Em "Assim Nasceu Uma Língua", publicado pela Tinta-da-China Brasil, linguista Fernando Venâncio desfaz preconceitos linguísticos e conta a história do português a partir da formação das palavras.
Dos dois lados do oceano, aprendemos a nos orgulhar das origens latinas, supostamente diretas, da língua portuguesa que usamos todos os dias. Mas será que foi assim mesmo? Em "Assim Nasceu Uma Língua: sobre as Origens do Português", o linguista português Fernando Venâncio demonstra que o idioma de Camões nos chegou de Roma de forma oblíqua, e é na realidade uma variação do galego, língua de pastores de ovelhas do noroeste da Espanha. Em outras palavras, menos latim em pó, e mais o sumo da língua galega.
Com graça, conhecimento e espírito crítico, Assim nasceu uma língua mostra como a ideia de uma pureza latina serviu a projetos nacionalistas desde o século 13 até o 21. O livro chega às livrarias brasileiras em maio pela Tinta-da-China Brasil, com prefácio do linguista Marcos Bagno e capa de Vera Tavares.
No prefácio especialmente escrito para a edição brasileira, o linguista Marcos Bagno, autor de Preconceito linguístico, destaca a importância da obra de Venâncio: “Para o público leitor brasileiro, muito do que se diz neste livro há de causar surpresa, espanto e até indignação. Os mitos culturais muito impregnados no senso comum resistem com brio às investidas da racionalidade”.
A prosa de cronista e o rigor de linguista e crítico literário de Venâncio revelam também, por meio de exemplos e boas histórias, que o sabor de muitas palavras do nosso cotidiano tem um herói quase desconhecido: o til, sinal gráfico que ao saltar para cima de certas vogais tornou-se uma das marcas da personalidade da nossa língua.
Assim nasceu uma língua conta essa história a partir das transformações das palavras do galego em português, buscando alguns dos fenômenos que tornaram a língua tão nossa, como o ditongo “ão”. As palavras são as protagonistas dessa história, o que dá especial sabor ao livro, escrito com didatismo e voltado para todos os leitores, especializados ou não. O conhecimento de linguista se combina ao olhar do leitor apaixonado pela língua literária. Nem por isso endossa o seu uso político através dos tempos, inclusive os dias de hoje, quando o nacionalismo volta a preocupar o mundo. E uma das lições do livro de Venâncio é a de que a ideia de língua nacional sempre é instrumentalizada pelos oportunistas na política.
Venâncio desmonta a mitologia que precisou apagar a origem galega do português para revesti-la de uma origem clássica e pura, mais adequada às ambições de grandeza de Portugal no século 16, quando a expansão marítima fez do país um dos maiores impérios coloniais. Como Venâncio escreve no livro, “denominar português qualquer variedade linguística anterior a 1400 é resvalar num anacronismo, e pelo menos numa sofrível incongruência. Até essa data, Portugal utilizou a língua que herdara ao fazer-se independente: o galego”.
O império colonial já não existe mais, mas a língua permaneceu, transformada por seus novos falantes. Na avaliação de Marcos Bagno, “o que melhor se faz nesta obra é, acredito, a demonstração – e consequente desmonte – de alguns dos mais arraigados mitos que circulam há muito tempo na cultura linguística de Portugal e, herdeiros que somos dela, na cultura linguística do Brasil também”.
Ao ser publicado em Portugal em 2018, Assim nasceu uma língua surpreendeu os leitores ao abrir o que Venâncio chamou, numa entrevista à imprensa portuguesa, de “alçapões da História do nosso idioma”. Dentro de um desses “alçapões” está, por exemplo, “a intimidade com o galego e a proximidade com o castelhano”. “Ainda hoje juraríamos que ‘genérico’, ‘diamantino’ ou ‘pressuroso’ eram latinismos, mas não, foram criados pelo castelhano e importados pelo português. Uma coisa semelhante, aliás, se deu, e ainda se está a dar hoje, no galego.”
Português e galego, línguas irmãs
Aprendemos na escola que a língua portuguesa nasceu por volta do século 12, ao mesmo tempo que se fundava, no extremo oeste da Península Ibérica, o primeiro Estado nacional moderno de que se tem notícia: o Reino de Portugal. A data precisa seria 1214, quando o rei dom Afonso II redigiu seu testamento, considerado a certidão de nascimento da nova língua nacional. Mais adiante, com Camões, o idioma alcançaria toda a sua glória, consagrando-se, de acordo com o verso do autor de Os Lusíadas, como “última flor do Lácio” — isto é, com um inequívoco DNA latino, vindo “diretamente” de Roma.
O que Fernando Venâncio faz neste livro provocativo é demonstrar que não foi bem assim. E que a rigor o idioma do testamento de Afonso II nada mais é do que o galego. A criação da nossa língua, que hoje tem cerca de 280 milhões de falantes no mundo, vem de bem antes de existir Portugal. A partir do século 7, ainda na alta Idade Média, formou-se no norte da Península Ibérica — na Galiza, cujas maiores cidades são Santiago de Compostela, Corunha e Vigo —, uma nova língua latina, que não apenas daria origem ao português atual, mas resiste até os dias de hoje.
O galego sobreviveu à hegemonia do castelhano durante a unificação da Espanha e, no século 20, à imposição do castelhano nas escolas, sob o franquismo. Hoje o galego é uma das línguas oficiais da Espanha, mas soa mais próximo do português que do castelhano. O leitor brasileiro que fizer a tentativa de ler um jornal em galego, por exemplo, não terá maiores dificuldades de compreensão. Basta ler uma frase, do presidente da Real Academia Galega, Victor Freixane, diretamente em galego: “O portugués e o galego nacen num mesmo territorio e cunha experiencia histórica común, a Gallaecia. Somos, pois, linguas irmás, ningunha submetida à outra”.
O livro foi recebido com entusiasmo e surpresa ao ser publicado em Portugal e ganhou resenha do historiador Rui Tavares, publicada no jornal Público: “Assim nasceu uma língua é um ensaio que transporta em cada linha o entusiasmo que o autor tem pelo estudo da história da nossa língua, que sabe explicar clara e concisamente o que é confuso, que avança hipóteses histórico linguísticas ainda pouco conhecidas do grande público e que não se furta à polémica, dando gosto de ler mesmo quando não se concorda necessariamente com tudo”.
O poeta, ator e humorista Gregorio Duvivier é outro entusiasta do livro de Venâncio. Para ele, “Fernando Venâncio faz do nascimento dessa língua românica um romance. Na contramão dos puristas e patriotas, prova que foi o português que veio do galego, e não o contrário — ops, desculpem pelo spoiler. Como numa tragédia grega (ou galega), percebemos que foi o filho que pariu seu pai — para depois degluti-lo em mil pedaços. Afinal, foram os galegos que nos ensinaram a comer as consoantes, e logo em seguida nós é que os comemos, na mesma cama de Caminhas e Camões. Uma coisa é certa: nunca a etimologia foi tão fascinante — uniu galegos e baianos”.
Novo Acordo Ortográfico
Tendo lecionado na Holanda durante décadas e hoje aposentado no interior de Portugal, Venâncio é um conhecedor da história do idioma e observador fino de suas expressões contemporâneas. Assim nasceu uma língua foi definido na imprensa portuguesa como “o livro de uma vida”, fruto da “curiosidade” e da “vontade de ir até onde ninguém tinha ido”.
É um crítico severo do Novo Acordo Ortográfico de 1990, que tentou unificar as diferentes grafias dos países de língua portuguesa, mas não pelos argumentos nacionalistas que muitos empregaram em seu país. Venâncio apontou inúmeros problemas e contradições na aplicação do Acordo em Portugal. “Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é”, escreveu.
A única vantagem do Acordo, segundo ele, não foi de fato percebida pelos seus criadores: a primazia da pronúncia sobre a etimologia, dando um protagonismo inédito ao português falado. “Pela primeira vez no nosso secular debate ortográfico, a Pronúncia é feita critério decisivo da grafia, assim destronando a Etimologia do topo do pódio, invertendo beneficamente a hierarquia. Mas foi mais sorte que esperteza, já que nunca os autores e promotores do Acordo reivindicaram o cometimento. Só que, no momento de ser aplicada a Portugal essa sã primazia da Pronúncia, as coisas correram mal.”
No mesmo artigo, Venâncio deseja ao Acordo uma “rápida e humana morte” e o qualifica como “brilharete político”. Entre os exemplos de aplicação esdrúxula que ele cita estão as grafias “cócix” (cóccix), “helicótero” (helicóptero), “núcias” (núpcias), “oção” (opção), “óvio” (óbvio), “rétil” (réptil), “sução” (sucção), “tenológico” (tecnológico).
Em entrevistas e em seu livro "O Português à Descoberta do Brasileiro", Venâncio tem buscado mostrar que os portugueses não devem temer a influência do português do Brasil em solo europeu. O uso do português brasileiro nas escolas, universidades, documentos públicos e nos exames em geral vem gerando embates em Portugal. Compre o livro "Assim Nasceu Uma Língua", de Fernando Venâncio, neste link.
Sobre o autor
Fernando Venâncio (Mértola, 1944) é formado em Linguística Geral na Universidade de Amsterdam, onde se doutorou e da qual foi professor. Ensaísta, crítico literário e tradutor, colabora com veículos portugueses de destaque, como Jornal de Letras (JL), Expresso, Colóquio/Letras e as revistas Ler e Visão. É autor de diversos livros, entre eles José Saramago: A luz e o sombreado (2000), Objetos achados: Ensaios literários (2002) e O português à descoberta do brasileiro (2022). Assim nasceu uma língua: Sobre as origens do português foi publicado em 2019 em Portugal e no ano seguinte recebeu o prêmio de ensaio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Garanta o seu exemplar de "Assim Nasceu Uma Língua", escrito por Fernando Venâncio, neste link.
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