sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

.: Pantanal: a fazenda de José Leôncio, bastidores com Renato Góes


Renato Góes comenta os bastidores das gravações no Pantanal e fala sobre seu personagem. Foto: Rede Globo
 


Não é fácil para José Leôncio (Renato Góes) seguir em frente após o desaparecimento de seu pai, Joventino (Irandhir Santos). Durante meses o peão roda rios, florestas, pastos e baías à procura de qualquer vestígio que indique seu paradeiro. A busca segue sem sucesso. Neste período, é a presença dos companheiros Quim (Chico Teixeira) e Tião (Fábio Neppo) que lhe dá esteio. Sem contar com a chegada de uma velha amiga, Filó (Letícia Salles). Uma morena de currutela, ou prostituta, com quem Zé se relacionou no passado e que chega grávida em sua fazenda pedindo abrigo e trabalho. Ao nascer Tadeu (Lucas Oliveira dos Santos), Filó pede que Zé o batize e logo o menino cresce e passa a chamá-lo de padrinho para cima e para baixo, buscando preencher o vazio no peito de Zé após o sumiço de Joventino.

Anos antes, quando os Leôncio chegaram ao Pantanal e Joventino quer domar os bois no feitiço, aposentando o laço, quase todos os peões que os acompanhavam há muito tempo pelas tantas comitivas país adentro, os abandonam, pois não acreditam que eles podem ter sucesso naquela empreitada.

Pois tem. E quem fica para ver consegue desfrutar da abonança. Basicamente, Quim e Tião, esses dois peões atrapalhados, mas fiéis e leais à família que garante a eles morada e uma vida digna por tanto tempo. Quim não consegue se furtar de pontuar os seus comentários quase sempre impertinentes. Tem a língua maior que a boca e o olho maior do que a barriga, e por isso é constantemente reprimido por todos ao seu redor, inclusive e principalmente por Tião, seu amigo inseparável. Tião, por sua vez, é filho da liberdade como todo peão. Por isso se adaptou tão bem à vida pantaneira, de lonjuras sem fim e horizontes distantes, onde tudo é possível e nada é necessário. Dono de um humor peculiar, Tião é para os patrões muito mais do que um mero criado. Como todos os que seguem a toada do velho Joventino – e, em seguida, a de José Leôncio –, Tião é um homem de confiança. Preza por isso, bem como pela imprevisibilidade da vida de peão; de partir em comitiva, de sair em bagualhadas e viver entre as modas cantadas e os casos contados. Tião e Quim se tornam mais que bons amigos, se tornam irmãos, e têm, um com o outro, a liberdade de sentir o que sentem e dizer o que pensam. E por isso, porque são tão puros, brindam a todos, seja quem seja, com as suas pérolas.

Quando Filó se une aos três na fazenda, fortalece ainda mais o ciclo de proteção e afeto de José Leôncio. Ela é muito mais que uma empregada. Filó é a alma e o coração daquela casa. Uma mulher religiosa, apegada à sua fé. Após ser expulsa de casa pela mãe aos 12 anos, encontra abrigo em uma currutela, local onde conhece José Leôncio meses antes de procurar por ele na fazenda. Recebe dele emprego, carinho, abrigo e, acima de tudo, proteção. Vira fera para proteger seu Zé contra tudo e contra todos, disposta a trair até mesmo os seus sentimentos pelo bem do patrão.

Com tanto amor ao seu redor, de Quim, Tião, Filó e Tadeu, pode-se dizer que José Leôncio é um homem de sorte. Mas nem sempre ele se sente assim. Após o desaparecimento de Joventino, Zé carrega essa dor em ferida aberta a vida inteira e tem dificuldade em reconhecer a riqueza que tem em sua volta. Confira a entrevista com o ator Renato Góes! 


Você já conhecia o Pantanal? Poderia nos contar sobre essa viagem? O que mais te chamou atenção até aqui?

Um mês antes de começarem as gravações, fui passar 15 dias no Pantanal, liguei para alguns amigos e expliquei que eu gostaria de conhecer a região, fui com eles, passamos juntos essas duas semanas. Dentro desse período, fui para a casa do Almir (Sater) passar três dias e o restante foi nas redondezas de Aquidauana, no Bosque Belo, a meia hora de Aquidauana. Foi um impacto muito grande. É uma quantidade de bichos... Eu queria perder isso, queria que meu personagem não tivesse um deslumbramento de quem está vendo isso tudo pela primeira vez. Meu personagem está acostumado com biomas diferentes. Eu precisava quebrar isso. Esses 15 dias foram fundamentais. Desde o dia que cheguei, procurei ver como era o dia a dia dos peões, a lida, o manejo. Eu tenho alguma conexão com isso por ter frequentado muito o agreste pernambucano. Entendia a lida, gostava disso, mas cada lugar é um lugar. O Pantanal tem suas peculiaridades, principalmente as nomenclaturas das coisas, a guaiaca, o alforde, a bainha, tudo que você usa que é legal você tratar com respeito e falar os nomes certos, para ter essa identificação. As pessoas locais que estiverem vendo vão saber que fizemos o dever de casa. O Almir tem um espírito que eu queria buscar muito para esse pantaneiro, essa expressão calma, serena, sábia, com a visão longe, de quem enxerga muito as coisas. Ele só de olhar sabe quais são todas as árvores, por que estão secas, por que um animal está ali, fazendo o que está fazendo. Eu estava buscando isso.

 

Como foi sua rotina de gravação no Pantanal?

O início das gravações com o Irandhir (Santos) foi muito bom. O Irandhir é um cara que admiro muito, ele sempre foi uma inspiração para mim. Eu fui para o Rio de Janeiro numa época em que ele estava aparecendo com filmes, numa primeira leva de filmes que chamou não só a minha atenção, como do público como um todo. E isso facilitou minha vida ao Rio. Pernambucano, né? Tem aí Irandhir, Hermila Guedes, a cena do cinema pernambucano estava muito forte. E Irandhir era um dos personagens principais desse momento. Eu sempre tive vontade de contracenar com ele porque fizemos 'Velho Chico' e 'Dois Irmãos', mas não contracenamos. Eu brinco que a gente se deu bem nessa escalação, porque o avô é pernambucano, que é o Irandhir, o pai é pernambucano, que sou eu, e o filho também, que é o Jesuíta (Barbosa), outro ator que também admiro muito. Começar aqui no Pantanal com o Irandhir foi muito especial, você consegue beber muito de uma fonte muito rica num espaço muito curto de tempo. Ele te inspira e te leva de uma forma muito mágica. Eu já tinha começado a gravar, então trouxe o que pesquisei, somei ao que o Pantanal me trouxe, e me deixei levar pela energia que o Irandhir irradia também.

 

Como foi gravar no Pantanal? Alguma dificuldade encontrada? Ficar tanto tempo no que chamamos de Brasil profundo é uma experiência e tanto, não acha? Já havia vivido algo parecido?

Eu vivi um outro Pantanal, peguei 12 graus lá. No dia mais quentinho desse período estava 18, 19 graus. Inclusive, toda hora meus amigos de lá e o Almir (Sater) me diziam que eu ia encontrar outro Pantanal. Eu vi uma onça pela primeira vez e ela estava tomando banho no rio em que eu estava. É o momento que elas vão sair mesmo. No calor elas vão procurar uma água para se banhar, então imagino que seja mais fácil de ver. Assim como deve ser com outros bichos. Eu realmente vi dois pantanais diferentes em um curto espaço de tempo. Em algum momento alguém comentou, olha que papagaio folgado, fica derrubando nossas mangas. Aí eu falei: é sério? Tu constrói o negócio no meio da floresta das meninas, ela está aqui pegando uma manguinha pro filho, e tu está reclamando? Folgado é tu (risos).

 

E a rotina de gravação, como foi?

Para mim não foi tranquila porque eu gravava todos os dias, gravei bastante coisa mesmo. O meu corpo cansava, mas acordava zerado, novo, porque foi muito bom de fazer. Sabe quando você malha pela manhã e está mais disposto para o dia? Eu me sentia assim. Um dia era sempre melhor que o outro. Nos momentos de folga eu só descansei. Lá a gente tem o privilégio de fazer diversas locações. Levamos boi de uma fazenda para outra. Então estávamos realmente vivendo as coisas. Domingo eu tirava para de fato me reconectar com o que eu queria. No dia a dia eu vivia o personagem, e no domingo eu voltava para entender o que eu queria para a semana, dentro do quarto, quieto. 

 

Você tinha cerca de quatro anos quando 'Pantanal' foi exibida pela primeira vez. Tem lembranças dessa época? 'Pantanal' marcou sua vida de alguma forma? Talvez com alguém da sua família que era fã, ou algo assim?

Sim, não da primeira, mas de quando reprisou. Essa reprise eu lembro bastante. A primeira eu lembro de ouvir a música, lembro dos comentários das pessoas. Tenho bastante lembrança desde quando tinha dois anos, então quando exibiu a reprise eu lembro bastante. Sobre Zé Leôncio, o nome eu lembrava, mas não lembrava do personagem em si. Na época, eu lembro de ficar muito marcado com o Velho do Rio, com Juma, Jove e o Tadeu. Foram os personagens que mais me marcaram. Mas o Zé Leôncio lembro principalmente do Paulo Gorgulho, eu não entendia bem essa coisa de primeira e segunda fase.

 

Como foi receber o convite para dar vida a Zé Leôncio?

Fiquei muito empolgado e passei um tempo na apreensão de dar certo. Tinha uma questão de agenda de trabalho, junto com mudanças de datas devido à pandemia. Mas foi um presente realmente porque eu gosto muito do personagem herói quando ele tem traços anti-herói. Quando ele consegue não ser mocinho, nem vilão, mas transcender isso tudo. Esse é o tipo do personagem que me motiva, me empolga, que me dá prazer mesmo.

 

Como foi a construção do personagem? Poderia contar sobre a preparação e os workshops que fez?

Minha base foi principalmente o texto. Gosto muito da criação do Benedito (Ruy Barbosa) e das palavras do texto do Bruno (Luperi). Eu costumo fazer o contrário, viver o dia a dia do personagem. Para fazer o Marcelo D2 eu fui trabalhar no camelô, criei uma banda, tudo por minha conta. Para fazer um médico em ‘Os Dias Eram Assim’ eu fui entender o trabalho dos Médicos Sem Fronteira... Mas nesse eu quis ficar mais no que o texto de fato tinha como tempo, como forma de falar. Eu achava que seria mais interessante se eu levasse ele para o texto da fábula, da criação, do que trazer para a realidade, que seria mais um empréstimo meu. Fui deixando o texto me levar, me conquistar. Assim como as parcerias em cena. Uma das coisas mais importantes nesse trabalho foi ter começado a gravar com o Orã Figueiredo, minha primeira semana inteira foi com ele. E ele me passou muita segurança, foi muito parceiro, fizemos uma dupla boa, a gente se encaixava. E ele me deixou muito à vontade para eu ir testando e tentando e trazendo o Zé Leôncio que eu acreditava, mas que fui construindo com cada experiência dele. Assim como o que eu quis trazer foram referências do texto, muita leitura, julgar o que era aquela história e quem era o Zé Leôncio, mas fechar, construir, deixei para a cena, e o Orã foi importante nesse sentido. Fui construindo como uma massinha. Tivemos o trabalho com a preparadora Andrea Cavalcante, até hoje ela está em cena, tem ajudado muito desde o começo. Todas as nuances, as escolhas, ela me questiona sempre. A gente teve um workshop sobre filosofia, amor, o Pantanal enquanto relação interpessoal, que foi fundamental para entender e construir o psiquê desses personagens. Eu já sabia montar. A Globo sempre tem esse cuidado da gente fazer aulas antes, mas eu já tinha essa familiaridade, ando a cavalo desde moleque. Eu já sabia laçar, e quando começou nossa preparação, peguei um dia só para relembrar. 

 

Quem é esse Zé Leôncio jovem? Como você acha que ele se difere do Zé Leôncio da segunda fase?

É um cara muito reto, muito honesto, mas que tem uma justiça muito peculiar. Tem um senso de justiça dentro das coisas que ele acredita. É um homem real, com falhas, mas ele tem uma honestidade e retidão que é muito admirável. Você tem outras coisas da fantasia, da fábula, do herói, mas o que mais me atrai no Zé Leôncio são os defeitos dele, de não fugir deles, de encará-los. Entender como traços que dizem quem é esse cara.

Foto: João Miguel Júnior

 


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