quarta-feira, 29 de novembro de 2023

.: Entrevista com Mauro Paz: "A literatura representa possibilidades"


Autor de "Quando os Prédios Começaram a Cair", lançado pela editora Todavia,  Mauro Paz nasceu em Porto Alegre, em 1981. Nesse romance, ele combina mistério, drama pessoal e questões urgentes e atuais ao falar sobre um protagonista que está com a vida acertada até que os prédios ao redor dele começam a cair. A capa, feita por Elisa v. Randow e Laerte Coutinho, ilustra o tema central da obra: a busca pelo outro e por algum significado para as coisas em um mundo em que as estruturas estão ruindo. 

O que há de autobiográfico nisso tudo? Ele próprio responde: "Pouco". E aponta para um amanhã cada vez mais desprovido de sentido e de paz. Mauro Paz  foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance "Entre Lembrar e Esquecer", e do Prêmio Sesc com o livro de contos "Por Razões Desconhecidas", além de ser autor do livro "CidadExpressa". Nesta entrevista exclusiva, ele fala sobre a vida, o processo de escrita e o que está no meio. Compre o livro "Quando os Prédios Começaram a Cair", de Mauro Paz, neste link.



Resenhando.com - O que há de autobiográfico em "Quando os Prédios Começaram a Cair"?
Mauro Paz - Há muito pouco de autobiográfico no enredo e no protagonista de "Quando os Prédios Começaram a Cair". Uma similaridade minha com o protagonista é o fato de ele sair do interior e tentar a vida em São Paulo. Apesar de ter nascido em Porto Alegre, eu cresci no bairro de Belém Novo, que nos anos 90 era como uma cidade do interior. Lá todos os acontecimentos giravam, e ainda giram, em torno da praça central e da igreja. Eu tinha o Guaíba em frente de casa e muita natureza ao redor. Solano, o protagonista do livro, sai do interior de Minas Gerais, de uma cidade pequena, e também cresceu com liberdade de andar na rua. Outro ponto em comum é que, de forma geral, Solano é atravessado por uma série de questões postas pela crise do modelo tradicional de masculinidade. E muitas dessas tensões também me impactam diariamente.

Resenhando.com - Laerte Coutinho fez a ilustração da capa. O que representa isso para você? Mauro Paz - A ideia de trazer a Laerte para ilustrar a capa do livro foi do André Conti, meu editor. Acredito que existe uma simbologia enorme nessa escolha. Para mim, "Quando os Prédios Começaram a Cair" é um livro que trata do desmoronamento das certezas do masculino neste começo de século XXI. Nesse sentido, vejo a Laerte como um ícone na cultura brasileira. Por volta de 2010, quando ela anunciou abertamente a transição de gênero, a imprensa tradicional não falava tanto sobre o tema. Então surge Laerte, um homem com mais de 60 anos, que namorava uma mulher, dizendo já não se identificar com a performance do sexo biológico. Vejo que essa falta de reconhecimento que a Laerte sentiu, hoje, mais de dez anos depois, ganhou muita força entre os meninos adolescentes, que ou recusam o modelo de masculinidade ou buscam outras formas diferentes de masculinidade.

Resenhando.com - O que representa a literatura em sua vida?
Mauro Paz - 
Na minha vida, a literatura representa possibilidades. A forma com que a gente vive leva a gente a seguir padrões muito estreitos. Leva a gente a aceitar que a péssima condição de trabalho é a única forma de ganhar a vida. Leva a gente a aceitar as horas perdidas no transporte público de má qualidade. Leva a gente a não questionar a forma com que as construtoras atropelam o bem-estar das pessoas para erguerem prédios cada vez mais altos e rentáveis. Nesse mundo de limite e repetição, a literatura aparece para mim como algo mágico. O analógico artefato do livro, com suas páginas de papel e milhares de caracteres ordenados, ainda é uma das possibilidades mais abertas para o pensar.


Resenhando.com - Na sua própria literatura, em que você se expõe mais, e por outro lado, em que você mais se preserva, em seus textos?
Mauro Paz - 
Como comentei, para mim a literatura são possibilidades. Agora quais possibilidades escolher na hora de escrever? Eu, particularmente, tento escolher caminhos que levem o meu leitor ao questionamento sobre o modo como ele vive e a sociedade no entorno dele está organizada. Olhando por essa perspectiva, acredito que me exponho bastante. E, para fazer isso, nem sempre escolho os personagens que seguem a cartilha do politicamente correto. Prefiro personagens que gerem algum desconforto, que a partir da complexidade deles o leitor reflita. Seguir por esse caminho é custoso para mim. No processo de escrita, surgem muitos medos sobre como os personagens serão recebidos. Com Solano, de "Quando os Prédios Começaram a Cair", foi assim. Só agora, com o retorno dos leitores, estou vendo que ele funcionou bem. Quanto ao que mais me preservo no que escrevo, acredito que seja a minha vida particular. Até o momento não senti necessidade de escrever algo que passe perto da autoficção. Eu gosto muito do gênero, acho os livros da Annie Ernaux geniais. Ela consegue tratar de questões íntimas dela, mas sempre dando uma perspectiva do que acontece no mundo ao redor. Talvez algum dia eu me exponha dessa forma. Atualmente, como opto pela ficção, prefiro criar situações mais interessantes do que as que vivo.

Resenhando.com - Que conselhos você dá para as pessoas que pretendem enveredar pelos caminhos da escrita?
Mauro Paz - 
Para quem está começando a escrever, o conselho que posso dar é: conheça o gênero que você quer escrever. Saiba a história do romance moderno, do conto, da poesia. Esses gêneros tiveram uma razão de nascer. E têm uma razão para estarem se transformando. Busque entender isso. Quando você entender, olhe ao redor. Leia os seus contemporâneos. Leia os estrangeiros, mas, principalmente, leia os brasileiros. Aprenda com eles sobre o que fazer ou não fazer. Reflita sobre as tensões do mundo. Depois disso tudo, arrisque escrever o que tem verdade para você, seja no conteúdo ou na forma. Encontre o que soa verdadeiro para você. Um texto escrito com verdade transpira no papel e cria ligações fortes com os leitores.

Resenhando.com - Quais livros foram fundamentais para a sua formação enquanto escritor e leitor?
Mauro Paz - 
Todos que li, os que gosto e os que não gosto. Acredito que aprendo muito lendo textos que não gosto tanto. Eles me ajudam a pensar sobre o que não fazer e recalcular a minha rota de escrita. Porém, entre os que gosto, há dois livros que me despertaram para o escrever: "O Apanhador no Campo de Centeio", do Salinger, e "Feliz Ano Novo", do Rubem Fonseca. Esses dois livros me mostraram que a literatura não precisa ser algo mofado, com uma linguagem distante. Depois deles, comecei a realmente me interessar pela escrita. Há livros que considero nortes para minha escrita: "Pôncia Vivêncio", da Conceição Evaristo, "Iniciantes", do Raymond Carver, "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", de Goethe, "Ficciones", do Borges, e tantos outros. Quanto à teoria, acredito que "A Poética", de Aristóteles seja uma influência fundamental. Releio bastante. Boa parte do que aprendi sobre personagem e enredo está lá.

Resenhando.com - Como e quando começou a escrever?
Mauro Paz - 
Comecei a escrever prosa no começo dos anos 2000, quando ainda estava na faculdade de Letras. Durante o ensino médio, eu não lia muito. Entrei no curso de Letras meio por acaso e realmente me encantei com a literatura. Foi uma das paixões mais transformadoras da minha vida, sem dúvida. Foi como se virasse uma chave, "é isso que eu tenho que fazer". Bem naquela época, eu perdi uma amiga de infância de um jeito trágico. Durante a adolescência ela mudou de bairro e nos afastamos. Fazia uns cinco anos que não nos víamos. Então, numa manhã, abri o jornal e vi a foto dela na página policial. A reportagem dizia algo do tipo "Garota de programa é encontrada morta em apartamento. Polícia acredita em caso de suicídio". Na reportagem eu descobri que ela trabalhava há alguns anos em uma famosa boate de Porto Alegre exatamente na mesma quadra em que eu morava. O que mais me incomodou é que a mesma matéria dizia que ela morava com o namorado, ex-policial, e as armas encontradas no apartamento eram dela. Tinha todos os indícios de que ela havia sido assassinada, mas para o jornal era só mais uma garota de programa. Que diferença fazia como ela morreu? O fato de ela estar tão perto e, ao mesmo tempo, em um universo tão distante, somado à forma com que a vida dela se fechou, desencadeou em mim um desejo enorme de pensar numa possibilidade diferente da que estava descrita no jornal. Então escrevi meu primeiro conto.

Resenhando.com - Quais escritores mais influenciaram a sua trajetória artística e pessoal?
Mauro Paz - 
O autor que mais me influenciou foi o J.D. Salinger. Gosto muito da forma despretensiosa com que ele narrava situações complexas. Além da forma de narrar, me atrai muito em "Franny e Zooey", assim como no conto "Teddy", de "Nove Histórias", quando Salinger explora temas mais filosóficos. O universo do mistério sempre me interessou muito. Tento fazer uma literatura realista enevoada por mistério. Acredito que comecei a enxergar melhor esse caminho estético lendo Paul Auster e os contos de Altair Martins no começo dos anos 2000. Uma autora com influência sobre a minha forma de pensar a lógica do romance é a irlandesa Sally Rooney. Usei o romance "Pessoas Normais" como meu objeto de estudo no mestrado. Em uma das entrevistas a que assisti, Sally comenta que não pensa o romance a partir de um personagem. Ela prefere criar a dinâmica entre dois ou mais personagens para então desenvolver o enredo. Acredito que esse é um caminho muito generoso de olhar para a vida. O romance moderno nasce do individualismo burguês lá no século XVIII. Ele evolui em compasso com o liberalismo e o capitalismo. Se você observar a linha evolutiva das personagens do romance, em sua maioria, elas se tornam cada vez mais individualistas e voltadas para si. Pensar um romance a partir de relações é refletir sobre as engrenagens sociais e se abrir para um pensamento fundamental neste século XXI: dependemos uns dos outros. Seja em relação a afeto, a trabalho ou à preservação do planeta, dependemos uns dos outros. Por isso, vejo a perspectiva da Sally Rooney muito alinhada com o atual momento histórico. E certamente contará muito nos meus próximos trabalhos. Independentemente desses autores que comentei acima, a grande influência que sofro na minha trajetória artística e pessoal são os autores-amigos com os quais troco sobre o fazer literário. Tenho muita sorte de ter, perto de mim, pessoas maravilhosas como Vanessa Vascouto, Natália Zuccala, Tobias Carvalho, Samir Machado de Machado, Camila Maccari, Rafael Bassi, Rodrigo Tavares, Carlos André Moreira, Natalia Timerman, Maria Fernanda Maglio, Anita Deak, Liliane Prata, Camilo Gomide, Gael Rodrigues, Tiago Germano, Gabriela Silva, Helena Terra, entre outros.


Resenhando.com - É possível viver de literatura no Brasil? 
Mauro Paz - 
Acredito que é possível, sim, viver de literatura no Brasil. Porém, o ponto principal é você entender que viver de literatura não se limita a ficar trancado em casa, escrever seus livros e esperar que o dinheiro caia do céu. Viver apenas com a venda de livros é difícil não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo. No entanto, há outras formas de fazer dinheiro com literatura: lecionar, participar de eventos, editar, traduzir. Boa parte dos escritores que conheço que vivem de literatura se dividem entre escrever e alguma outra atividade ligada à literatura.

Resenhando.com - O quanto para você escrever é disciplina? É mais inspiração ou transpiração?
Mauro Paz - 
Penso muito sobre o que planejo escrever. Muito mesmo. Rascunho. Testo possibilidades narrativas. Então, para mim, escrever é transpirar. Porém, também acredito que para escrever algo bom é necessário transpirar inspiração, ser movido por uma ideia que te toque profundamente e crie o movimento da escrita.


Resenhando.com - Quanto tempo por dia você reserva para escrever?
Mauro Paz - 
Não tenho uma regra. Quando estou com o projeto de um livro em andamento, reservo em média duas horas diárias.

Resenhando.com - Você tem um ritual para escrever? 
Mauro Paz - 
Não tenho um ritual para escrever, mas prefiro escrever pela manhã. A minha cabeça está mais fresca e rendo melhor. Há também um tempo para eu me conectar com o texto. Quando volto para casa de uma viagem, levo uns dois dias até me sentir à vontade novamente para escrever. Quando estou fora também, preciso me sentir confortável com o lugar para conseguir escrever.

Resenhando.com - Em um processo de criação, o silêncio e isolamento são primordiais para produzir conteúdo ou o barulho não o atrapalha?
Mauro Paz - 
Eu prefiro escrever com silêncio. Consigo escrever com barulho, mas não acho o ideal.

Resenhando.com - O que há de autobiográfico nos textos que escreve?
Mauro Paz - 
Não há.

Resenhando.com - Como começar a ler Mauro Paz?
Mauro Paz - 
Eu gosto muito de todos os meus três livros, porém acredito que em "Quando os Prédios Começaram a Cair" encontrei alguma maturidade quanto à forma. Então, minha sugestão é começar por ele.

Resenhando.com - Por qual de seus livros - ou personagem - você sente mais carinho?
Mauro Paz - 
Eu sinto um carinho especial pelo narrador do conto que abre o meu livro "Por Razões Desconhecidas". O conto se chama "Minha Mãe, Florence Thompson". É uma história baseada em uma foto famosa da grande depressão americana de uma mãe abraçada a seus filhos. No conto, o menino remonta o dia em que a mãe precisou dar uma das filhas.

Resenhando.com - Que livro você gostaria de ter escrito?
Mauro Paz - 
Eu gostaria de ter escrito "O Jogo da Amarelinha", do Cortázar. Esse livro me fez entender que um romance é um convite a um jogo. Com total domínio da linguagem, leveza e verdade, (Julio) Cortázar constrói nessa obra duas dinâmicas lindas de leitura, seja para quem lê na forma direta ou na ordem indicada pelo autor. É um livro inteligente, com mistério, mas também com paixão e realismo. Demorei um tempo para perceber, mas união entre o mistério e a paixão é algo que busco constantemente no que escrevo desde o primeiro conto.

Resenhando.com - Hoje, quem é Mauro Paz por ele mesmo?
Mauro Paz - 
Mauro Paz é um homem de 42 anos, com um metro e oitenta e três de altura e noventa e seis quilos. Ele tem olhos francos e cabelos castanhos, já com alguns fios brancos. Esses fios brancos também se espalham pela barba e pelo juízo de saber quando ficar calado. Mauro não perde oportunidades de estar com seus pais, nem com suas irmãs. Ele gosta de nadar, mas nem sempre encontra tempo e lugar. Então, ele corre e tenta manter alguma saúde com aulas de funcional. Além de escrever livros, Mauro trabalha com propaganda e desenvolve roteiros. Ele adora viajar e aprender sobre a história dos lugares. Cultiva boas amizades. Acredita na maravilha dos encontros inesperados. Em especial, prefere encontrar os amigos em pequenos grupos ou sozinhos. Apesar de morar em São Paulo há 15 anos, Mauro ainda se considera o mesmo menino que cresceu no bairro de Belém Novo, pertinho do Guaíba, em Porto Alegre. Gosta de sentir o cheiro das árvores e da terra e de escutar o barulho da água correr nas pedras. Detesta a ideia de que algumas poucas pessoas acumulam bilhões, enquanto milhões de outras não têm o que comer ou onde morar. Queria ajudar mais em relação a isso, mas não tem todo o tempo que gostaria porque trabalha bastante. Um dos motivos para trabalhar tanto é o medo de envelhecer e também não ter o que comer ou onde morar. Apesar desse medo e das pessoas com fome e dos massacres promovidos pelos países ricos em nome da liberdade, Mauro acha a vida um verdadeiro milagre. E lamenta muito o dia em que vai dizer adeus. 


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