segunda-feira, 6 de maio de 2024

.: "O Vazio na Mala" guarda os segredos da 2ᵃ Guerra Mundial no Teatro Sesi-SP


Criado a partir da história de uma família sobrevivente do Holocausto, o espetáculo segue em cartaz no Teatro Sesi-SP até dia a 30 de junho. Foto: João Caldas

Entre ficção e realidade, o espetáculo "O Vazio na Mala" guarda os segredos  de uma família sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Criado a partir da história de uma família sobrevivente do Holocausto, o espetáculo segue em cartaz no Teatro Sesi-SP até dia a 30 de junho. Idealizado pela atriz Dinah Feldman, que também atua, tem texto de Nanna de Castro e direção de Kiko Marques. Com Emílio de Mello, Fábio Herdford e Noemi Marinho.

A partir de fatos verídicos mesclados a uma trama ficcionada, a história de uma família  sobrevivente do Holocausto - que imigrou da Alemanha para a China e em seguida fugiu da ocupação japonesa em Shangai, em 1941, vindo para o Brasil - é recuperada em "O Vazio na Mala". Inspirada e provocada pelo drama da perseguição nazista, a dramaturgia inédita cria uma ficção, atual, que desdobra inúmeros temas a partir do trauma familiar: as relações que se estabelecem pelo silêncio na família e na sociedade; e, também, como o afeto regenera feridas e aparece de maneiras inusitadas.

Em "O Vazio na Mala", o silêncio é um dos personagens principais, guardado e vigiado dentro de uma mala. Esta mala antiga, um objeto aparentemente sem importância, foi testemunha dos horrores que tentam esconder dentro dela. E nessa busca pelo vazio, que ali jaz, é que a história se revela. Concepção e idealização de Dinah Feldman, texto de Nanna de Castro e direção de Kiko Marques. No elenco, Noemi Marinho, Emílio de Mello, Fabio Herford e Dinah Feldman. Compõem a equipe Gregory Slivar (trilha sonora), Márcio Medina (cenário), João Pimenta (figurinos), Louise Helène (visagismo) Wagner Pinto (luz), André Grynwask (videomapping) e Marcela Horta (direção de produção). A temporada conta com interpretação em Libras e sessões com audiodescrição aos sábados e domingos.


Idealização e texto
A atriz Dinah Feldman idealizou o espetáculo ao tomar conhecimento, por meio do depoimento em vídeo do primo William Jedwab, dos fatos ocorridos com pais e avós dele. De valor narrativo, os dados fornecidos na gravação e uma mala de couro surrada vinda da Segunda Guerra (contendo documentos em alemão e chinês), trazida pelos parentes, contam a trajetória e o drama dos Jedwab. Hoje são documentos preservados e guardados no Museu Judaico de São Paulo.

À saga da família, junta-se a ficção em torno da curiosidade sobre o conteúdo de uma velha mala de couro. A ideia de montar a peça nasceu paralelamente ao trabalho de Dinah no núcleo Educação e Participação do Museu Judaico de São Paulo, quando conviveu por um ano com a mala, exposta no local depois de doada pelo primo. Nas visitas guiadas, a atriz contava a história do objeto. “Falando da mala, fui desenvolvendo o projeto do espetáculo”, diz, informando que ela e o primo logo escolheram Nanna de Castro para escrever o texto.

Em "O Vazio na Mala", Samuel (Emílio de Mello), renomado jornalista de guerra, retorna ao Brasil em 2005 para vender o apartamento dos pais, fechado desde a morte deles, há mais de cinco anos. Porém, ao mergulhar nas memórias familiares, ele se depara com conflitos e segredos. A avó, Esther (Noemi Marinho), guarda numa mala fechada os relatos e documentos da fuga da Alemanha nazista. Em meio a revelações sobre o passado violento de seu pai, Franz (Fabio Herford), a cuidadora Ruth (Dinah Feldman) surge como elo de afeto e uma força propulsora do encontro entre Samuel e Esther e das transformações necessárias a cada um. Baseada em eventos reais, "O Vazio na Mala" explora temas universais como família, ciclos e a busca por significado.


Sobre a montagem – por Kiko Marques
A encenação de Kiko Marques é centrada nas atuações, no poder das palavras, na qualidade ao mesmo tempo particular e pública daquilo que está sendo contado e também na comunhão desses fatores com o cenário, figurinos, luz, som e projeções.  “Contamos uma história criada a partir de um fato real, e que trazemos ao espectador na forma de uma visita aos protagonistas dessa história, um encontro com suas vidas particulares e seus dramas mais íntimos”.  Kiko pretende levar o espectador a ser testemunha e cúmplice dessas vidas e suas trajetórias. “Pra isso os apresentamos à intimidade das personagens, às suas casas, aos quartos de sua infância, seus hábitos, suas roupas”. Ao mesmo tempo, a proposta é centrada na perspectiva ampla dessa história que nasce no holocausto, da fuga de uma mulher judia à perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial, história de uma sobrevivente ao projeto nazista de extermínio em massa de seres humanos. 


“Em cena temos as casas de Esther e Franz, mãe sobrevivente e filho já morto, que aparece na forma de espectro/memória; Sami, neto de Esther e filho de Franz, que chega para visitar ao mesmo tempo a avó e suas memórias de infância; e uma mala fechada onde Esther pretendeu aprisionar sua história, como sua memória que se esvai. Também temos um céu de malas por sobre nosso mundo e nossa mala particular. Um céu de histórias iguais a dela. Temos as duas casas, espelhadas, onde a ação acontece, e que se separam à medida que as memórias se encarnam e o vazio se instaura; temos a segunda guerra e a perseguição que são projetadas nas paredes dessas casas, como balas e bombas a corroer não mais a matéria presente, mas a perspectiva do futuro.”

 
Sobre o texto de Nanna de Castro
Nanna de Castro foi uma das pessoas entrevistadas por Dinah e William quando selecionavam quem escreveria o texto. Da história ouvida por ela, o ponto considerado marcante da trama, “o que tocou minha alma” - foi a relação entre pai e filho. De forma intuitiva e emocional, a autora logo imaginou o resgate dessa relação danificada. “Propus o caminho e William topou”, conta, lembrando do frio na barriga ao imaginar “andar pela história de uma família, pelos meandros afetivos das relações”.

Para escrever o texto, Nanna baseou-se também em entrevistas que fez com pessoas da família de William – a irmã, os amigos do pai, uma tia. “Aprofundei-me em pesquisas no Museu Judaico, estudei histórias similares e li alguns livros, entre eles 'A Garota Alemã', de Armando Lucas Correa; 'Maus, a História de um Sobrevivente', de Art Spiegelman, e 'Ten Green Bottles', de Vivian Kaplan”, conta, observando que a peça tem um lugar quase de uma constelação familiar. “De alguma forma, o teatro tem o poder de revistar a ligação de pai e filho e trazer para um lugar mais saudável”, finaliza.
 

Sobre a cenografia de Marcio Medina
A velha mala de couro – com os segredos e as memórias de uma história de vida - foi o objeto que inspirou e norteou a cenografia de Marcio Medina. Para reproduzir o passado de duas gerações - o quarto de Esther (Noemi Marinho) e do seu filho Franz (Fábio Herford) – o cenógrafo concebeu dois quadrantes espelhados com objetos e mobiliário. O fundo do palco abriga um grande telão de papel - como uma antiga carta -, emoldurado com palavras e fragmentos de frases em hebraico, chinês etc.

Medina explica que as peças retratam o que resta de memória no cérebro e alma de Esther e servem de superfície para inúmeras projeções de lembranças e fatos passados. “Os quadrantes pouco a pouco deslizam para as coxias, deixando o palco nu, deserto. Como o apagamento da mente, fica o nada absoluto. Várias malas ocupam todo o espaço aéreo do palco. Iluminadas, revelam em seu conteúdo imagens de vários grupos perseguidos pelos nazistas na segunda guerra”, explica. “Uma mala pode transportar uma história de sobrevivência, resguardada e reduzida por um apagamento de memória da personagem Esther, de 92 anos. São histórias, objetos e documentos consumidos pela luta e manutenção de uma família”, finaliza Marcio.

 
Sobre o figurino de João Pimenta
O figurinista João Pimenta inverteu seu processo de trabalho na construção do figurino dos personagens. Depois de receber o briefing do diretor Kiko Marques, solicitando “uma roupa casual, do cotidiano”, o criativo logo partiu para a criação das peças. Pelo que absorveu, começou a desenvolver as roupas antes mesmo de ter o texto finalizado e de saber o perfil, as características dos personagens - quem era essa família - mãe, pai,  cuidadora e filho. “Minha proposta com o Kiko foi fazer este caminho inverso - criar o figurino e depois encaixá-lo na necessidade do espetáculo. A gente costuma dizer que na moda a roupa é a segunda pele e que no figurino ela é a primeira pele, a casca do personagem”. Pimenta considera positivo o processo pois permite que o elenco ensaie com as roupas desde o começo e não em uma etapa mais adiante. “Assim, o ator já pode sentir o personagem. E a ideia agora é ir ajustando até finalizar”.

Uma única cor foi concebida para todas as peças - o cinza e suas várias tonalidades. No design, a proposta de mesclar referências de várias não define tempo nenhum. Todas as roupas foram confeccionadas em tecido de alfaiataria, como risca de giz, lã fria, cinza mescla. Para dar a ideia de uma roupa com história, o figurino passou por um tratamento de envelhecimento, menos na roupa do filho. Um vestido em tecido de gola fechada transmite a austeridade demandada pela personagem Esther. Desgastado, o figurino do pai – “uma roupa de ficar em casa” – é formado por camiseta regata, roupão e chinelo. Já o da cuidadora, em tom mais claro, tem fluidez e passa o conceito de um anjo. Camisa e calça social, o do filho jornalista é mais elegante e atual.

 
Sobre a trilha sonora de Gregory Slivar
O universo da música judaica e suas variadas matizes são o foco da pesquisa de Gregory Slivar, autor da trilha sonora. “Com a ajuda de Dinah Feldman, entrevistamos pessoas ligadas à música deste contexto cultural, como músicos de Klezmer, cantores e pesquisadores, bem como também assistimos reuniões em sinagogas. Para além dessas pesquisas, ainda estou experimentando como me apropriar deste material a fim de poder colaborar com a história da peça”, conta Gregory. Uma vez imerso neste universo, Greg pretende usá-lo como inspiração para suas composições. “As músicas irão aparecer como traços de memória e ligações entre os recortes de espaço e tempo da peça”.  Slivar explica que as vozes serão um elemento sonoro de lembrança e, remetendo aos conjuntos tradicionais, uma base instrumental será usada para realizar a costura das cenas. “Penso na trilha como este caminho entre o subjetivo destas personagens, suas buscas de um lugar de pertencimento, a fuga dos traumas e seus ritos de cura”.

 
Serviço
Espetáculo "O Vazio na Mala"
Culturas em Movimento – coletivo artístico e produção cultural
Drama, adulto, 90 minutos. Recomendado para maiores de 14 anos
Centro Cultural Fiesp. Teatro do Sesi - São Paulo. Av Paulista, 1313
Dramaturgia: Nanna de Castro. Direção: Kiko Marques. Elenco: Dinah Feldman, Fábio Herford, Emílio de Mello e Noemi Marinho
Temporada - De quinta a sábado, às 20h00. Domingo, às 19h00
Até dia 30 de junho, de quinta a sábado, às 20h00, e domingo, às 19h00
Libras e audiodescrição: sábados e domingos
Debates: um domingo por mês
Gratuito, tem que fazer agendamento pelo site do Sesi
 
Oficina: “Ler Dramaturgia” - com Silvia Gomez
Dias 06, 13, 20 e 27 de maio, das 19h30 às 21h30
Sobre a oficina - Ler para escrever. Escrever como modo de ler. Partindo da inspiração de que “a invenção literária é, na verdade, um trabalho da memória”, como afirmou o escritor Jorge Luis Borges, esta jornada de encontros é dedicada a quem se interessa em aprofundar o olhar para a leitura de peças teatrais e suas especificidades: estrutura, imagens, repetições, oposições, tensão e interesse.
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