quarta-feira, 9 de agosto de 2023

.: "As Últimas Crianças de Tóquio" conta uma história onírica de amor familiar


Da autora de "Memórias de Um Urso-polar", uma distopia em que a família e o mundo natural são repensados a cada página. Lançado pela editora Todavia, o romance "As Últimas Crianças de Tóquio" conta uma história onírica de amor familiar e esperança cintilante em meio ao apocalipse do mundo natural. Este romance de Yoko Tawada é um vislumbre delicado do nosso futuro nas palavras de uma das autoras contemporâneas mais celebradas do Japão. A tradução é de Satomi Takano Kitahara e a capa, de Maria Carolina Sampaio.

No livro, Yoshirô já completou oitenta anos, mas todas as manhãs, muito cedo, ainda vai correr no parque com um cachorro de aluguel. Ele é um dos muitos idosos no Japão e pode, imagina, viver para sempre. A vida para Yoshirô não é tão simples quanto costumava ser. Poluição e desastres naturais marcam a face da Terra, e mesmo alimentos até então comuns são difíceis de encontrar. Quanto ao Japão, o país se isolou do resto do mundo. Os únicos seres vivos selvagens que restam são aranhas e corvos. A linguagem também começou lentamente a desaparecer. A vida útil das palavras parece ter diminuído: elas saem de moda depressa e não são substituídas. Os homens agora passam pela menopausa. As crianças ficam tão debilitadas que os pediatras, tomados de desalento e exaustão, começam a se matar.

Ainda assim, a única preocupação real de Yoshirô é o futuro de seu bisneto Mumei, que, como outras crianças de sua geração, nasceu frágil e grisalho, muito velho antes de sequer experimentar a juventude. À medida que a vida cotidiana em Tóquio fica mais e mais difícil, uma organização secreta começa um plano audacioso para encontrar a cura para as crianças japonesas — e será que o bisneto de Yoshirô pode ser a chave? Compre o livro "As Últimas Crianças de Tóquio", escrito por Yoko Tawada, neste link.


O que disseram sobre o livro
As últimas crianças de Tóquio tem uma beleza lunar (...) arrebatadora.”  The New York Times


Trecho do livro
Houve uma época em que, para fazer o bisneto absorver o máximo de cálcio, Yoshirô obrigava o menino a beber meio copo de leite todas as manhãs. Com tal dieta, no entanto, só conseguiu provocar no bisneto uma diarreia. O dentista explicou que a diarreia é um mecanismo de defesa do corpo, que expulsa rapidamente aquilo que os órgãos internos identificam como tóxico. É fato bem conhecido que, além do cérebro que fica dentro da cabeça, há também, na parte inferior do corpo, um outro cérebro chamado intestino. Parece que, em caso de divergência entre esses dois cérebros, a opinião do intestino é priorizada. Por isso, o cérebro era às vezes chamado de “Senado Federal”, e, o intestino, de “Câmara dos Deputados”. Como as eleições para a Câmara dos Deputados acontecem mais amiúde, acredita-se de modo geral que esta reflete mais fielmente a opinião do povo. De maneira análoga, como o fluxo do intestino é mais rápido, acredita-se que ele reflete o estado atual do indivíduo mais precisamente do que o cérebro.

Quando ia ao dentista, Mumei não conseguia abrir bem a boca. E sempre que o dentista pedia para escancará-la, ele abria a boca e esbugalhava os olhos ao mesmo tempo. Uma vez, ao abrir a boca, sentindo que a mandíbula se desencaixaria, ele entrou em pânico e, ao fechá-la, cerrou também os olhos, dizendo:

No fundo da minha garganta tem o planeta Terra — Mumei reclamou, abrindo bem os olhos e a boca logo em seguida. O planeta tinha aparecido certa vez em um exame de rotina com o pediatra. Ao enrolar a camisa para cima, estufando o peito, que de tão magro permitia ver as costelas, Mumei dissera com voz calma: 

Dentro do meu peito tem o planeta Terra.

Na ocasião, para disfarçar sua surpresa, Yoshirô virou o rosto, levantando o nariz e apertando os olhos, como se tentasse apreciar as árvores do jardim através da vidraça.

Pelo fato de a palavra “exame” evocar também as provas escolares, em algum momento a expressão “exame de rotina” deixou de ser usada, sendo substituída por “diagnóstico mensal”. O pediatra, durante essa visita regular, examinava primeiro a língua e a garganta minuciosamente, e também os olhos, virando as pálpebras do avesso. Depois disso, observava com cuidado a pele da palma das mãos, do rosto, do pescoço e das costas. Por fim, cortava um fio de cabelo para análise e investigava com uma lanterna o interior dos ouvidos e do nariz.

Certa vez, incapaz de controlar a própria ansiedade, Yoshirô perguntou:

O senhor está buscando alguma alteração celular? Com um leve sorriso, o médico respondeu:

Isso mesmo. Mas é impossível pôr as células em uma máquina para medir isso com exatidão. Se algum médico fizer essa promessa, desconfie, é provável que ele seja um charlatão. O que devemos realmente examinar é o corpo como um todo.

O pediatra se chamava dr. Satori. Ao que parece, era um parente distante do oncologista Dr. Satori, que havia muito tempo tinha cuidado da mãe de Yoshirô. No entanto, apesar do sobrenome em comum, os médicos não se pareciam nem um pouco, nem na voz, nem na expressão facial. O Satori oncologista tratava os pacientes como crianças. Se um paciente lhe perguntasse algo, ele erguia a sobrancelha como se tivesse sido criticado e respondia de forma brusca e mal-humorada:

Se você não parar de duvidar de mim e de me desobedecer, jamais ficará curado.

Já o pediatra de Mumei compartilhava generosamente seu vasto conhecimento com o menino e seu bisavô enquanto respondia às suas perguntas. Em sua linguagem não havia qualquer sinal de superioridade. Claramente ele não tinha medo das perguntas e nem mesmo de ser criticado. Embora Yoshirô soubesse disso, não fazia muitas perguntas. Até mesmo em relação ao estado de saúde de Mumei, registrado em sua ficha médica, Yoshirô apenas assentia sem fazer pergunta alguma. Caso perguntasse o significado oculto dos valores e números aferidos pelos exames, o bisavô temia descobrir que sob o nove havia sofrimento, e morte por trás do quatro.

O resultado dos check-ups mensais era copiado à mão por assistentes e levado por mensageiros que se dirigiam a pé ao escritório central do Instituto de Pesquisa Médica Novo Japão. Após o sucesso de um mangá chamado Correspondência da Brisa Marinha, cujo protagonista era um mensageiro com patas de antílope que tinha o mapa de cada cidade guardado na memória, esse tipo de trabalho cativava cada vez mais o público infantil. No entanto, com a atual deterioração da força física dos jovens, esse serviço se tornava mais e mais penoso. Em um futuro próximo, provavelmente todos os jovens fariam trabalhos de escritório, e o trabalho físico seria exercido pelos velhos.

Os formulários originais sobre o estado de saúde das crianças eram manuscritos, e cada médico os escondia em algum lugar à sua escolha. O jornal às vezes publicava tirinhas que mostravam os médicos escondendo esses documentos no fundo da casinha do cachorro, ou na cozinha, dentro de uma grande panela. Ao lê-las, Yoshirô ria, mas depois começou a pensar que talvez não fossem sátira, talvez se baseassem em fatos verídicos.

Como o que cada clínica entregava ao Instituto de Pesquisa Médica eram cópias de originais manuscritos, qualquer tentativa de apagar ou adulterar grandes quantidades de dados levaria muito tempo. Nesse sentido, o sistema atual era mais seguro do que os anteriores, criados pelos melhores programadores, em que a informação era digitalizada.

Agora que o adjetivo “saudável” já não se aplicava a nenhuma criança, os pediatras tiveram suas jornadas de trabalho aumentadas, tendo de enfrentar não somente a raiva e a tristeza dos pais, mas também a repressão, caso fornecessem informações a jornais ou a outros veículos de informação. Muitos padeciam de insônia e eram levados ao suicídio. Até que os pediatras decidiram primeiro criar um sindicato, reduzindo audaciosamente sua jornada laboral, recusando-se a entregar os relatórios exigidos pelo Ministério da Previdência e cortando todos os laços com os grandes laboratórios farmacêuticos.

Sobre a autora
Yoko Tawada, de quem a Todavia já publicou Memórias de um urso-polar, nasceu em Tóquio, em 1960, mudou-se para Hamburgo, na Alemanha, aos 22 anos, e hoje vive em Berlim. Escrevendo em japonês e alemão, publicou diversos livros — romances, poemas, peças teatrais e ensaios. Recebeu distinções importantes, como o Prêmio Akutagawa, o Prêmio Adelbert von Chamisso, o Prêmio Tanizaki, o Prêmio Kleist e a Medalha Goethe. Garanta o seu exemplar de "As Últimas Crianças de Tóquio", de Yoko Tawada, neste link. 

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