domingo, 19 de fevereiro de 2023

.: Carnaval: quando Mário de Andrade perdeu tudo: "Fui ordinaríssimo"


A obra de Mário de Andrade é atravessada por uma profunda inquietação em torno do sexo. Pulsante e permanente, essa inquietação se traduz tanto na exploração do domínio erótico, de notável amplitude, quanto na incessante busca formal que o tema lhe impõe sem descanso. Foi a partir dessas constatações que Eliane Robert Moraes concebeu a "Seleta Erótica de Mário de Andrade", desdobrando-as em diversas perguntas pontuais, sem perder o foco na tópica da sexualidade. Dentro desta perspectiva, separamos um trecho da carta que Mário escreveu a Manuel Bandeira para contar ao amigo sobre as aventuras de seu carnaval no Rio de Janeiro:


A Manuel Bandeira [São Paulo, fev. 1923]
Querido Manuel,

Não me condenes antes que me explique. Depois perdoarás. Foi assim. Desde que cheguei ao Rio disse aos amigos: Dois dias de Carnaval serão meus. Quero estar livre e só. Para gozar e para observar. Na segunda-feira, passarei o dia com Manuel, em Petrópolis. Voltarei à noite para ver os afamados cordões.

Meu Manuel... Carnaval!... Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia... Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar... Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas... Que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! Se estivesses aqui, a meu lado, vendo-me o sorriso camarada, meio envergonhado, meio safado com que te escrevo: ririas. Ririas cheio de amizade e de perdão.

Nada me faz esquecer-te. Mas quem falou em esquecimentos e abandonos? Nem tu, tenho certeza disso. Foi leviandade. Criançada nada mais. Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. Havia um quê de neblina, de ordem, de aristocracia nesse delírio imaginado por mim. Eis que sábado, às 13 horas, desemboco na Avenida. Santo Deus! Será possível!...

Sabes: fiquei enojado. Foi um choque terrível. Tanta vulgaridade. Tanta gritaria. Tanto, tantíssimo ridículo. Acreditei não suportar um dia a funçanata chula, bunda e tupinambá. Cafraria vilíssima, dissaborida. Última análise: “Estupidez”! Assim julguei depois de dez minutos que não ficaria meia hora na cidade. [...]


Sobre o livro
Conforme a pesquisa para "Seleta Erótica de Mário de Andrade" ganhou corpo, as questões foram se organizando até resultar nas oito partes que compõem a presente seleta, a saber: “Artes de Brincar”, “O Corpo da Cidade”, “Coisas de Sarapantar”, “Presença da Dona Ausente”, “Imoralidades e Desmoralidades”, “Prazeres Indestinados”, “Brasileirismos, Safadagens e Porcarias” e “Confidências e Confissões: Alguma Correspondência”.

Na tentativa de reconhecer a silhueta de Eros nas tantas faces que o próprio escritor se atribuiu, sua produção literária se vale dos mais diversos recursos formais para dar conta de uma dimensão que parece continuamente escapar. Daí que o sexo venha a ser alçado ao patamar das suas grandes interrogações, onde se oferece na obscura qualidade de incógnita. 

Fruto de uma visitação intensiva aos escritos do autor, o trabalho de seleção buscou contemplar tanto a variedade de gêneros por ele praticada quanto as diversas fases de sua obra, sem negligenciar aspectos biográficos ou editorias. Embora o volume tenha privilegiado os títulos mais representativos em termos de erotismo, com particular atenção aos textos canônicos, considerou-se pertinente apresentar exemplos da “obra imatura”, ainda pouco conhecida, além de amostras da grande massa de manuscritos ainda não publicada. A decisão editorial, contudo, foi pautada pela riqueza da erótica marioandradina, que se manifesta de forma vigorosa em todo seu conjunto. Compre "Seleta Erótica de Mário de Andrade", de Mário de Andrade, neste link.


Trechos do livro
"Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pelo com pelo, Deixar o pelado dentro."
— Mário de Andrade,
"Macunaíma - O Herói Sem Nenhum Caráter"


"Eu sei coisas lindas, singulares, que Pauliceia mostra só a mim, que dela sou o amoroso incorrigível e lhe admiro o temperamento hermafrodita..."
— Mário de Andrade,
“De São Paulo – I”


"Te gozo!…
E bem humanamente, rapazmente.
Mas agora esta insistência em fazer versos sobre ti..."
— Mário de Andrade,
"Losango Cáqui"

Sobre a organizadora
Eliane Robert Moraes é professora de literatura brasileira na FFLCH-USP e pesquisadora do CNPq. É autora de diversos livros, dentre os quais estão: "O Corpo Impossível" (Iluminuras/Fapesp, 2016), "Lições de Sade - Ensaios sobre a Imaginação Libertina" (Iluminuras, 2011) e "Perversos, Amantes e Outros Trágicos" (Iluminuras, 2013). Traduziu "História do Olho" de Georges Bataille (Companhia das Letras, 2018), e organizou a "Antologia da Poesia Erótica Brasileira" (Ateliê, 2015), publicada em Portugal (Tinta da China, 2017). Também assina a organização do livro "O Corpo Descoberto - Contos Eróticos Brasileiros 1852/1922" (Cepe, 2018), que integra uma "Antologia do Conto Erótico Brasileiro" a ser completada com o título "O Corpo Ddesvelado" (Cepe, no prelo). Garanta o seu exemplar de "Seleta Erótica de Mário de Andrade", de Mário de Andrade, neste link.


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