terça-feira, 13 de dezembro de 2022

.: Crítica de teatro: em "Gaslight", as mulheres são o próprio perigo

O Resenhando.com assistiu à peça antes de excursionar pelo país - na última apresentação no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Agora, o espetáculo conta com nova formação e traz os atores Gustavo Merighi e Maria Joana nos papéis que antes eram interpretados por Leandro Lima e Kéfera Buchmann. Foto: Priscila Prade

Por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando. 

Excursionando pelo país, "Gaslight - Uma Relação Tóxica", a última peça teatral dirigida por Jô Soares,  ainda soa moderna nos dias de hoje. Isso não seria um feito impressionante se o espetáculo não fosse escrito pelo dramaturgo britânico Patrick Hamilton em 1938.

As apresentações fizeram sucesso na Broadway e geraram a expressão que correu a boca do povo e hoje é um símbolo do combate à opressão de homens sobre mulheres. O resultado é uma das peças de maior sucesso da história da Broadway e agora, mais de 84 anos depois, vem traçando uma trajetória de sucesso no Brasil com uma pitada de charme a mais, que pode ser explicada por vários motivos.

O primeiro deles é que "Gaslight" representa o último trabalho de Jô Soares no teatro. Além disso, há elementos que lembram o artista o tempo todo, e que soam como homenagens. Ele assinou tradução, a adaptação e a direção do texto, com colaboração de Matinas Suzuki Jr. e Mauricio Guilherme, parceiros de trabalhos anteriores. Mas não é só isso: Jô está representado no espetáculo a partir de um quadro com a figura dele pintada com uma expressão de que observa tudo e todos.

Não se sabe se aquele quadro no meio do cenário estava previsto ou se foi uma homenagem muito adequada. Trazer à tona um assunto que ainda hoje é tão oportuno, mas escanteado em pleno século XXI, também é um mérito da peça. A  expressão "Gaslighting" surgiu na peça e até hoje se refere a uma forma de abuso psicológico em que informações são distorcidas ou omitidas para favorecer o abusador, que também pode inventar algo com a intenção de fazer a vítima duvidar da própria memória, percepção e sanidade mental. 

Há no espetáculo um quinteto incrível de artistas com personagens igualmente marcante, que formam um espetáculo que vai marcar época. Assistimos a última apresentação do espetáculo no Teatro Procóprio Ferreira, em São Paulo, e o que se pode perceber é a alternância de protagonistas em um texto capaz de fazer com que todos os atores tenham um momento para brilhar em cena. 

Érica Montanheiro na pele da ingênua dona de casa Bella é uma força da natureza. Ela alterna força, bravura, desespero e vulnerabilidade em uma personagem que sofre nas mãos de um marido repugnante. A partir de manipulações do marido, a personagem pensa que está ficando louca, e o desespero é matéria-prima para uma artista desse quilate soltar todas as suas feras e arrebatar o público.

Do lado da sanidade, é muito fácil odiar Giovani Tozi na pele de Jack, o marido abusivo que se utiliza das luzes para confundir a esposa. Não fosse o talento dos dois atores, poderia facilmente cair no caricato, e o embate entre os dois, em uma das cenas mais tensas do teatro brasileiro em 2022, é de cair o queixo. 

Leandro Lima, ator recém saído da novela "Pantanal" mostra versatilidade no papel de Ralf (agora interpretado por Gustavo Merighi),  um investigador de polícia que faz a roda da história avançar. É uma alegria ver como a passagem de tempo fez bem para o ator que brilhou em "A Minha Primeira Vez" no Teatro Folha - crítica neste link. Se já era excelente, aprimorou o talento.

Com muita naturalidade, Kéfera Buchmann é a doce surpresa do espetáculo e talvez a mais marcante. Intérprete da jovem e extrovertida Nancy (agora interpretada pela atriz Maria Joana), a nova arrumadeira da casa, ela aproveita cada momento em cena para mastigar, degustar e devolver cada fala aos companheiros de cena em um bate-bola que envolve o público, extasiado com o que vê. No espetáculo, às vezes Kéfera é uma fada encantadora, em outras é uma bruxa que poderia ser queimada pela inquisição. 

É, também, a personagem mais complexa, pois é a metáfora da tentação que transforma mulheres em seres diabólicos - porque pensam, ou simplesmente porque são mulheres e, consequentemente, provocam o que há de melhor e pior nas pessoas, sobretudo nos homens. O público fica exposto ao surgimento de uma grande atriz, com uma atuação extremamente moderna, que resolveu abdicar do engajamento fácil (para ela) e construir uma carreira sólida de artista. Merece muita atenção e todos os aplausos possíveis. 

Por falar em grande artista, Neusa Maria Faro, que interpreta a governanta Elizabeth, é o ponto de doçura da peça. É impossível não saborear o prazer vê-la em cena, ainda mais em um papel nada óbvio - não é uma senhora adorável, mas também não é um diabo - caminha pelo meio termo. Há uma mistura de doçura e ironia fina nesta atriz que, a cada vez que aparece, torna tudo ainda mais especial. 

Nessa releitura feminista, o final é um recado direto aos homens: as mulheres não são as mesmas de 1938. Não se encaixam mais no papel de pessoas indefesas, relegadas ao papel de vítimas, e muito menos esperam um príncipe encantado para salvá-las de um risco iminente em uma torre alta e inacessível. Elas são o próprio perigo. Que assim seja.

Gustavo Merighi interpreta o investigador Ralf, e Maria Joana é a jovem e espirituosa Nancy, papéis que antes eram defendidos por Leandro Lima e Kéfera Buchmann
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