Lançado pela editora Todavia, o romance "Nevada", escrito por Imogen Binnie, é um clássico cult da literatura queer e acompanha uma mulher trans descontente em uma viagem pelos Estados Unidos. Com tradução de Bianca Baderna, o livro tem capa de Fernanda Abreu.
A história gira em torno de Maria Griffiths, que tem quase 30 anos, vive no Brooklyn, trabalha num sebo no sul de Manhattan, usa uma bicicleta para se locomover e faz o que pode para não se afastar de suas raízes e crenças punk. Ela leva uma vida meticulosamente arquitetada para não precisar pensar ou sentir: evita conversas difíceis, engole pílulas aleatórias que carrega em um saquinho, tem uma rotina matinal orquestrada minuto a minuto, bebe demais e está sempre traçando rotas de fuga.
Além disso, protege-se debaixo de camadas de roupa e maquiagem, na esperança de escapar de diálogos forçadamente simpáticos ou abertamente hostis sobre o fato de ser uma mulher trans. A bolha em que vive estoura com o término do namoro com Steph, e a situação se agrava quando, no dia seguinte, Maria retorna de uma de suas muitas saídas não autorizadas do trabalho e é demitida. Esses dois acontecimentos a levam a uma crise existencial que culmina no roubo do carro de Steph e em uma viagem rumo à Califórnia. Nessa jornada de autodescobrimento, em um Wal-Mart na cidade de Star City, Nevada, ela acaba conhecendo uma pessoa que a faz examinar a própria vida e existência trans.
"Nevada", publicado originalmente em 2013, logo tornou-se um fenômeno entre a comunidade queer. Imogen Binnie utiliza referências das culturas pop e punk para ilustrar a vivência de uma época — Maria tem um blog e acessa internet em lan houses —, porém, os dilemas da personagem, seus medos e suas preocupações, reverberam mais de uma década depois. Acompanhamos Maria em suas ponderações sobre a vida adulta, expectativas, memória, transfobia, machismo, carreira e relacionamentos, e seguimos também seu caminho pela estrada tortuosa de amadurecimento em um mundo que não é o que imaginávamos na juventude — e que nos faz sentir sempre aquém do esperado. E ficamos com o impasse entre deixar para trás o que consideramos fundamental para tentar caber em ideais em que não acreditamos, ou agarrar-nos às nossas crenças, vivendo às margens, porém livres. Compre o livro "Nevada", de Imogen Binnie, neste link.
O que disseram sobre o livro
“Nevada entende que, não importa o que a gente faça depois de sair do armário, provavelmente sentiremos que fizemos algo errado... A audácia de Binnie foi dirigir-se a um público — uma comunidade, um nós — que nunca tinha se visto dessa forma antes.” — The New Yorker
Sobre a autora
Imogen Binnie nasceu em Nova Jersey, nos Estados Unidos. É escritora e roteirista. "Nevada", seu livro de estreia, foi finalista do prêmio Lambda para literatura trans em 2014. Ela vive em Vermont com a esposa e os filhos. Garanta o seu exemplar de "Nevada", escrito por Imogen Binnie, neste link.
Trecho do livro
As mulheres trans da vida real não são iguais às mulheres trans da TV. Em primeiro lugar, depois que se tira a mistificação, os mal-entendidos e o mistério, elas são pelo menos tão chatas quanto as outras pessoas. Ah, as minhas neuroses! Ah, os meus traumas! Ah, olha só pra mim, meu passado me traumatizou e eu ainda estou resolvendo isso! Apesar da impressão que se pode ter com base nos programas de televisão e filmes idiotas, não há nada de particularmente interessante nisso. Embora talvez Maria esteja sendo parcial, claro.
Ela queria que as outras pessoas entendessem isso sem ela precisar dizer nada. É sempre impossível saber as suposições das pessoas. Elas tendem a pensar que mulheres trans são drag queens louconas e superengraçadas, ou então homens héteros tristes, patéticos, pervertidos e iludidos, pelo menos até juntarem dinheiro para fazer suas Cirurgias de Mudança de Sexo, quando então passam a ser exatamente iguais a qualquer outra mulher. Ou algo assim? Mas Maria pensa: cara, oi? Ninguém mais me lê como trans. Tiozões héteros flertam comigo quando estou no trabalho, e em todos os meus anos de transição eu não consegui juntar dinheiro nem para comprar um par de botas decente.
Ser uma mulher trans é assim: Maria trabalha num sebo imenso no sul de Manhattan. O lugar é um horror. A dona é uma mulher muito rica e muito má que vive ou ausente ou microgerenciando os funcionários. As pessoas da gerência que trabalham para ela levam todas uma vida miserável sob seu comando há vinte ou trinta (ou quarenta ou cinquenta) anos, ou seja, são todas babacas com Maria ou com qualquer outra pessoa que trabalha abaixo delas. É tipo um sebo famoso das antigas que existe há séculos.
Maria trabalha lá tem uns seis anos. As pessoas vivem pedindo as contas, porque nem todo mundo consegue aguentar o abuso inerente ao emprego. Mas Maria é tão emocionalmente fechada e tem tanta dificuldade de sentir qualquer coisa que pensa: bom, o emprego é sindicalizado, estou ganhando o suficiente pra pagar meu apê, e consigo me safar de quase qualquer situação da qual queira me safar. Só vou embora daqui se me demitirem. Só que quando ela começou a trabalhar lá era tipo: oi, eu sou um cara, e meu nome é o mesmo que consta na minha certidão de nascimento. Então, quando já tinha um ou dois anos de casa, teve a intensa e assustadora revelação de que por muito, muito tempo — por mais que dizer isso seja batido e clichê —, até onde sua memória alcançava, ela estava bem fodida da cabeça.
Então começou a escrever sobre isso. Pôs tudo no papel e foi ligando todos os pontos: o ponto eu às vezes quero usar vestidos, o ponto sou viciada em masturbação, o ponto tenho a sensação de levar um soco no estômago toda vez que vejo uma menina despretensiosamente bonita, o ponto eu chorava muito quando pequena e acho que não chorei nenhuma vez desde a puberdade. Um monte de outros pontos. Uma constelação inteira de pontos. O ponto ai, cara, eu sempre fico mais doida do que pretendia quando começo a beber. O ponto talvez eu odeie transar. Então acabou entendendo que era trans, disse a todo mundo que iria mudar de nome, começou a tomar hormônios, e foi muito difícil e recompensador e doloroso.
Enfim. Foi um Episódio Muito Especial. A questão é que tem pessoas no trabalho que se lembram de quando ela era supostamente um menino, que se lembram de quando ela transicionou, e que podem a qualquer momento contar para qualquer uma das pessoas novas que entrarem no trabalho que ela é trans, e aí ela vai ser obrigada a entrar num modo contenção de danos porque, lembrem-se, como ela pode saber que ideias bizarras essas pessoas têm em relação às mulheres trans?
Tipo, e se a pessoa for liberal e quiser demonstrar sua solidariedade? “Eu tenho uma amiga trans”, em vez de: “Ei, amiga trans, gostei de você, bora ter uma relação humana tridimensional?”. Ser uma mulher trans é assim: nunca ter certeza de quem sabe que você é trans, nem do que essa informação poderia significar para a pessoa. Viver pisando num terreno social movediço e esquisito. E o problema não é que importa alguém saber que você é trans. Dane-se. Você só não quer que a sua personalidade engraçada, encantadora, complicada e esquisitona seja apagada pelas ideias que as pessoas têm na própria cabeça e que foram criadas por roteiristas de tv picaretas, por exemplo, ou então por roteiristas de filmes pornô mais picaretas ainda. Mas é bem uó ter que educar as pessoas. Soa familiar? As mulheres trans precisam lidar exatamente com a mesma merdalhada que todas as outras pessoas do mundo que não são brancas, héteros, machos, com plenas capacidades físicas ou detentoras de algum outro tipo de privilégio. Não tem glamour nem mistério. É um puta saco. Maria está completamente exausta e de saco cheio disso, e se você não está, ela lamenta muito. Lamenta de um jeito profundo, consternado, sarcástico, impotente e inútil.
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