quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

.: Bethânia Pires Amaro: "A literatura feita por mulheres sempre foi fecunda"


Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com.

Bethânia Pires Amaro é uma mulher cosmopolita. Pernambucana de nascimento, baiana de criação, ela mora atualmente em São Paulo. Apaixonada por literatura, tem diversos contos premiados em concursos nacionais.mas a grande chance veio ao vencer o Prêmio Sesc de Literatura na categoria Conto. Com o livro "O Ninho", lançado pela editora Record, ela mergulha em um mosaico de imperfeições e doenças familiares para jogar realidade nas idealizações que pairam sobre as relações familiares, sobretudo quando se trata de maternidade. 

O livro oferece 15 contos que acompanham personagens femininas enfrentando diversas adversidades e, através de suas histórias, o leitor é lembrado de que a casa, esse estranho ninho, não é tão sacra assim, nem tão segura. Vícios, suicídios, maternidades disfuncionais, abusos e violências devastadoramente reais podem ser encontrados na obra e, no entanto, a sensibilidade narrativa de Bethânia Pires Amaro ampara o leitor com belezas imperfeitas, que decorrem da tragédia cotidiana, e com a compaixão.

Graduada e pós-graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo ela  Assinado por ela, o conto “O Adeus da Eletricidade”, premiado no Concurso de Contos Maximiano Campos, foi traduzido para o alemão pela editora Arara Verlag. Confira a entrevista exclusiva abaixo. Compre o livro "O Ninho", de Bethânia Pires Amaro, neste link.


Resenhando.com - Seus contos especificam a casa como lugar de segurança afetiva. Explique essa ideia.
Bethânia Pires Amaro -
Já durante a pandemia, tivemos muitos artigos e reportagens que trouxeram reflexões sobre o aumento da violência de gênero durante o isolamento social, levantando o debate sobre o quanto as mulheres podem realmente se sentir seguras dentro de casa. Para muitas mulheres, o lar não é somente um espaço de amor e aprendizado, mas também o berço de comportamentos tóxicos que elas mesmas reproduzem, geração a geração, é a fonte a partir da qual elas desenvolvem distúrbios alimentares ou de imagem, inseguranças e dores diversas. Todas nós somos moldadas, ao menos em parte, pelo ambiente familiar e existe uma idealização da família enquanto instituição. Estes ideais de perfeição, se observados de perto, rapidamente se desfazem. “O Ninho” quis realçar estas tantas sombras e sutilezas dentro das dinâmicas familiares, especialmente entre mulheres.


Resenhando.com - Como é ser a vencedora do Prêmio Sesc de Literatura 2023 na categoria Conto?
Bethânia Pires Amaro - 
Ter vencido o Prêmio Sesc representou para mim um grande reconhecimento do meu trabalho, pelo qual sou muito grata. É um prêmio muito especial para o autor estreante, porque nos oferece, junto à publicação do livro, um circuito de divulgação que é extremamente importante para que possamos alcançar mais leitores Brasil afora. Na minha formação enquanto leitora, o Prêmio Sesc sempre exerceu um papel relevante, na medida em que pude conhecer diversas obras e autores através da divulgação de edições passadas, e eu sinto que tenho uma dívida imensa com esta literatura brasileira contemporânea, que me inspirou e me acompanhou por diversos momentos de vida. 


Resenhando.com - Sérgio Rodrigues afirmou que você é uma das melhores contistas da literatura brasileira. Como você recebe esse elogio?
Bethânia Pires Amaro - 
Tenho uma admiração imensa pelo Sérgio Rodrigues, tanto como autor como quanto ser humano, e a obra dele me inspirou de diversas formas. “O Drible”, em especial, é um livro de cabeceira ao qual retorno muitas vezes, tanto para estudo como por lazer, de modo que foi para mim uma grande honra tê-lo como jurado e sou extremamente grata por toda a generosidade e incentivo que recebi do Sérgio nestes últimos meses. A melhor parte do Prêmio Sesc, na verdade, tem sido a oportunidade de aproximação com outros escritores que sempre tive como referência, pois o meu livro não se fez sozinho, ele fecundou através da obra de muitos autores, ele passou por caminhos que muitas mulheres abriram antes de mim, e pelas mãos de grandes professores, profissionais e colegas até enfim ter chegado ao papel impresso. O livro jamais teria chegado à publicação sem que tantas pessoas tivessem acreditado nele ao longo de toda essa trajetória.


Resenhando.com - O papel da mulher na sociedade é algo recorrente nos textos de "O Ninho". Como você vê o papel da mulher na literatura?
Bethânia Pires Amaro - 
Penso que a literatura feita por mulheres sempre foi fecunda e felizmente tem crescido o número de publicações femininas no Brasil, embora ainda estejamos longe de um equilíbrio nesse sentido. É muito importante que as mulheres ocupem esses espaços nas livrarias e nas estantes brasileiras, para que possamos compartilhar nossas vivências e experiências da forma mais plural possível, apesar das tantas desvantagens que historicamente afastaram as mulheres do mercado literário profissional. Mais ainda, precisamos repensar o papel da mulher na literatura para afastá-la de modelos tradicionais em que sempre somos representadas como “o sexo frágil”, que tratam de questões femininas de forma estereotipada ou que reforcem qualquer tipo de misoginia. Vejo com grande alegria que cada vez mais coletivos, clubes de leitura e teses vêm focando na redescoberta de vozes femininas marginalizadas e no incentivo a novas autoras. Um belo movimento nesse sentido é o “Um Grande Dia para as Escritoras”, idealizado pela Giovana Madalosso, que conseguiu reunir mais de duas mil mulheres pelo país inteiro, em prol da literatura e da expressão artística feminina.

Resenhando.com - O que há de autobiográfico nos contos de "O Ninho"? 
Bethânia Pires Amaro - 
“O Ninho” é um livro de ficção, mas algumas histórias foram baseadas em experiências minhas, de mulheres da minha família ou ainda de mulheres com as quais convivi das mais diversas formas. A maioria, porém, consiste numa representação de temas que me comovem e me inspiram enquanto mulher. A ideia foi tornar cada uma destas histórias uma espécie de fotografia, para compartilhar meus olhares sobre aspectos das vivências femininas dentro de suas famílias que muitas vezes permanecem na sombra, sobre as quais se fala em regra muito pouco. Os contos são, assim, uma janela para a intimidade das dinâmicas familiares, especialmente entre mulheres, que convidam o leitor a se aproximar e formar suas próprias opiniões sobre as realidades retratadas ali; não há respostas prontas, mas apenas relações humanas, com todas as falhas, pontos cegos e malícias que permeiam cada um de nós. É um livro que foi pensado para exigir muito do leitor, que busca a todo o momento fazê-lo reagir e interpretar suas próprias reações.


Resenhando.com - Qual é o seu conto favorito?
Bethânia Pires Amaro - 
Seria impossível eleger um conto favorito, seja dentre os meus ou de outros autores, porque cada um conversa com tipos diferentes de sensibilidade. Mas um conto ao qual venho retornando muito nos últimos tempos é o “Depois do Jeans”, do Raymond Carver. Gosto muito da obra dele pelo tratamento da linguagem e do prosaico, de modo que o conto parece quase banal até que todos os elementos se juntam e geram um impacto muito poderoso no leitor. Neste conto, um casal de idosos sai para uma noite de bingo, mas tudo dá errado na noite deles: a esposa descobre um sangramento vaginal, a vaga e a mesa que eles sempre ocupam são tomadas por um casal mais jovem, eles não ganham nada no bingo. O desenrolar desse conto, e sua conclusão, são uma reflexão magnífica sobre o envelhecimento, sobre as pequenas torturas que a passagem do tempo impõe ao corpo de alguém, mas ao mesmo tempo o conto é muito sensível e belíssimo. Há ali um equilíbrio difícil de conseguir, entre a descrição da realidade de uma forma direta e concreta, quase crua, e a ternura que desperta no leitor sem uso de qualquer poética evidente na linguagem. É um trabalho excepcional de técnica narrativa aliado a um olhar muito humano sobre a vida, que me comove e me inspira.


Resenhando.com - O que representa a literatura em sua vida?
Bethânia Pires Amaro - 
A literatura é para mim uma forma essencial de expressão e de compartilhamento da experiência humana com outras pessoas. Sempre li muito justamente por necessitar dessa conexão, por querer estar em contato com os olhares de outros seres humanos sobre o que é estar vivo, o que é se relacionar de tantas formas com o mundo e com os outros.

Resenhando.com - Na sua própria literatura, em que você se expõe mais, e por outro lado, em que você mais se preserva, em seus textos?
Bethânia Pires Amaro - 
Todos os textos expõem muito do autor e com “O Ninho” não é diferente: cada conto traduz um recorte na forma pela qual eu enxergo determinada situação ou conflito. A narrativa realça alguns pontos e deixa outros na sombra, à espera de que o leitor os descubra e construa suas próprias reações. Por isso, embora o livro busque destacar a experiência feminina em contextos familiares, as questões postas ali são universais, conversam com qualquer ser humano que se veja exposto àquelas realidades, que se mostre aberto a ingressar na vivência dessas mulheres e conhecer conflitos sobre os quais nem sempre falamos às claras.   

Resenhando.com - Que conselhos você dá para as pessoas que pretendem enveredar pelos caminhos da escrita?
Bethânia Pires Amaro - 
Penso que cada escritor precisará descobrir seu próprio caminho, no sentido de decidir o que funciona melhor para si, porque na escrita não há fórmulas ou estradas universais. Na minha experiência, ajuda muito ter uma ampla bagagem de leitura, dos clássicos e contemporâneos, e especialmente da literatura nacional, porque assim o escritor pode ter uma boa noção do que se vem fazendo tecnicamente em termos literários e se abre a temáticas com as quais pode não ter tanta familiaridade, expandindo seu repertório. Inserir-se também numa comunidade de escritores, para trocar ideias e textos, e principalmente para receber uma análise crítica do que escrevemos, para mim foi também fundamental. Quando escrevemos, nem sempre temos o distanciamento necessário do texto para garantir que estamos passando ao leitor aquilo que queremos, de modo que um retorno honesto de leitores do manuscrito é muito valioso.


Resenhando.com - Quais livros foram fundamentais para a sua formação enquanto escritora e leitora?
Bethânia Pires Amaro - 
Seria impossível listar todos os livros e autores que considero importantes para minha formação ou eleger um favorito, mas na escrita de “O Ninho” tive como principais referências grandes mulheres e contistas como Lucia Berlin, Alice Munro, Maria Fernanda Ampuero, Giovana Madalosso, Jarid Arraes e Cíntia Moscovich.


Resenhando.com - Como e quando começou a escrever?
Bethânia Pires Amaro - 
Escrevo desde muito pequena e, durante a universidade, incentivada por uma amiga, comecei a participar de concursos de contos, tendo integrado diversas antologias nesse período, quando comecei a conhecer melhor a produção de contistas brasileiros contemporâneos. Após a pandemia, decidi me dedicar mais aos aspectos técnicos de minha escrita literária e frequentei o Curso Livre de Preparação de Escritores - Clipe da Casa das Rosas de São Paulo e a Oficina de Criação Literária da PUC/RS, com o Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil, além de outras oficinas e cursos.


Resenhando.com - É possível viver de literatura no Brasil?
Bethânia Pires Amaro - 
Uma vez que estou ingressando agora no mercado literário, precisaria de mais algum tempo para poder opinar com maiores fundamentos sobre esta pergunta. Parece-me, por uma impressão inicial, que viver de literatura no Brasil apresenta seus desafios e que é essencial um apoio mais sólido das políticas públicas para que o mercado leitor brasileiro consiga atingir seu pleno potencial.  


Resenhando.com - O quanto para você escrever é disciplina?
Bethânia Pires Amaro - 
Penso que disciplina contribui no exercício de qualquer atividade, inclusive para a escrita, embora cada autor deva respeitar seu próprio tempo interno e suas próprias inclinações. Eu, por exemplo, não escrevo todos os dias, nem estabeleço uma carga horária predeterminada ou número mínimo de caracteres, mas tento diariamente estar em contato com livros e outras formas de expressão artística que conversem com o meu texto, de modo a me colocar sempre num estado próximo ao da inspiração. Alimentar a inspiração por um esforço consciente, ao meu ver, é parte da transpiração necessária para escrever um livro, já que este tipo de projeto normalmente leva anos para ser concluído. Além disso, uma vez escrita a primeira versão de um texto, é necessário reescrevê-lo ainda algumas vezes, revisá-lo, passá-lo por alguns leitores, além de tantas outras etapas para que se chegue à versão final. “O Ninho” foi escrito e reescrito ao longo de dois anos e foi fruto de muitos estudos sobre a narrativa, de modo a construir um texto o mais intencional possível, então a ideia de um livro escrito num rompante de inspiração é realmente muito distante da minha experiência pessoal.


Resenhando.com - Você tem um ritual para escrever?
Bethânia Pires Amaro - 
Normalmente não tenho nenhum tipo de ritual, mas, quando estou no meio de um projeto, costumo desenhar a estrutura do livro e ter algumas metas compatíveis com minha rotina e carga de trabalho, em regra medidas em semanas ou meses ao invés de dias. Sou uma escritora que prefere escrever sem muitas amarras e definitivamente sem pressa, maturando as ideias que quero expressar no texto. Ao mesmo tempo, tento sempre me envolver em atividades que se relacionem ao projeto, seja ouvindo determinadas músicas, lendo determinadas obras, frequentando determinados espaços, de modo a me manter conectada com a história.


Resenhando.com - Em um processo de criação, o silêncio e isolamento são primordiais para produzir conteúdo ou o barulho não o atrapalha?
Bethânia Pires Amaro - 
Para mim, o silêncio e isolamento são essenciais. Costumo escrever à noite, em casa, num horário em que já encerrei as outras demandas do dia, para que nada me distraia do texto.


Resenhando.com - Como começar a ler Bethânia Pires Amaro?
Bethânia Pires Amaro - 
“O Ninho” foi planejado com um sequenciamento que tornasse a leitura do livro mais prazerosa e frutífera para o leitor, gerando uma determinada experiência sensorial. Ainda assim, os contos podem ser lidos separadamente, se for da preferência de quem lê.


Resenhando.com - Por qual de seus livros - ou personagem - você sente mais carinho?
Bethânia Pires Amaro - 
Tenho especial carinho pela narradora do conto “Espiral”, um conto que tenta mostrar o quanto distúrbios alimentares muitas vezes passam despercebidos pela família, sendo comumente passados de mãe para filha numa cadeia silenciosa de comportamentos nocivos à saúde da mulher. Os distúrbios alimentares, associados a distúrbios de imagem, são frequentes inclusive entre mulheres que não se imagina que teriam questões deste tipo, apresentam por vezes difícil diagnóstico e são sorrateiros, crescendo em crianças e adolescentes com poucos sinais externos, sem que ninguém ao redor desconfie.


Resenhando.com - Hoje, quem é Bethânia Pires Amaro por ela mesma?
Bethânia Pires Amaro - 
Sou uma autora brasileira que se vê inserida num coletivo de mulheres que vêm tentando abrir espaço na literatura nacional contemporânea para compartilhar nossas vivências e experiências, na esteira de muitas autoras que vieram antes de nós. Penso que caminhamos juntas e nos fortalecemos sempre que incentivamos e divulgamos os trabalhos umas das outras. Leiam mulheres!

Garanta o seu exemplar de "O Ninho", escrito por Bethânia Pires Amaro, neste link.

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