terça-feira, 11 de abril de 2023

.: "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida" revela experiência devastadora


"Ao Amigo que Não me Salvou a Vida"
, de Hervé Guibert, em um misto de diário e ficção, o autor narra a experiência devastadora de seus últimos anos de vida após ser diagnosticado com aids. Reler o livro lançado pela editora Todavia 30 anos depois é como voltar a um mundo ao mesmo tempo ultrapassado e perdido, com um sentimento contraditório de alívio e nostalgia.

Com esse mundo desapareceu a ameaça da morte inexorável pela aids, assombrando as relações sexuais e amorosas, mas também um projeto literário para o qual a autoficção era um dispositivo de consagração mais da dúvida do que do eu, no qual a morte ocupava um papel central e reflexivo.

As bases desse projeto estavam enunciadas desde "La Mort Propagande", romance de estreia de Hervé Guibert, publicado quando ele tinha 21 anos: “[A morte] será minha única sócia, serei seu intérprete”. A aids foi o ato final - e inesperado - em que o autor, encarnando a morte, terminou por convertê-la em obra, afirmação vital. Embora centrado no autor, "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida" é composto de quem o cerca, da magia das relações amorosas e afetivas, dos amigos (como Michel Foucault e Isabelle Adjani) cuja identidade aparece mais ou menos velada sob iniciais e pseudônimos.

O livro narra a descoberta da aids no corpo do autor, quando a doença ainda era uma sentença de morte. Não é possível ignorar o papel da forma nessa experiência. Ela surge na disputa com o escritor austríaco Thomas Bernhard, cujas iniciais, T.B., também representam, em seu tempo, uma doença fatal e literária. Alguns trechos do livro são pastiches deliberados de Bernhard. São desafios de admiração, expressão da doença como lugar da dúvida, angústia da influência como metástase.

A enfermidade não permite ao autor reduzir o relato à afirmação de si, a um conto de superação. A experiência literária é antes “enunciação do indizível”. A autoexposição na morte ou é “cúmulo ou interrupção do narcisismo”. Quando se olha no espelho, o autor vê o “olhar do cadáver vivo”. A obra é o exorcismo da sua impotência. A tradução é de Julia da Rosa Simões. Compre o livro "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida" neste link.


Sobre o autor
Hervé Guibert nasceu em Paris, em 1955. Jornalista, crítico, roteirista e fotógrafo talentoso, foi autor de diversos ensaios, contos e romances. "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida", publicado em 1990, o revelou para o grande público apenas um ano antes de sua morte. Garanta o seu exemplar de "Ao Amigo que Não me Salvou a Vida" neste link.


Trecho do livro
Tive aids durante três meses. Mais exatamente, acreditei durante três meses estar condenado por essa doença mortal chamada aids. E eu não estava imaginando coisas, estava de fato infectado, o teste positivo o provava, bem como os exames que demonstravam que meu sangue começava um processo de falência. Ao cabo de três meses, porém, um acaso extraordinário me fez acreditar e ter quase certeza de que poderia escapar dessa doença que todo mundo ainda considerava incurável. 

Assim como não revelara a ninguém que estava condenado, exceto aos amigos que se contam nos dedos de uma mão, não revelei a ninguém, a não ser a esses poucos amigos, que sairia dessa, que eu seria, por aquele acaso extraordinário, um dos primeiros sobreviventes no mundo dessa doença inexorável.

Hoje, 26 de dezembro de 1988, começo a escrever este livro em Roma, para onde vim sozinho, contra tudo e contra todos, fugindo daquele punhado de amigos que tentaram me deter, preocupados com minha saúde mental, nesse feriado em que tudo está fechado e cada passante é um estrangeiro, em Roma onde definitivamente percebo que não amo os homens, onde, disposto a tudo para fugir deles como da peste, não sei com quem nem onde comer, vários meses depois daqueles três meses em que tive plena consciência da certeza de minha condenação, e nos meses seguintes, em que pude, por aquele acaso extraordinário, acreditar-me salvo, entre a dúvida e a lucidez, à beira tanto do desânimo quanto da esperança, não sei também o que pensar sobre nenhuma dessas questões cruciais, sobre essa alternância entre condenação e remissão, não sei se essa salvação é uma isca colocada diante de mim, como uma armadilha para me acalmar, ou se de fato é uma ficção científica da qual eu seria um dos heróis, não sei se é ridiculamente humano acreditar nessa graça e nesse milagre. 

Vislumbro a estrutura deste novo livro que guardei em mim todas essas últimas semanas, mas não sei como ele se desdobrará de ponta a ponta, posso imaginar vários fins, por enquanto todos no âmbito da premonição ou do desejo, mas sua verdade como um todo ainda me está oculta; digo para mim mesmo que este livro tem sua razão de ser justamente nessa margem de incerteza, comum a todos os doentes do mundo.

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