Pedro Só, em julho de 2024.
A Universal Music Brasil faz o relançamento do antológico álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”, em versão vinil colorido, com a contracapa original. Lançado em julho de 1968, o disco-manifesto de um dos movimentos culturais mais originais do século 20 continua relevante como nunca. Mas que fique claro: o álbum não é obra a ser admirada com cerimônia, como monumento histórico. Por mais que tenha sido estudada e dissecada academicamente, para além da contundência e da abrangência em conceitos e bandeiras, é um baita disco a ser desfrutado com prazer sensorial e cognitivo. “Tropicália...” traz ideias musicais e arranjos surpreendentes, grandes canções, sacadas de repertório e interpretações memoráveis. Tudo com incrível coesão: em seus 38 minutos e 45 segundos, a variedade faz a unidade.
É um disco coletivo com assinatura personalíssima, traçada por dois baianos na faixa dos 25 anos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, junto com o maestro Rogério Duprat (carioca radicado em São Paulo, então com 32 anos), autor de todos os arranjos. Um triunfo que nunca seria o mesmo sem a contribuição de um grupo paulistano superjovem chamado Os Mutantes - Rita Lee tinha 20 anos, Arnaldo Baptista, 19, e Sérgio Dias, “de menor”, 17 -, presente em cinco das 12 faixas. Tanto quanto a sinergia musical, impressiona a sintonia de senso de humor entre os envolvidos.
Gravado no estúdio RGE, centro de São Paulo, em maio de 1968, quando o Vietnã ardia em napalm e Paris era uma festa de barricadas, o disco nasceu a partir da subversão. No caso, do plano inicial da gravadora Phonogram. A ideia era lançar uma coletânea de candidatas a hit, nos moldes da série de uma concorrente. Mas o produtor Manoel Barenbein foi convencido por Caetano e Gil a fazer algo diferente: um LP todo amarrado conceitualmente, a partir de uma espécie de roteiro cinematográfico elucubrado por Caetano. Com direito a colagens sonoras, efeitos de sonoplastia e trilhas incidentais, seria um álbum da nova era dos álbuns, um pouco como o “Sgt Peppers’ Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, lançado em junho de 1967.
Caetano, Gil, Duprat e Barenbein gravaram em quatro canais, como George Martin e os rapazes de Liverpool. E, se tiveram muito menos tempo (apenas quatro semanas), recursos tecnológicos e financeiros, contaram com a contribuição humana milionária de Gal Costa, Tom Zé e Nara Leão, além dos já citados Mutantes - e também de momentos iluminados de dois jovens poetas.
O baiano José Carlos Capinan, parceiro de Gil na faixa de abertura, “Miserere Nobis” (“tenha piedade de nós”, em latim), como bom egresso do engajado CPC (Centro Popular de Cultura), deixa claro que aquela revolução pop e colorida era também revolucionária. As referências católicas da letra ensanduicham a fome do Brasil profundo entre fatias de religião e de opressão. “Miserere...” é uma prece ácida para um país que rima com fuzil e que vive sob a mira dos canhões, como fica sonoramente explícito ao fim da gravação. A faixa final, “Hino ao Senhor do Bom Fim” (composto para o centenário da Independência da Bahia, em 1923) amarra o diálogo com Caetano, Gil, Gal e os Mutantes juntos, em cortejo que se dissolve em uivos e tiros.
Mas coube ao piauiense Torquato Neto (1944-1972) lapidar e avançar no manifesto prenunciado por “Tropicália”, a canção (incluída no primeiro LP solo de Caetano). “Geleia Geral”, escrita com Gil, usa a expressão do poeta Décio Pignatari (1927-2012), autor da frase “na geleia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”, e extrai do cantor baiano seu grande momento no disco. O mocotó de Gil enumera referências pop (concurso de miss) e populares (carne seca na janela), com estocadas contundentes (“hospitaleira amizade, brutalidade jardim”) e uma bandeirosa citação do “Manifesto Antropófago” lançado pelo escritor modernista Oswald de Andrade (1890-1954) em 1928: “a alegria é a prova dos nove”. Assim fica explícita a filiação maior do tropicalismo, traduzida também na mixórdia entre bumba-meu-boi e iê-iê-iê (“subgênero” do rock cujo batismo foi puro tropicalismo avant la lettre), com lapadas incidentais de “O Guarani” (Carlos Gomes), “Pata Pata (da sul-africana Miriam Makeba) e “All the Way” (hit cantado por Sinatra que originou a expressão “sambarilove”).
“Parque Industrial” apresenta ao planeta a novidade Tom Zé (autor da música), junto a Gil, Caetano, Gal e os Mutantes. Nela, Duprat apronta mais ainda nas intervenções orquestrais, tacando o “Hino Nacional” e jingle de Melhoral na mistura efervescente. O experimentalismo e a irreverência pop do maestro atingem níveis ainda mais altos na lapidar “Panis et Circenses”, com os Mutantes ambientados em meio a “pessoas na sala de jantar”, uma gravação cultuada mundialmente há mais de três décadas.
O hit do álbum, porém, seria outra obra-prima, simploriamente pop, lançada como single em julho: “Baby”, perfeita na voz de Gal Costa (com um help de Caetano), apesar de originalmente escrita para Maria Bethânia. A estrela de Gal também luz no momento mais puramente lírico do LP: “Mamãe, Coragem”, parceria de Torquato com Caetano. Sua voz preciosa ainda é usada inteligentemente como elemento, junto com a de Rita Lee, em “Enquanto Seu Lobo Não Vem”, que denuncia a repressão da ditadura com agogô e uma “Internacional” socialista incidental.
Dentre as sacadas de repertório, “Coração Materno”, o dramalhão gore de Vicente Celestino (1894-1968, morto no dia da festa de lançamento deste disco), costura conceitualmente o desafio ao bom gosto estabelecido, com a orquestração solene de Duprat (para Caetano, “uma das maiores vitórias do tropicalismo”). Já “Três Caravelas”, versão de Braguinha para um mambo estilizado espanhol, gravada por Emilinha Borba em 1957 (em arranjo nada kitsch de Radamés Gnatalli), é uma pérola graciosa que se casa deliciosamente com as vozes de Caetano e Gil - e, ironicamente ou não, com o ideário tropicaliente.
O bolero trágico-irônico “Lindonéia” tem o mérito de trazer para o disco o carisma de Nara Leão. A cantora havia encomendado a Caetano uma canção inspirada numa admirável obra de técnica mista de Rubens Gerchman (1942-2008) intitulada “A Bela Lindonéia ou A Gioconda do Subúrbio”, com notas de jornal sanguinolento e desamor de periferia. O tropicalismo, ao que parece, estava mais avançado que a pop art de Andy Warhol. E ficou menos datado também, como prova “Batmacumba”, escrita como poema concreto, que segue século 21 adentro como um irresistível groove afro que anima pistas em todo mundo.
Há mais de vinte anos, “Tropicália ou Panis et Circenses” figura no top 10 de todas as enquetes e eleições sobre os melhores discos brasileiros de todos os tempos. Internacionalmente, desde 1989, quando o selo Luaka Bop (de David Byrne) lançou “Brazil Classics 1: Beleza Tropical”, e o tropicalismo inspirou estudos como “Brutalidade Jardim”, do americano Christopher Dunn, a reputação do disco só faz crescer. Para entender os motivos, basta ouvir.
Faixas do álbum “Tropicália ou Panis et Circenses”:
Lado A:
1 – “Miserere Nobis” (Gilberto Gil / Capinan) – Gilberto Gil
2 – “Coração Materno” (Vicente Celestino) – Caetano Veloso
3 – “Panis et Circenses” (Caetano Veloso / Gilberto Gil) – Os Mutantes
4 – “Lindonéia” (Caetano Veloso / Gilberto Gil) – Nara Leão
5 – “Parque Industrial” (Tom Zé) - Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes
6 – Geléia Geral (Gilberto Gil / Torquato Neto) – Gilberto Gil
Lado B:
1 – “Baby” (Caetano Veloso) – Gal Costa e Caetano Veloso
2 – “Três Caravelas” (A Alguero / G Moreu / João de Barro) – Gilberto Gil e Caetano Veloso
3 – “Enquanto Seu Lobo Não Vem” (Caetano Veloso) – Caetano Veloso
4 – “Mamãe Coragem” (Caetano Veloso / Torquato Neto) – Gal Costa
5 – “Bat Macumba” (Caetano Veloso / Gilberto Gil) – Gilberto Gil
6 – “Hino do Senhor do Bonfim” (João Antonio Wanderley / Arthur De Salles) – Gal Costa, Gilberto Gil, Os Mutantes e Caetano Veloso
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