Espetáculo escancara com delicadeza os traumas que homens e mulheres pretos carregam no Brasil. Foto: Alexandre Magno
O ator Chico Sant’Anna viveu na pele e calado o que muitos pretos passaram e continuam passando no Brasil: a discriminação racial falada, mas também aquela que não usa as palavras para machucar. Para celebrar seus 40 anos de carreira e os dez anos da Cia. Plágio de Teatro, da qual faz parte, o premiado ator brasiliense resolveu dar voz a essa angústia. No espetáculo "Saiba o Seu Lugar!", ele explora com delicadeza as marcas que o racismo, a violência psicológica e sexual e a exclusão social deixam na vida de milhares de pessoas.
Com dramaturgia do argentino Santiago Serrano e direção de Sérgio Sartório, a peça estreou em Brasília, em 2019. Agora, desembarca em São Paulo, no Teatro Pequeno Ato, onde ficará em cartaz até 30 de outubro, com sessões de quinta a domingo. O espetáculo sobre um cidadão aparentemente comum que despe suas memórias e traumas na frente do público marca a estreia do ator no formato de monólogo.
"Saiba o Seu Lugar!" acompanha o personagem Dinho dos Santos, um senhor com quase 70 anos que, de dentro de um quartinho nos fundos de sua casa, decide contar sua história. Negro, cercado por brancos, nascido em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais, em uma família pobre, ele se vê constantemente tolhido pela frase que começou ouvindo de sua mãe, mas encontrou por diversas vezes na sociedade: “você precisa saber o seu lugar”. Dinho começa contando a história de sua infância sofrida, sem recursos e que encontra, desde muito cedo, a violência.
Em camadas, cena após cena, ele revela novas experiências que contribuíram para formá-lo enquanto homem e cidadão. Com um texto potente e extremamente sensível, o personagem consegue dar voz à realidade brasileira. “Eu sou um homem negro que já viveu todo tipo de preconceito, violência social, racial e doméstica. E eu queria falar sobre isso. Algumas experiências desse texto realmente são minhas, mas também há muitas outras pessoas. Antes de conceber o espetáculo, eu me lembrei de uma entrevista do Djavan que tinha lido. Ele dizia que a característica que menos gostava em si mesmo era a timidez, um sentimento das pessoas da raça negra criadas em ambientes menos privilegiados. E que sempre ouvia ‘você deve procurar seu lugar, você não pode estar aqui porque você é preto’. E eu pensei que se até ele, sendo o gênio que é, passou por esse tipo de problema que eu sempre tive, então era algo do qual eu deveria falar”, conta o ator.
A vontade de fazer um solo era antiga para o ator, mas ele precisava enfrentar o desafio de subir ao palco sozinho. No entanto, a recepção do público mostrou porque a peça era e continua sendo necessária. “Quando estreamos em Brasília, foi bem emocionante. Depois de um espetáculo, uma mãe começou a chorar e me agradeceu pelo alerta. Um jovem me abraçou, chorou e agradeceu a coragem de ter me exposto daquela forma. Então essas respostas nos encorajam”, relembra.
Estreia com novidade
A história completamente contemporânea surgiu a partir de um texto clássico: "O Canto do Cisne", de Tchekhov. Ele acompanha um ator cômico que está em decadência no fim de sua carreira. Chico se encantou pela estrutura montada na peça, em que este personagem narra e interpreta pequenos contos de sua trajetória.
Inspirado nessa narrativa, o ator, o diretor Sérgio Sartório e o dramaturgo argentino Santiago Serrano começaram a trabalhar na versão que fariam. Após muitas conversas entre a equipe, e diante do desejo de Chico de colocar questões raciais nos palcos, eles chegaram à ideia deste personagem que une a estrutura de Tchekhov à vivência brasileira e conta, já na velhice, episódios de seu passado.
O texto é do dramaturgo argentino Santiago Serrano, que já escreveu outras três peças para a Cia. Plágio de Teatro: "Noctiluzes" encenada de 2014, "A Autópsia de Um Beija-Flor", em 2016 e "Atrás das Paredes", em 2019. “Chico está mais vital e criativo do que nunca. A partir dessa premissa, começou a escrever memórias de sua infância em uma cidade do interior de São Paulo. A partir desses textos, meu trabalho como dramaturgo me levou a dar-lhes estrutura teatral. O personagem em cena não é Chico Sant'Anna, mas tem muito dele. Não é um monólogo que quer refletir o passado, mas seus problemas tentam denunciar muitas questões atuais: discriminação, abuso, identidade de gênero”, conta o escritor.
A equipe é premiada. O espetáculo "Noctiluzes" também teve temporada em São Paulo, em 2015, e ganhou uma versão em filme, que estreou no Festival de Brasília. Pela obra, Chico venceu a categoria de Melhor Ator e Sartório foi premiado como Melhor Direção da Mostra Brasília no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2021. Chico também venceu dois prêmios importantes de teatro: como Melhor Ator pela peça Cru em 2011, no Festival de Teatro do Rio de Janeiro, e também o Prêmio Sesc do Teatro Candango pelo conjunto da carreira, em 2016, entre outros prêmios.
Sartório e Chico passaram oito meses trabalhando no roteiro da peça a fim de encontrar formas de dramatizar as cenas contadas pelo personagem. “A marca da companhia é trabalhar com atuações marcantes, então começamos a separar os momentos que achávamos que deveriam ser narrados e os que tinham que ser recriados em cena. E nosso desafio era fazer isso de maneira a tocar o público. Construímos o espetáculo com um começo narrado e um final bastante encenado. E isso traz cenas muito fortes, inclusive uma em que o Chico precisa dar vida a dois personagens. E ele faz isso com maestria”, explica o diretor.
O ator e o diretor reformularam o texto durante a pandemia e adicionaram mais contos de caráter autobiográfico. Chico diz que reler este texto durante estes últimos dois anos, quando a situação do brasileiro piorou consideravelmente, o encheu de fôlego para reviver o personagem. E ele espera que a peça encoraje as pessoas que sofrem violência a denunciar seus algozes.
“Estamos vendo a quantidade de pessoas negras que são assassinadas diariamente no Brasil. É o grupo de pessoas que mais sofre, além de enfrentar dificuldades no acesso a serviços e viver uma exclusão sistemática todos os dias. Então essa minha nova leitura me dá muito mais força para falar sobre um tema que era temeroso no início. E tem uma coisa muito atual que é a possibilidade da internet de dar voz às pessoas que sofrem abuso ou preconceito para que elas saibam que precisam contar suas histórias para o mundo”, diz Chico.
A música é um componente especial do espetáculo. Ela faz parte da história do personagem porque seu quarto de discos é também seu lugar seguro, onde ele pode ser quem é e se deixar absorver pelas letras e melodias. Também neste ponto o ator e o personagem se encontram, pois Chico tem uma grande coleção de vinis. Com canções que passam por um clássico de guerra de Tchaikovski (Abertura 1812) ao rock revolucionário dos Beatles, a trilha sonora foi toda escolhida pelo ator.
"A música de abertura sempre me marcou muito porque fala da vitória do oprimido. Foi composta para comemorar a derrota do exército francês, de Napoleão, após sua tentativa de invadir a Rússia. Ela é uma apoteose e eu achei que essa celebração da vitória do mais fraco tinha tudo a ver com a nossa história. E também escolhi os Beatles porque sou beatlemaníaco desde criancinha. Escolhi uma música fantástica que se chama Nowhere Man, que fala de um homem de lugar nenhum, que não existe lugar determinado para as pessoas. E Free as a Bird para coroar o momento que o personagem se liberta desse pesadelo que o acompanhou a vida inteira”, explica.
Ficha técnica:
Texto: Santiago Serrano. Direção e tradução: Sérgio Sartório. Elenco: Chico Sant’Anna. Iluminação: Sérgio Sartório. Trilha sonora: Chico Sant’Anna. Cenografia e figurino: Chico Sassi. Produção: Deca Produções (André Deca) e Guinada Produções (Daniela Vasconcelos). Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli. Realização: Cia. Plágio de Teatro.
Serviço:
Espetáculo "Saiba o Seu Lugar!"
Temporada: até dia 30 de outubro - Quintas e sextas, às 21h. Sábados às 18h e 21h. Domingos às 18h. Aos domingos, a sessão terá intérprete de libras e programas em braille.
Ingressos: R$ 30 e R$ 15.
Duração: 55 minutos.
Classificação etária: 14 anos.
Pequeno Ato: Rua Doutor Teodoro Baima, 78 - Vila Buarque. Telefone: 11 99642-8350.
Bilheteria aberta com uma hora de antecedência. Aceita cartões. Não tem acessibilidade. Estacionamento vizinho.
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