"Onde Pastam os Minotauros", de Joca Reiners Terron, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, é um romance alucinante e visceral. O dia começa cedo após uma noite em claro para quatro funcionários de um matadouro na última segunda-feira do ano. De volta ao trabalho após uma temporada no presídio, o Cão fuma e olha a sombra da lua, meditando sobre os ciclos sangrentos que condenam homens e bois à sua lamentável existência. Sua namorada Lucy Fuerza sonha com uma vida melhor enquanto se ocupa de organizar o dia dos patrões e receber a comitiva estrangeira que fará uma vistoriado abate religioso.
Em um quarto de hospital, o Crente, antes de assumir seu posto de fiscal da esfola, vive o luto pela morte da esposa e aguarda a filha voltar à consciência, amargando a culpa por tê-las contaminado nesses tempos de pandemia. E Ahmed maneja a faca e murmura versículos para Alá ao degolar um touro após o outro, enlutado com o assassinato da família por forças israelenses na Palestina. Dos acontecimentos desse dia dependerá a vida - ou a morte - de cada um deles e de todas as almas do labirinto que habitam.
Ambientado em um Mato Grosso a um só tempo imaginário e perturbadoramente próximo da realidade, no qual a poeira “tem a mesma cor do sangue coagulado”,"Onde Pastam os Minotauros" dá sequência aos romances anteriores de Joca Reiners Terron, nos quais a diagnose selvagem da realidade social se expressa por meio de uma fabulação alucinante. Mitologia, poesia e tragédias recentes do país surgem numa trama cheia de suspense, narrada quase minuto a minuto no transcorrer de um dia, mas também pontuada por visões do passado recente e longínquo, como fragmentos de sonho compondo um único e grande pesadelo.
Povoado por figuras reconhecíveis do noticiário e por minotauros e espectros de várias estirpes, este romance é um misto de thriller e alegoria centrado na revolta de alguns oprimidos contra a tirania do capital e o desastre civilizatório. Ao mesmo tempo, é uma reflexão visceral sobre a cegueira que nos faz matar o ambiente, os outros animais e, de novo e de novo, uns aos outros. Compre o livro "'Onde Pastam os Minotauros", de Joca Reiners Terron, neste link.
Sobre o autor
Joca Reiners Terron nasceu em Cuiabá, em 1968. Publicou, entre outros, Do fundo do poço se vê a lua (Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional, 2010), "Noite Dentro da Noite (2017), "A Morte e o Meteoro" (2019) e "O Riso dos Ratos" (2021), os dois últimos pela Todavia. Atualmente vive em São Paulo. Garanta o seu exemplar de "'Onde Pastam os Minotauros", de Joca Reiners Terron, neste link.
Trecho do livro
Dia após dia eles entram nos subúrbios da morte e só saem de lá quando escurece, de volta para o lugar onde vivem. Viajam dezenas de quilômetros todas as manhãs apenas para chegar ao matadouro a que chamam de trabalho, e o tempo gasto no trajeto de ir e voltar é suficiente para conceberem planos tão tortuosos quanto suas próprias existências, repletas de encruzilhadas e buracos sem fundo, enroscadas como a víscera que carregam na cabeça, os miolos de que tanto se orgulham.
A noite paira sobre todas as coisas, ao surgir do ônibus na estrada de terra entre mangueirais, acima de todos os seres, que escalam a boleia sem cumprimentar o motorista ainda perdido no marasmo noturno. A marcha é retomada a seguir, sendo interrompida de tempos em tempos para recolher novos sonâmbulos nos acostamentos; às vezes embarcam fêmeas tão informes em suas vestes de sombra a ponto de perderem toda a graça.
No escuro do corredor são todos indistinguíveis. O silêncio entre os assentos só é embargado pelos roncos e pela tosse, pois mal levantam dos instrumentos de tortura acolchoados onde passam parte da noite na luta com sua incapacidade de dormir, e logo estão a caminho da matança, ou daquilo que insistem em chamar de emprego, serviço, ganha-pão, atraídos como a mosca pelas narinas do cadáver.
Reviram as pálpebras conforme a luz dos postes que atravessa a janela na qual apoiam a têmpora atinge suas pupilas, em espasmos, e o ônibus avança, e talvez nesses instantes cheguem a sonhar algo luminoso, ou apenas sua prostração será invadida pelos fachos das lâmpadas rodeadas de insetos dos postes que se apagam à medida que a manhã se anuncia; é quando abrem os olhos aos poucos, um por um, localizando-se uns aos outros nos assentos vizinhos e murmurando arrotos e grunhidos de bom-dia. Nesse momento percebem que continuam no mesmo pesadelo do dia anterior.
Logo retornam a seu estado semidesperto e acompanham pela janela os desempregados que caminham pelo acostamento em direção ao matadouro. Vivem nesse distrito e ignoram por completo o mundo que os rodeia, desde o nascimento estão acorrentados à paisagem invariável que se estende até o horizonte, pontuada por árvores eximidas pela motosserra aqui e ali, e ao longe o topo metálico das colheitadeiras reluz nos campos de soja.
Às vezes passam por taperas nas quais se acumula o ferro-velho, por terrenos cobertos de mato onde se amontoam latas e detritos e veem o lume das pipas de crack na escuridão. Ao chegarem ao estacionamento do matadouro, após ouvirem o estrebuchar do motor e o ar comprimido dos freios ser acionado, se arrastam pelo corredor e descem do ônibus em fila indiana, trocando meias-palavras gastas e já sem sentido enquanto erguem a poeira do chão com passos de ímpeto semelhante ao de uma procissão composta apenas de fiéis que perderam a fé.
Observam os miseráveis se amontoando do lado externo do cercado. Alguns não dizem coisa nenhuma, apenas ruminam, que é algo que fazem quando permanecem em silêncio, ruminar o que poderia ter sido mas não foi, e ao fazerem isso ficam tristes, mas não é uma tristeza como a nossa, de quem não tem voz, e sim a tristeza de quem tem voz mas não pode exprimir nada, e mesmo se pudesse, de nada adiantaria, em nada alteraria o rumo das coisas. E nisso estamos.
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