sexta-feira, 13 de setembro de 2024

.: "Línguas" conta a história de um amor de infância que atravessa a vida


A história de um amor de infância que atravessa a vida é o mote de Domenico Starnone para refletir sobre nossos verdadeiros laços afetivos. O livro "Línguas", lançado pela editora Todavia, começa em Nápoles, anos do pós-guerra. Um menino passa horas na janela do apartamento fantasiando ser poeta. No prédio da frente, uma menina linda de vasta cabeleira negra se arrisca dançando no parapeito da sacada. Por um amor assim, um menino destemido pode se lançar a proezas extremas, como duelos sangrentos e até mesmo falar italiano (e não mais napolitano, a língua da família e da intimidade). 

Papel fundamental na sua vida tem a avó — que nutre por ele uma adoração desmesurada —, a velar sobre suas bravatas, sentada no cantinho da cozinha, contando histórias do passado e explicando nossa relação com os mortos. Ela não é hábil com as palavras, mas o que lhe falta de domínio do idioma sobra em imaginação, calor e afeto.

Há também um amigo, o arrojado Lello, igualmente fascinado pela menina. "Línguas" conta a história desses três personagens com destinos que ficam inextricavelmente unidos para sempre. Os dois garotos, apaixonados à primeira vista pela “milanesa” - como se referem à misteriosa garota -, embarcam em uma intensa rivalidade para atrair sua atenção. Até que, um dia, durante as férias, ela desaparece. E assim também parece evanescer parte de suas infâncias.

Anos mais tarde, já na universidade e distantes do mundo das brincadeiras, os caminhos dos dois antigos companheiros se cruzam — e de novo por causa do amor por uma mulher. Agora adulto, o protagonista precisa se lançar em busca da verdadeira identidade da menina por quem foi apaixonado durante a vida inteira. Livro irresistível, narrado com leveza e intensidade emocional, Línguas é o exame delicado de como a descoberta do amor e a tomada de consciência da morte parecem confluir, marcando o fim da infância e anunciando a vida adulta, com suas luzes e sombras.


O que disseram sobre o livro
“É impossível não ficar fascinado pelo poder da palavra de Starnone.” Gloria Maria Ghioni

“Porque a literatura está sempre lá, em equilíbrio entre a mentira e a morte, onde Domenico Starnone faz dançar sua linda menina.” - La Stampa


Sobre o autor
Domenico Starnone
nasceu em 1943, em Nápoles, e atualmente vive em Roma. É um dos mais traduzidos escritores italianos contemporâneos. Em 2001, recebeu o prestigioso Prêmio Strega. Dele, a Todavia já publicou "Laços", "Assombrações", "Segredos" e "Dentes".

Trecho do livro
Seja como for, não sosseguei; eu era muito agitado naquela época. Tinha na cabeça várias palavras e um bocado de fantasias, e todas elas diziam respeito à menina. Não havia uma coerência, a meu ver as crianças não a têm, é uma doença que contraímos ao crescer. Eu queria — me lembro — muitas coisas juntas. Queria, por um golpe de sorte, descobrir seu apartamento no segundo andar, tocar a campainha e dizer ao pai ou à mãe — melhor à mãe, os pais ainda hoje me assustam — na língua dos livros que eu lia graças ao professor Benagosti, que os emprestava a mim: a amada filha de vocês, prezada senhora, dança maravilhosamente no parapeito da sacada, e é tão linda que não consigo dormir de noite só de pensar que ela pode morrer na calçada, com o sangue jorrando do nariz e da boca como meu avô pedreiro. 

Mas eu também queria ficar na janela e esperar que a menina voltasse a brincar na sacada para lhe mostrar que eu também sabia correr perigos mortais, movendo-me da janela do banheiro até a da cozinha, um passo depois do outro, sem nunca olhar para baixo: uma aventura que eu já tinha feito duas vezes — visto que era fácil, as janelas tinham o peitoril em comum —, e se ela me fizesse um sinal de concordância, eu repetiria com gosto pela terceira vez. Enfim eu queria, se algum dia pudesse lhe falar, que ela soubesse — uma palavra puxa outra — que eu estava apaixonado por sua bela alma e que meu amor seria eterno, e que, se ela fazia questão de dançar no parapeito e cair lá embaixo, depois poderia contar comigo com certeza, pois eu iria pessoalmente buscá-la no além-túmulo, sem jamais fazer a bobagem de me virar para olhá-la. Tornar-me um espião, morrer para me mostrar audaz, puxá-la para fora da terra dos mortos não estavam em contradição em minha cabeça, ao contrário, me pareciam momentos distintos de uma mesma história em que eu, de um modo ou de outro, sempre causava uma bela impressão.

No entanto, não só não consegui entrar em contato com a menina, mas também um longo período de chuvas me impediu de admirá-la durante suas brincadeiras na sacada. Então, entre uma chuvarada e outra, me dediquei à procura da fossa dos mortos para não estar despreparado caso ocorressem trágicos eventos. Logo depois que minha avó me falou sobre ela, fiz algumas tentativas, mas sem perder muito tempo com isso. Graças aos livros do professor Benagosti, aos quadrinhos que minha mãe me comprava e aos filmes que via no cinema Stadio, eu tinha um monte de papéis em que atuar — o caubói, o sem família, o mutilado, o náufrago, o caçador, o explorador, o cavaleiro errante, Heitor, Ulisses, o tribuno da plebe, só para citar alguns —, e buscar a entrada na terra dos mortos se tornou uma atividade secundária. Porém, com a entrada da menina em minha vida aventurosa, me esforcei mais e tive sorte.

Numa tarde em que — como dizia, nervosa, minha avó — mo chiuvéva, mo schiuvéva, mo schizzichiàva, de modo que eu não podia me afastar muito de casa, no máximo circular com um amigo no pátio cheio de nuvens nas poças d’água, descobri no chão, para além do grande canteiro com palmeiras, uma pedra retangular que, se eu me deitasse sobre ela, se mostrava bem mais comprida que eu e tinha uma grande tranca reluzente de chuva. Quando a vi, estremeci e congelei não só por causa do frio úmido, mas também de medo. 

— O que foi? — perguntou assustado meu amigo, que se chamava Lello e morava no bloco B; eu gostava dele porque, quando outros amigos não estavam presentes, ele falava num italiano que se aproximava um pouco do escrito.

— Silêncio.

— Por quê?

— Os mortos estão ouvindo.

— Que mortos?

— Todos.

— Que nada.

— Sim, eles estão aqui embaixo. Esta é a pedra pela qual, se tirarmos a tranca e a levantarmos, os fantasmas fogem.

— Não acredito.

— Toque na tranca e você vai ver o que acontece.

— Não vai acontecer coisa nenhuma.

— Toque.

Lello se aproximou, eu me mantive à distância. Ele se ajoelhou, tocou com cautela a tranca e no mesmo instante surgiu um raio nunca visto antes, tão intenso que nos cegou, ao qual se seguiu um estrondo furioso. Eu saí correndo, e ele veio atrás de mim, pálido de medo.

— Viu? — falei sem fôlego.

— Vi.

— Você iria comigo lá embaixo?

— Não.

— Mas que tipo de amigo você é?

— Tem a tranca.

— A gente quebra.

— Não é possível quebrar uma tranca.

— Você diz isso porque está se cagando todo. Se não quiser vir, vou chamar uma amiga minha que não tem medo de nada.

Depois que eu disse isso, aconteceu uma coisa que me espantou. Lello sorriu com malícia e perguntou:

— A milanesa?

Descobri naquela circunstância que a menina de meus pensamentos e suspiros se chamava desse modo obscuro — a milanesa — e que, além de minha atenção, tinha atraído a de muitos outros colegas. E não só isso. Era de domínio público que, quando fazia sol, eu a espiava abobalhado da janela ou passava muito tempo em frente ao portão dela. Não é verdade? Fechei-me em meu habitual mutismo, mas antes lhe disse: vafanculostrunznunmeromperocàzz, que era a fórmula necessária quando ninguém parecia capaz de entender a pessoa especial que eu era e que grandes coisas faria.


Ficha técnica
"Línguas"
Autor: Domenico Starnone
Gênero: ficção estrangeira
Categoria: romance
Tradução: Maurício Santana Dias
Capa: Elisa V. Randow
Imagem da capa: Luigi Ghirri
Páginas: 144
ISBN: 978-65-5692-615-5
E-ISBN: 978-65-5692-614-8 

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