terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

.: "Novas Cartas Portuguesas", a obra transgressora que marcou a revolução


"Novas Cartas Portuguesas" é uma obra transgressora que marcou a Revolução dos Cravos e a vida das mulheres em Portugal e no mundo. Lançado pela editora Todavia, o livro de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno Maria Velho da Costa tem prefácio de Tatiana Salem Levy e capa de Julia Custodio.

O livro, por Dulce Maria Cardoso

"Novas Cartas Portuguesas" tem tanto de gênio literário quanto de resistência ao Portugal fascista de 1971. Partindo de Lettres Portugaises - cinco belas missivas amorosamente sofridas que a abandonada soror Mariana Alcoforado teria escrito ao oficial francês Noel Bouton de Chamilly —, as “Três Marias”, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, reclamam o direito à plenitude da existência política, econômica, social, cultural e sexual das mulheres.

Fazem-no de uma forma, a todos os níveis, revolucionária. Subvertendo o conceito tradicional de autoria - ainda hoje não se sabe quem escreveu o quê -, as três amigas vão se escrevendo cartas, contos, ficções, poemas, ensaios, que compõem um todo dificilmente categorizável e extremamente inovador. Os textos enfrentam, para ofensa dos beatos poderes, o gasto Império de cinco séculos, a exaurida guerra colonial com os seus horrores e mortos, a inefável Censura, a hipócrita subordinação dos cidadãos ao ideal salazarista de “Deus, pátria e família”, a violência sobre o corpo das mulheres e a sua submissão e secundarização na sociedade, no trabalho e no âmbito doméstico.

Considerada pornográfica e atentatória à moral pública, a obra foi proibida e as autoras, processadas. A solidariedade de resistentes antifascistas e o apoio de prestigiados intelectuais estrangeiros deram ao caso dimensão internacional e tornou-o um dos símbolos da luta pela liberdade, que a revolução de 25 de Abril resgatou três anos depois. Neste tempo em que, um pouco por todo o mundo, nos tentam convencer de que é inevitável o lento morrer das instituições democráticas, em que tenebrosas forças reacionárias põem em perigo importantes conquistas civilizacionais, um tempo em que se vai instalando a ideia de que a literatura pouco ou nada pode contra a desesperança que vai minando a humanidade, conhecer ou regressar a Novas cartas portuguesas é uma experiência arrebatadora. Um grito de coragem e de esperança. Compre o livro "Novas Cartas Portuguesas", de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, neste link.


Sobre as autoras
Maria Teresa Horta
nasceu em 1937 em Lisboa. É jornalista, poeta e militante feminista. Seu segundo livro, "Minha Senhora de Mim" (1971), foi censurado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide). Com uma obra extensa, tem mais de 40 livros publicados. Em 2017, recebeu o Prêmio Camões, mas se recusou a recebê-lo.

Maria Isabel Barreno nasceu em 1939, em Lisboa, e faleceu em 2016 na mesma cidade. Foi escritora, ensaísta, artista plástica e jornalista. Dedicou-se à causa feminista em todas as suas atividades. Depois de seu primeiro livro, "De Noite as Árvores São Negras" (1968), teve mais de vinte obras publicadas.

Maria Velho da Costa nasceu em 1938, em Lisboa, e faleceu em 2020 na mesma cidade. Um dos nomes mais reconhecidos da literatura portuguesa, foi presidente da Associação Portuguesa de Escritores entre 1975 e 1977. Deixou uma obra vasta que inclui ficção, poesia, roteiros de cinema, peças de teatro e ensaios. Recebeu o Prêmio Camões em 2002. Garanta o seu exemplar de "Novas Cartas Portuguesas", escrito por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, neste link.

Trecho do livro
Mais do que a paixão:
os seus motivos; a construção dela. — Motivos que, peça por peça, a elaboram como um vitral com as suas imagens à transparência? Não —, antes no seu interior visceral de vidro inteiro. Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento: as palavras uma por uma no bordado empolgante dos sentimentos e dos gestos. A mão sobre o papel traça com precisão as ideias na carta que, mais do que para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce alimento da ternura, da invenção do passado ou o envenenamento da acusação e da vingança, elas próprias principais elementos da paixão na reconstrução do nosso corpo sempre pronto a ceder à emoção inventada, mas não falsa. — Não é falso se te escrevo:

“Repara, sequiosa é a faca do teu silêncio a revolver-se-me bem no interior do ventre... Cobre com os teus dedos os meus olhos a fim de eu não ver ou não me veja, que te perco e não me odeio.”

Eis o ódio, outro principal elemento do amor. Amor cujo objecto nunca será em si a principal causa, mas apenas o motivo, o ponto de partida, jamais o único objectivo ou mesmo o fulcro, o outro. E se não acredito em mim o amor como sentimento totalmente verdadeiro a não ser a partir da minha imperativa necessidade em inventá-lo (logo já ele é verdadeiro mas tu não), recuso-me a negá-lo no entanto pois na realidade existe, é em si mesmo: vício, urgência, precipício, enquanto tu serves apenas de motivação, de início, de peça envolvente em que te arrasto neste meu muito maior prazer em me sentir apaixonada do que em amar-te. Neste meu muito maior prazer em dizer que te amo do que na verdade em querer-te.

Não é falso, então, se te escrevo: 

“Sei que te perdi e me afundo, me perco também dentro da minha total ausência de poder em que me queiras”.

E assim sofro, aparentemente porque te amo, mas antes porque perco o motivo de alimento da minha paixão, a quem talvez bem mais queira do que a ti. 

Do desvario não me curo, nem da ansiosa vontade de te ver. Mas aqui por certo será já o desejo e não o amor a causa deste outro sentimento ou alimento de uma emoção que pode ser tomada apenas por amor e erradamente entendida de outra maneira que não pelo simples exercício do corpo, que realmente é.

Não nego, portanto, o exercício do amor. O sofrimento como exercício do mesmo e o mesmo amor como exercício da paixão, qualquer que seja.

Que dou eu então em troca do que me dás?

— O meu amor. Mais exactamente: o meu amor por ti.

E jamais, pois, nenhuma de nós três: mulher, se entregará sem dano de si própria e de outrem. Ramificação oculta que transportamos na voragem de nos sabermos, de nos descobrirmos, na viagem que premeditadamente empreendemos através de nós próprias na procura ou na entrega. Na sistemática dissecação do que nos resta? Ou do muito que possuímos?

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