A dramaturgia da peça, escrita e publicada a partir da execução de um projeto contemplado no edital ProAC nº 20/2019, busca analisar as recepções da soropositividade em corpos brasileiros. O texto foi criado em processo com o dramaturgo Tiago Viudes, a antropóloga Pisci Bruja e a atriz e sonoplasta Nãovenhasemrosto. Foto: Pedro Jorge Afrop
Desde o início da epidemia de HIV/AIDS no Brasil, na década de 1980, a estigmatização sobre os corpos que convivem com o vírus é impactada diretamente pela ideia de que apenas pessoas pertencentes às comunidades LGBTQIAP+ e/ou pessoas racializadas como não-brancas possam contrair o vírus - ideia midiaticamente estruturada naquela década, mas que encontra ecos até hoje. É daí que parte Feitiço de Soma, obra criada em 2020 por Aleph Antialeph. "A peça compreende a história particular de alguém que recebeu o diagnóstico da soropositividade, mas ainda é sujeito da história dentro desse fluxo que se iniciou antes e que se prolonga para muito depois", conta Aleph.
Na peça, há uma subversão da ideia tradicional da palestra, fazendo com que uma fala por vezes verborrágica vá dando espaço a um feitiço que conclama todas as pessoas para a questão do HIV, muitas vezes colocada como um problema pessoal e carregada de estigmas, como a da sujeira e da depravação.
Sinopse
Duas performers se encontram num palco iluminado, recortado por um símbolo de “+”. Aleph Antialeph e Nãovenhasemrosto reúnem-se para uma palestra, na qual refletem sobre suas próprias trajetórias relacionadas ao HIV, retomando a história do vírus e da epidemia de AIDS - fatos históricos como a Operação Tarântula, deflagrada nos anos 80 no Brasil ou a suposta descoberta de G.D., comissário de bordo canadense intitulado como “Paciente Zero”, supostamente tendo trazido o vírus para a América do Norte. Um avião cai no espaço. A racionalidade da palestra é engolida pelo Feitiço de Soma. As duas palestrantes, agora agentes deste feitiço, performam magias para curar-se do vírus infectando todes.
A livre associação do HIV/AIDS com pessoas dissidentes da norma (sexual, de gênero, classe e raça), em sua maioria bixas, pessoas trans e/ou racializadas como pretas, além de tentar construir um processo higienista que marca tais corpos enquanto “sujos”, corrobora também para um projeto de extermínio e criminalização deste recorte populacional.
A situação se torna ainda mais complexa quando se percebe que as várias manifestações midiáticas que tem como objetivo combater os estereótipos do HIV/Aids acabam por ocultar a sorologia destes corpos que - mesmo permitida por lei -, ainda revela o medo social desse compartilhamento, um processo de invisibilização fomentado por anos de violência que repercutem ainda hoje.
Não enquadrar o debate sobre HIV/AIDS enquanto um tópico de saúde pública, mas sim com a premissa de se tratar de uma doença que se difunde apenas dentro de uma população já marginalizada, reflete nas formas com que corpos soropositivos são assimilados socialmente.
Na obra, o feitiço busca criar uma espécie de contaminação, como se numa dinâmica que faça o problema deixar de ser encarado de modo individual e seja visto como algo coletivo. "Existem indícios do feitiço desde o começo da peça, como uma carta de tarô gigante do Mago no centro do palco", conta Aleph, reforçando que a obra vai aos poucos expondo elementos e signos que compõem a magia. Ao longo do trabalho, a DJ e produtora musical Nãovenhasemrosto, que está ao lado de Aleph no papel de uma interlocutora, traz elementos sonoros executados ao vivo na cena por Venus Garland (baterista) e Helena Menezes (baixista).
A sonoplastia da obra existe desde uma mix-tape preparada por Nãovenhasemrosto ainda em 2020 e que contaminou a forma com que Aleph estava escrevendo a dramaturgia da peça. "Essa mix-tape é uma provocação não-bibliográfica ou textual que até foi publicada junto com o livro", diz Aleph.
A cena é composta ainda por danças executadas por Nata da Sociedade e oito TVs espalhadas no espaço que projetam gravações ao vivo, exibidas ao público em uma estética de VHS, além de sugerirem ações ao público por meio de uma função de teleprompter, já que a plateia é nomeada como a personagem Assistente durante a peça.
Ficha técnica
Espetáculo "Feitiço de Soma". Atuação: Nãovenhasemrosto e Aleph Antialeph. Dramaturgia: Aleph Antialeph. Direção e encenação: Vitinho Rodrigues e Jaoa de Mello. Preparação corporal: Helena Agalenéa. Iluminação: Felipe Tchaça. Sonoplastia: Nãovenhasemrosto. Figurino: Nilo Mendes Cavalcanti. Cenografia: Victor Paula. Assistente de cenografia: Rey Silva. Contrarregra: Nata da Sociedade. Baterista: Venus Garland. Baixista: Helena Menezes. Designer gráfico (identidade visual): Samuel Alves de Jesus. Fotografia (identidade visual): Pedro Jorge Afrop. Registro fotográfico e fílmico da peça: Noah Mancini. Vídeo streaming: Vinicius Feitoza. Mediação dos debates públicos: Pisci Bruja. Assessoria de imprensa: Márcia Marques (Canal Aberto). Produção: Corpo Rastreado - Gabs Ambròzia.
Serviço
Espetáculo "Feitiço de Soma". TUSP Maria Antonia. Rua Maria Antônia, 294 - Vila Buarque/São Paulo. De 10 de janeiro a 4 de fevereiro de 2024. Quarta a sábado, 20h; domingo, 19h. Ingressos gratuitos. Classificação indicativa: 14 anos. Duração: 70 minutos.
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