terça-feira, 31 de janeiro de 2023

.: "A Repetição", de Pedro Cesarino, revela mundos pouco explorados


Escritas a partir de fatos reais e documentos históricos, duas novelas feéricas que revelam mundos ainda pouco explorados na literatura brasileira. Este é o romance "A Repetição", de Pedro Cesarino, lançado pela editora Todavia.

No livro, Totanauá é o primeiro de seu povo a aprender a ler. Escuta do papel palavras estranhas que falam sobre um novo tempo. Tenta transmiti-las aos seus parentes, que recebem as revelações sem saber se creem ou não no velho homem. Seguido de perto por um sobrinho aprendiz, Totanauá reluta em ensiná-lo sobre o corpo invisível presente nas folhas de jornal encontradas em sua aldeia isolada numa Amazônia fictícia.

Acomodado no jardim de um hospital, M. ouve relatos de pessoas perturbadas com sonhos de parentes mortos por uma doença devastadora. Durante a noite, ele recebe visitas de mulheres-espírito que entram pela janela de seu apartamento. Trarão elas explicações sobre os sonhos enigmáticos? Terão os sonhos alguma relação com o estado desolador em que se encontra a metrópole e todo o território em que vive M., assolado pelo contágio, pelo caos político e climático? 

Um passado de crueldade clama pela dívida não paga que formou o território e que, agora, o persegue com sua sina. Desde seu apartamento, o narrador rememora a infância e descobre documentos que se relacionam ao passado através dos sonhos e das visões das mulheres. Quem poderá acreditar em suas palavras, agora que elas revelam o que se pretende esquecer?

Nessas duas novelas reunidas em "A Repetição", o autor Pedro Cesarino narra com maestria o percurso de dois personagens envolvidos em dilemas sobre a verdade. Situados em mundos distintos — a floresta, a metrópole e o litoral —, ambos se confrontam com a herança da escravidão, da violência contra povos indígenas e da exploração econômica. Valendo-se de fatos reais, estudos e documentos históricos para a escrita de ficção, Pedro Cesarino desenvolve um registro narrativo e imagético heterodoxo, estabelecido a partir da interlocução com pensamentos indígenas e afrocentrados ainda pouco presentes na literatura brasileira contemporânea. Compre o livro "A Repetição" neste link.


O que disseram sobre o livro
“… neste lugar em que operam outras forças, capazes de anular todas as fronteiras que pacientemente estabelecemos entre o humano, o animal e a natureza, entre o mito e a realidade.” — Gladys Marivat, Le Monde

“Pedro Cesarino, amigo do criar, nesta obra-dobra, trabalha com transmutações, ires-e-voltares, acontecimento que morre para acontecer, floresta, abismo, cidade, fumaça, incorporação, cores, paredes, (re)abertura de corpo. São fluxos que queremos acompanhar para que nos transformemos, assim, noutras poéticas. Se encantamentos modulam e singram a vida, a narrativa aqui presente modula encantamentos, num rio de forças que, tendo estado sempre aí, ainda estão por chegar. Eis uma possível repetição. Mas o que falará belamente sobre isto são as palavras regadas por este autor potente, que se coloca assumidamente em relação para inventar e se juntar a mundos.” — Tiganá Santana


Trecho do livro
Quando Américo não estava lá, quando trabalhava com o Gordo e dormia no galpão, quando tocava os bois e tirava as bicheiras, foi que chegou o papel, negócio chamado de jornal. Ninguém tinha visto aquilo antes, nem mesmo os parentes mais velhos. Agora todo mundo via aqueles papéis que embalavam as mercadorias. Américo tinha achado que era apenas casca de árvore da fazenda que só o Gordo plantava e que eles davam para os peões e os cachorros dormirem na friagem. Mas não era isso, ele percebia agora. O papel cuidava das mercadorias, aquelas coisas que os brancos usavam, prato branco de cerâmica, copo de vidro, tudo aquilo. Era para isso que servia aquele jornal.

Muito se falava sobre aquela casca das coisas que agora chegava nas aldeias. O velho Neco Preto pensou que os pratos já nasciam assim, com as folhas enroladas em torno deles. Era mesmo por isso que os pratos ficavam brancos. Passavam toda a sua sujeira para a casca até saírem claros e brilhantes, feito as pessoas que deixam seus corpos e ficam mais fulgurantes, ele pensava. Era assim que conversavam sobre aquelas peles cada vez mais presentes.

Curica Branca tentou comer o papel misturado com água para ver se era bom. Comeu muitas folhas e ficou bem por algum tempo. Foi durante a noite que ele começou a ver cobras andando por cima de seu corpo. Vomitou tanto que quase morreu. Américo começava a entender que tinha jeito certo de comer aquela casca das coisas, que era feita para elas aparecerem. Era parecido com a casa do Gordo, onde ele jamais entrou mas que brilhava com suas janelas de vidro. Também aquela casa devia ter a sua casca, que era o papel que o Gordo jogava para o pessoal dormir no galpão.

Foi então que Totanauá levantou. Ele parecia estar bravo. Pegou um pedaço de papel, um pedaço cheio de escritas, e começou a falar atropelando as palavras, engolindo aqueles ditos todos que saíam pelos dentes.

Negócio de casca que chegou aqui agora para a gente! — ele dizia. — Esse papel, essas linhas é que eles usam para falar! Eu sei que isso é outra coisa! Jornal, livro, revista! É isso que eles chamam quando põem na frente do olho para pensar! Vocês não sabem de nada!

Totanauá disse tudo isso muito rápido, quase vomitando, avermelhado, e depois sentou em silêncio. Ficou ali em sua sombra, batendo o pé no chão. O pessoal começou a conversar, inquieto, sem entender direito o que ele queria dizer. Então Totanauá levantou de novo, subiu no banco e lá ficou. Fez que ia falar, mas parecia que as palavras não saíam da sua boca. Ia ficando nervoso, chacoalhava os papéis com as mãos, tentava falar, mas a fala não saía. Os parentes mexiam com ele, davam risada dos engasgos, e o velho ficava mais nervoso, encalhado nas palavras, até que desistia e se deixava tomar pelo silêncio. Sentava ainda mais aflito, batendo o pé mais forte no chão, coçando a cabeça.


Sobre o autor
Pedro Cesarino
é escritor e antropólogo, autor do romance "Rio Acima" (Companhia das Letras, 2016, traduzido como L’attrapeur d’oiseaux, Rivages, 2022) e de outros estudos sobre cosmologias e poéticas ameríndias, entre eles "Oniska: Poética do Xamanismo na Amazônia" (Perspectiva, 2011) e "Quando a Terra Deixou de Falar: Contos da Mitologia Marubo" (Ed. 34, 2013). É professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Garanta o seu exemplar de "A Repetição" neste link.

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