Lançado pela editora Todavia, "A Segunda Mãe", de Karin Hueck, é um romance distópico e surpreendente que revela, num pano de fundo de uma crise conjugal, as diversas formas de opressão da sociedade. No livro, o casamento de Madalena e Andrea parece perfeito. Andrea espera o segundo filho das duas e ocupa um cargo importante no governo federal. Lena, por sua vez, não precisa trabalhar e é responsável pelos cuidados domésticos e por Rosa, a filha do casal. Elas vivem em uma casa confortável e sem muros em um bairro de classe alta recém-inaugurado na cidade, têm amigas, afazeres, planos. É em um piquenique planejado com esmero por Lena para celebrar o aniversário de Rosa que a fresta de tensões e frustrações entre o casal aparece.
A crise conjugal, a maternidade, as relações de poder e as desigualdades existentes nos relacionamentos, as pequenas e as grandes escolhas do cotidiano — esses são alguns dos temas que recortam este romance. E, no entanto, apesar dessas questões tão atuais, aos poucos a história revela não se passar no presente. A narrativa distópica habilmente construída por Karin Hueck se descortina em vários níveis. O romance trata das diversas opressões que se infiltram até entre quem aparenta ser igual — isso em um mundo que já conseguiu eliminar uma das formas mais cotidianas de dominação. Assim como as tensões do casamento das personagens, que aos poucos se acentuam, a história desdobra-se em discussões sobre os papéis de gênero, as estruturas sociais, o amor e a violência.
"A Segunda Mãe" é um romance de estreia surpreendente. Com sua prosa leve e vertiginosa, posiciona Karin Hueck como uma romancista corajosa e atenta aos temas mais urgentes de nossos tempos. Compre o livro "A Segunda Mãe", de Karin Hueck, neste link.
Trecho do livro
Tomé ergueu as sobrancelhas. Navegava por território desconhecido agora. Tudo que sabia era baseado em aulas e livros de história, nos vídeos e filmes que haviam sobrevivido dos tempos passados. Sentiu os pensamentos ficando confusos, as coisas à sua frente ganhando tamanhos desproporcionais, a mão da menininha do tamanho de um fogão, a cadeira de cabeleireiro na mesma altura de um gato. Ficou pensando o que responderia a Rosa. Pelos relatos, parecia mesmo que homens matavam e batiam em gente, mas ela não se lembrava dessa época.
Nenhuma pessoa viva havia nascido quando eles ainda andavam pelas ruas. Olhou para Madalena implorando socorro.
— Sim, mas isso foi há muito, muito tempo. Não tem mais homem nenhum por aí. — Madalena socorreu a amiga e se agachou para ficar à altura da filha, como mandam os manuais de educação parental.
— Mas não é verdade que eles matam?
Madalena e Tomé se entreolharam.
— É verdade, filhota. Parece que eles matavam, sim.
— Por que eles faziam isso?
Tomé aproveitou para dar uma volta. Madalena ficou quieta por um minuto. Ela não tinha lembranças, mas ouvira as histórias. Registros de pessoas assaltadas à mão armada, indo para o trabalho, com o almoço na mochila. Relatos de famílias vivendo atrás de grades e alarmes, reunidas em frente à televisão, ouvindo histórias de criminosos cruéis. A polícia, que deveria proteger, mas matava. Mulheres espancadas por maridos no domingo à tarde. Estudantes estupradas em festas por rapazes que juravam ser seus amigos. Crianças, dentro de suas casas, abusadas por padrastos, tios, primos. Homens que bebiam e depois se espancavam. Homens que assistiam futebol e em seguida se espancavam. Homens que se olhavam atravessado no trânsito e se espancavam depois. Como explicar isso a uma criança?
— Eles são mais violentos, filha. Por isso, moram nos alojamentos.
Havia evidências o suficiente, que vinham de todas as sociedades do mundo. Os grandes clássicos da literatura versavam sobre batalhas, os filmes se passavam inteiros em meio a tiroteios e explosões, o noticiário de antigamente mostrava todos os dias os mesmos engravatados tomando decisões para machucar mulheres, crianças, a Terra, eles mesmos.
Não havia como negar a violência. Uma em cada cinco mulheres estupradas ao longo da vida. Cinquenta mil assassinatos ao ano no país. E ainda havia as guerras. Combates travados por anos a fio por soldados uniformizados, pilotos anônimos desmanchando bombas no ar. Líderes autoritários assinando papéis timbrados que ordenavam o extermínio de etnias inteiras. Ditadores que tiravam do povo para dar aos seus. Presidentes que faziam troça de pestes. Generais, autocratas, déspotas, genocidas, terroristas, todos homens. Eles existiram, sim, não havia dúvida, eram exatamente desse jeito que Rosa tinha descrito, e quase levaram a humanidade à ruína.
Sobre a autora
Karin Hueck nasceu em 1985, em São Paulo. Publicou livros infantis e de não ficção, entre eles "O Lado Sombrio dos Contos de Fadas" (HarperCollins, 2023). Entre 2018 e 2019, foi pesquisadora convidada de política e gênero na Universidade Livre de Berlim. A segunda mãe é seu primeiro romance. Garanta o seu exemplar de "A Segunda Mãe", escrito por Karin Hueck, neste link.
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