sábado, 23 de novembro de 2024

.: Entrevista: Antonio Pokrywiecki expõe medo do futuro em conversa


Uma geração criada em meio às consequências do neoliberalismo, assistindo filmes apocalípticos e observando a degradação ambiental em escalada, parece compartilhar uma série de temores. Utilizando-se da sátira e do potencial inventivo do conto para forçar as barreiras entre realidade e ficção, o autor Antonio Pokrywiecki aborda esses temores em “Dentes de Leite”, lançamento do selo Cachalote, da editora Aboio. As narrativas da obra, mesmo que  fragmentadas, conseguem criar um retrato certeiro da realidade contemporânea.

Pokrywiecki nasceu em Joinville, em Santa Catarina, e atualmente vive em São Paulo, capital. Ele estreou na literatura com o romance “Tua Roupa em Outros Quartos” (Patuá, 2017) e tem contos publicados nas antologias “2020, o Ano que Não Começou” (Reformatório, 2021), “Antologia - Contos” (Selo Off Flip, 2022) e “Realidades Estilhaçadas” (Mondru, 2023). Compre o livro "Dentes de Leite" neste link.


Quais são os temas centrais de “Dentes de Leite”?
Antonio Pokrywiecki - Embora o livro não tenha a intenção de debater temas específicos, após a escrita eu me dei conta de que alguns temas permeavam todos os textos: o medo do futuro, a opressão pelo trabalho e o hedonismo deprimido.


Por que você decidiu abordar esses temas?
Antonio Pokrywiecki - A consciência do fim do mundo é algo que faz parte da minha identidade, da minha forma de viver, das escolhas que faço desde quando acordo até quando me deito, embora eu sempre tenha recalcado esse sentimento. Acredito que muitas pessoas da minha geração se identifiquem com isso. Em meu livro há uma miríade de personagens erráticos ou fetichistas, escravos de um prazer individualizado e cada vez menos possível. Essa busca incessante e solitária pelo prazer é resultado de um esgotamento de alternativas políticas e sociais ao neoliberalismo. A sensação é de impotência coletiva, algo que Mark Fischer cunhou como hedonismo deprimido, e que permeia muito do meu texto. 


O que te motivou a escrever essa obra?
Antonio Pokrywiecki - Eu vinha trabalhando na escrita de um romance, e a verdade é que o processo de escrita de romance, para mim, é sempre torturante. Você se enfia em um buraco e não sabe como sair dele, fica meses sem encontrar o caminho de volta. Você fica travado, passa meses travado. Aí você se encontra e retoma a escrita, ou desiste. Foi o que eu fiz.


Por que você optou por contos?
Antonio Pokrywiecki - Desisti de escrever o romance e passei a escrever contos como uma forma de reencontrar a diversão na escrita, na invenção. Escrever contos, para mim, é como passar uma noite divertida com alguém, em que tudo pode acontecer. Você não tem um compromisso de longo prazo com a forma, com o estilo. Suas decisões podem ser revertidas em poucas páginas, quando uma nova história se inicia. Isso dá ao autor uma liberdade que o romance nem sempre permite.


De onde surgiu o título “Dentes de Leite”?
Antonio Pokrywiecki - De certa forma, o título veio antes do livro. “Dentes de Leite” foi um título que pensei aos  dezoito anos, para um livro que reunisse meus primeiros contos. Acabei desistindo da ideia, até que, dez anos depois, conforme o livro ganhava forma, eu escrevi um conto no qual um menino tem seus dentes arrancados em um episódio de violência escolar. É um conto muito especial para mim, porque explora essas experiências definidoras da infância e da juventude, que deixam marcas permanentes, algo que também está presente em outros contos. Os dentes são descartados, mas fica a lembrança de tê-los arrancados. “Dentes de Leite” foi uma escolha óbvia de título para mim e acabou, meio que sem querer, amarrando o livro.


Por que você escolheu contos fragmentados para essa obra?
Antonio Pokrywiecki - Quando eu começo a escrever um conto, eu nunca sei o que vai acontecer ao fim da história. Geralmente começo por uma cena, que puxa outra, que puxa outra. Isso faz com que meu processo de escrita seja fragmentado por si só. Eu vou descobrindo a história conforme avanço, e o leitor também. No fim, a soma das partes gera uma compreensão do todo. Esse é o motivo pelo qual os contos deste livro são fragmentados, é meu processo de criação. Existe uma tendência geral a fragmentação de conteúdo em vídeos curtos, parágrafos curtos, filmes curtos, músicas curtas. Tudo são pílulas e cortes, com a liberdade para acelerar e pular o que for. Existe uma obsessão por eficiência comercial, conquistar a atenção do consumidor exigindo o mínimo atrito, para se manter competitivo mercadologicamente. Minhas intenções passam longe disso, e evito pensar muito na experiência de leitura. Na literatura, paradoxalmente, a fragmentação exige mais do leitor, que leva mais tempo para entrar no texto, exigindo mais concentração e dedicação. Acaba sendo menos como uma história, mais como um quebra-cabeças que se monta a dois. Embora eu não queira propor um contraponto à lógica do algoritmo, acredito que ignorá-la e escrever sem abrir concessões seja uma forma de recusa. 

Quais são suas inspirações na escrita?
Antonio Pokrywiecki - O livro levou quatro anos para ser escrito, e foi influenciado, em forma e conteúdo, por muita coisa, além de literatura e arte. Eu sou fascinado por autoajuda, por exemplo, e às vezes sou influenciado por uma peça publicitária, desenho animado, reality show, livros técnicos e de negócios. Eu me divirto em livrarias de aeroporto, por exemplo.


Quais escritores te influenciaram?
Antonio Pokrywiecki - Na literatura, sou um entusiasta do Oulipo, especialmente influenciado por Georges Perec, do pós-modernismo norte-americano e do conto argentino. Destacaria também Roberto Bolaño, Lydia Davis, George Saunders e Donald Barthelme, que são autores-chave, para mim, quando se trata de escrita em formas breves.


Qual sua principal estratégia para desenvolver seu processo criativo?
Antonio Pokrywiecki - Meu processo criativo se baseia em fazer longas caminhadas pelo bairro e tentar escrever todos os dias. Sou bastante disciplinado nesse sentido, e acredito que a constância viabilize  a criatividade. Caminhar é a parte mais importante, para mim. Quando estou bloqueado, geralmente é porque não andei o bastante. Boa parte dos contos surgiram de ideias que tive caminhando, e anotei imediatamente. Com "Nico e Kira" tive a ideia inicial do conto enquanto caminhava na praia, sem nada para anotar. Lembro que naquele dia interrompi a caminhada ali mesmo, e voltei apressado para casa, repetindo a ideia em voz alta para não esquecer. Esquecer uma ideia é a pior coisa que pode acontecer, é imperdoável. De modo geral, meus contos surgiram com algum estalo, uma coceira, uma dor de dente. Nunca começo a escrever com uma ideia clara de como vou finalizar. É o trabalho diário de escrita - e investigação - que orienta o caminho da história, permitindo que o texto se mova em direções não planejadas. E para isso, é necessário constância e paciência. A maior parte dos contos deste livro levaram meses para serem escritos. 

Na sua obra, há uma recusa à verossimilhança, por que você fez essa escolha?
Antonio Pokrywiecki - Para mim, o realismo é uma doença, e a tradição literária brasileira está molecularmente contaminada. O compromisso com a verossimilhança impõe limitações criativas ao texto, impede que a história se desenvolva de tantas outras maneiras mais inventivas. Meus contos, de modo geral, são enquadrados dentro de parâmetros realistas, mas deixo o caminho aberto para outras possibilidades.  


Escrever o livro te ajudou de alguma forma a encarar os desafios da atualidade e a realidade que você aborda nos contos?
Antonio Pokrywiecki - Escrever me ajuda todos os dias a encarar o insólito da vida. Quando não estou escrevendo, estou ansioso e perdido. Minha vida só está em ordem quando estou trabalhando em alguma história, quando sinto que a roda está girando dentro da minha cabeça. Assim, consigo lidar com o que for. A única forma que tenho de lidar com os problemas, do mundo e os meus, os que controlo e os que não controlo, é escrevendo. O processo de escrita, que é um processo de investigação e descoberta, cria um paradoxo interessante, em que aquilo que me causa incômodo é a principal, a melhor e talvez a única ferramenta de trabalho que tenho. É um ciclo de dependência, vicioso mas também virtuoso, onde dependo do insólito para exercer o que amo - e em consequência, acabo por amar também o insólito.



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