de dinamismo e agilidade, pois cinema e teatro são meios diferentes. Portanto, a dimensão do gênero textual deve ser respeitada para que possa aceito e compreendido.
Uma das maiores diferenças entre ambos está no texto. Ao comparar o original de Dias Gomes com o trecho do filme de 1962 (cena: 16 minutos 09 segundos a 17minutos 41 segundos), nota-se que, para o meio cinematográfico, o texto sofreu alterações: cortes, modificações ou acréscimos.
Um exemplo de corte está apresentado no diálogo a seguir. Inicialmente o texto de Dias Gomes completo:
“BONITÃO - (Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível) A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?
ZÉ - (Muito ingenuamente) O senhor não era fiscal do imposto de renda? Agora é pagador de Santa Bárbara...
BONITÃO - Meu caro, com o custo de vida aumentando dia a dia, a gente tem que se virar. Mas não é esse o caso. Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora, porque me fez passar por aqui esta noite.
ZÉ - Não vejo nada de mais nisso.
BONITÃO - Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.” (DIAS GOMES, 1960)
A seguir o texto da adatapção de Anselmo Duarte:
“BONITÃO - (Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível) A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?
ZÉ - (Muito ingenuamente) O senhor?
BONITÃO – Sim! Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.” (ANSELMO DUARTE, 1962)
Esta ruptura no diálogo deixa a impressão de que Zé-do-burro não é tão inocente, apenas deixa a impressão de ser um homem omisso quanto ao que pode acontecer com a esposa Rosa, caso a deixe ir com o Bonitão. Em contrapartida, no texto original o Bonitão usa de artimanha para convencer um homem inocente, o que descaracteriza, brevemente, o protagonista da história.
Há também modificações simples no texto, como por exemplo, neste trecho. A seguir o texto de Dias Gomes:
“ZÉ - Eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...
BONITÃO - (Rapidamente) Oh, não, a cruz não deve ficar sozinha. Esta zona está cheia de ladrões. A cruz é de madeira e a madeira está caríssima.”
Abaixo a modificação na fala de Zé-do-burro e de Bonitão, sendo que o trecho final do diálogo foi cortado no filme: “A cruz é de madeira e a madeira está caríssima”.
ZÉ – Obrigada, mas eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...
BONITÃO - (Rapidamente) É sim! O senhor não deve deixar a cruz sozinha. Esta zona está cheia de ladrões.”
O jogo de palavras é mantido, tanto no texto teatral quanto no cinematográfico. No entanto, é no segundo texto que o duplo sentido pode ser mais facilmente percebido, não só na encenação de Zé Bonitão, mas pelo fato de anteriormente Rosa dizer que uma cruz Zé-do-burro carrega e a outra vai atrás dele. Quando Bonitão fala que não se deve deixar a cruz sozinha, pois há ladrões na região, o jogo de palavras é ainda mais reforçado, pois fica evidente que Bonitão refere-se à mulher, não à cruz de madeira. Bonitão é o grande ladrão da região.´
O texto apresenta outros cortes e modificações, mas também acréscimos e detalhes que não estão no texto original de Dias Gomes, como por exemplo, o nome do hotel. Na produção de Anselmo Duarte, o hotel tem o nome de Ideal. No texto, que aparece abaixo, acrescenta uma frase: “Além do mais, essa história de hotel não está no trato”.
“ZÉ - É o que eu acho. Não devo sair daqui. Além do mais, essa história de hotel não está no trato”
Uma mudança brusca do original é o final da cena analisada acima. Por Dias Gomes, Zé, “senta-se ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, é vencido pelo sono. As luzes se apagam em resistência”, enquanto que no filme ele apenas abraça a cruz e rapidamente corta para Rosa e Bonitão correndo na chuva, com destino ao hotel.
No filme o personagem Bonitão é mais astuto, pois percebe rapidamente o quanto Zé-do-burro é inocente, sendo que na peça teatral ele trabalha mais o seu discurso para conseguir convencê-lo. Por outro lado, Rosa mostra ser uma mulher omisssa. Na peça, Rosa é aquela que tem como objetivo a satisfação de seus próprios interesses, pois casa-se com aquele que tem terras, o “melhor” homem da região.
Já no filme, apesar de estar muito interessada em ter uma cama para dormir, ela, inicialmente, não confia em Bonitão e até rebate Zé a respeito da ideia de deixá-lo e seguir até um hotel, acompanhada por um estranho. Contudo, a sede por um homem, acaba jogando-a nos braços de Bonitão.
A inocência de Zé pode ser destacada novamente quando ele nem mesmo percebe o ocorrido entre a mulher e o Bonitão, na noite anterior. Por sua vez, Rosa omite o fato, o quanto pode e somente quando não consegue lidar com a situação, revela.
De ingenuidade tamanha, Zé-do-burro não é somente enganado por Bonitão, mas também pelos praticantes de candomblé que tentam usá-lo como líder contra a discriminação que sofrem da Igreja Católica e os jornalistas sensacionalistas que transformam a promessa de dar a terra -o que ele fez antes de seguir até a igreja de Santa Barbára- aos pobres em grito pela reforma agrária.
O cenário no filme com a visão do diretor é muito diferente do apresentado no texto teatral, em que, apesar dos detalhes descritos, permite que o leitor imagine o espaço, ou seja, cada um tem o seu próprio cenário, de acordo com a imaginação.
Algumas adaptações realmente falham na transposição, retirando, até mesmo, informações importantes do texto original. Há também situações em que as adaptações são melhores recebidas pelo público do que o texto original. Acredito que há espaço para ambos, porém nada é mais agradável do que a leitura de um texto original, ou seja, é preciso beber da verdadeira fonte, para que, então, tenhamos a opinião formada antes de ter acesso à outras visões.