domingo, 25 de julho de 2021

.: Entrevista: Hugo Gonçalves fala sobre o livro "Mãe" e como sobreviver ao luto


Por 
Helder Moraes Miranda, editor do Resenhando.

Escritor e jornalista português, Hugo Gonçalves lança, no Brasil, pela Companhia das Letras, o livro "Mãe". A obra autobiográfica faz uma investigação íntima e sensível sobre os efeitos da perda da mãe na formação da identidade e do caráter de um homem. Aos 40 anos, mais de 30 após esta morte, ele analisa os impactos da perda na própria vida, a partir de uma viagem - geográfica e reflexiva - em um relato honesto. 

Durante mais de um ano, o escritor procurou pessoas e lugares que o permitiram resgatar memórias, completar lacunas e lançar luz onde havia desconhecimento em um assunto que se relaciona ao afeto, às origens, à família e às dores de crescimento. Para manter a fidelidade da conversa e até a sonoridade do idioma, algumas palavras foram mantidas com o português de Portugal. Uma conversa, e um livro, necessários aos tempos de hoje.


Como surgiu a ideia de escrever um livro sobre o impacto da perda de sua mãe?
Hugo Gonçalves -  Sem que me desse conta, o livro foi-se construindo ao longo de muitos anos, aliás, se a minha mãe não tivesse morrido, não estou seguro de que seria escritor - a escrita foi, desde muito cedo, sendo uma forma de lidar com os sentimentos de perda e de singularidade (o único rapaz da turma que não tinha mãe). A ausência da mãe aparecia nos primeiros poemas da adolescência, nas crónicas que escrevi em adulto para os jornais e, de uma forma ou outra, nos meus livros anteriores a este. Durante muitos anos, não estava preparado para tamanho desafio, para enfrentar, em vez de fugir. Para ir fundo, em vez de aflorar brevemente. Foi preciso uma separação, após uma relação amorosa longa, e o regresso a Portugal, depois de dez anos a viver fora - incluindo quatro anos no Brasil - para perceber que tinha chegado a esse ponto da vida em que deixamos de fantasiar exclusivamente com o futuro e passamos a olhar para o passado, de forma a entender quem somos e como aqui chegámos. Ter crescido sem mãe era uma parte fundamental da minha existência, e estava na hora de aceitar isso, de investigar esse impacto em mim e na minha família. Estava cansado de fugir. Tinha as ferramentas de escritor à minha disposição. Queria saber o que evitara durante tanto tempo. Decidi ficar e escrever.

 

De que maneira a morte de uma mãe pode impactar na vida de um filho homem? 
Hugo Gonçalves - Só posso falar do meu caso. Na minha investigação descobri algo que não me recordava. Várias pessoas contaram que eu era o menino da mamã. Como o meu irmão mais velho já estava na escola, entre os dois e os seis anos, eu passava os dias sozinho com a minha mãe, o vínculo devia ser enorme, embora eu me recorde de muito pouco. Esse amor existiu, existe ainda algures no magma do meu inconsciente - o amor incondicional e egoísta das crianças pequenas pelas suas mães. E o amor dela - chamava-se Rosa Maria - por mim. Como não convivi com a minha mãe na adolescência ou na idade adulta, não discutimos, não nos zangámos, não a vi como uma humana falível, logo, idealizei a imagem feminina, e isso afetou as minhas relações amorosas com as mulheres. Julgava que o amor era uma fantasia romântica perfeita, em vez de um trabalho a dois, com altos e baixos e compromissos, uma construção, em vez de um delírio juvenil. Além disso, demorei muitos anos a aceitar que terminava as relações com medo de que me abandonassem, achava essa ideia um insuportável clichê da psicoterapia. Dizia: a minha mãe não me abandonou, morreu de câncer. Racionalmente, o adulto que eu era tinha razão, mas emocionalmente, o menino de oito anos que não se despediu da mãe, que a viu ir para Londres, para um hospital, sendo que depois ela desapareceu para sempre, esse menino julgou-se abandonado. No fundo, escrever este livro ajudou-me a perceber que sou igual a todos os outros que sofreram uma grande perda, foi uma lição de humildade que ajudou a que me libertasse do jugo egocêntrico da dor.     


Escrever sobre o assunto foi uma maneira de passar a vida a limpo superá-lo? 
Hugo Gonçalves - A vida é demasiado turbulenta e tem demasiadas pontas soltas para ser passada a limpo como uma lição de escola num caderninho com linhas direitas. No livro, falo do filho da escritora Susan Sontag, que perdeu a mãe por causa de um câncer (ela teve três). Ele diz que no luto não existe essa coisa que os americanos chamam "closure" - tudo resolvido, fechado, sem arestas que machucam. Essa coisa de "missão cumprida, partimos para a seguinte?". Não. A vida não é assim. Não escrevi o livro como terapia ou catarse. Sou um escritor que, tal como já pegou em outros temas e se debruçou sobre eles, resolveu escrever sobre algo que conhecia (ou queria conhecer melhor). Não queria que o livro fosse um lamento ou uma homenagem à minha mãe, mas um estudo profundo e sério - sem sentimentalismos fáceis - do luto, não apenas numa criança, mas ao longo da vida, numa família inteira. Quando parto para o livro já tinha feito todas as viagens - internas e externas - sobre as quais escrevo. O livro não é um momento mágico, que me mudou, é antes uma reflexão racional, emocional, até ensaística, que resulta de uma investigação pessoal, mas também de muitas leituras sobre o luto, de Tolstoi a C.S Lewis, de Roland Barthes a Christopher Hitchens, de poetas a romancistas. Mas estaria a mentir se não confessasse que, sim, algumas coisas descobri durante o processo de escrita em si mesmo. Uma delas aconteceu ao olhar para as fotos de infância. Fazia-o muitas vezes, durante a escrita, para entrar nesse tempo e espaço e poder retratá-lo. Um dia, reparei que, numa foto que já vira dezenas de vezes, eu estava de mão dada com a minha mãe. Não lembro a voz ou o cheiro da minha mãe. Tal como não lembro o toque. Mas ali estava, mão com mão, a prova que ela me tocava com ternura e sentido de proteção. Esse instante foi como uma máquina do tempo, onde se encontraram o menino que conhecia o carinho da mãe e o homem adulto que se esquecera desse carinho.


Como foi para você revisitar as memórias para escrevê-las? 
Hugo Gonçalves -  Muitas pessoas perguntaram-me se o processo tinha sido doloroso, a verdade é que na maioria das vezes foi um prazer. Sempre preferi a curiosidade à ignorância, o desafio à segurança. O não dito pode tornar-se o maldito. Como tal, mesmo as coisas mais dolorosas - como ouvir, da minha avó, como foi o dia em que a minha mãe soube que estava doente ou recordar-me de como me escondia debaixo da cama da minha mãe para estar mais perto dela - acrescentam, não tiram. Iluminam, não torturam. Este livro não é um queixume do coitadinho, está cheio de vida, de sol, das férias de verão que passámos em família. O livro descreve diversas viagens que fiz para lugares do nosso passado, casas, vilas, pessoas etc. O simples ato de viajar, de ir em busca, tem algo de lúdico e de descoberta. Mas também havia um desafio: eu tinha de recordar na exata proporção que tinha esquecido, queria colmatar tudo o que não soubera durante anos e anos. Era como um desígnio Não me reprimi, não recusei saber nada, mesmo se doía. Queria saber tudo. No final, compensa sempre, as memórias da vida sobrepõem-se às lembranças da morte.  

 
Revisitar as memórias e escrever sobre elas passa por uma seleção - prática, estética - e até de recortes da própria vida. Existiu um critério para selecionar os momentos que estão no livro?
Hugo Gonçalves - Todos nós já temos um narrador de origem, porque a todo o momento estamos editando e ajustando a narrativa das nossas vidas, é algo tão natural como respirar. Tinha o trabalho facilitado por essa pulsão natural dos humanos de fazerem sentido da sua existência. Depois, claro, há o trabalho literário, o livro tem uma estrutura que foi montada pela minha cabeça de escritor, é fruto do meu ofício, das tais escolhas estéticas e narrativas. Tal como tem um estilo assertivo que, mesmo quando é mais poético, foge do barroco e dos lirismos exagerados. Não me sentei e saiu tudo de rajada, claro. O escritor também é um operário, um artesão. Mas esse é o lado que o leitor não tem de perceber, seria como um mágico revelar os seus truques. O critério foi: quero contar esta história de forma pertinente e lúcida, com depuração e beleza na linguagem, com um equilíbrio entre a profundidade e a leveza. 
 

O que há de mais traumático e de mais libertador ao voltar ao passado pela literatura? 
Hugo Gonçalves - A literatura é uma forma de desmascararmos a realidade, de irmos ver o que se esconde atrás do pano e além da espuma dos dias. Assim, descobrimos que não estamos sozinhos nesta incumbência difícil, mas extraordinária, de estarmos vivos. A literatura permite empatia e chegar ao outro. Com este livro - mas essencialmente com todos os filósofos, prosadores, poetas, cientistas que li e a que recorro e cito no livro - revela-se o processo de equilíbrio que é necessário ao luto. Por um lado, é preciso aceitar a perda e a dor, não fugir, permitir que a tristeza exista em nós, mesmo que isso pareça dissonante num mundo em que a felicidade é uma espécie de tirania, basta ver as redes sociais, toda a gente está exultante de felicidade (tantas vezes falsa). Só que a tristeza faz parte da paleta de emoções humanas, existe por um motivo, não deve ser evitada a todo o custo. Por outro lado, não podemos ficar afundados na dor, é preciso andar em frente, não ficar refém da autocomiseração. A dor pode ser muito egoísta, como diz a canção da Marisa Monte: "Se ela me deixou a dor, é minha só não é de mais ninguém. Aos outros eu devolvo a dó, eu tenho a minha dor". A literatura permite perceber que a dor, afinal, não é só nossa, que há dores maiores e menores, isso serve de lição, afasta-nos do nosso umbigo, leva-nos a seguir adiante.    


Reescrever uma etapa da vida em que se viveu é algo semelhante a brincar de Deus?
Hugo Gonçalves - Não reescrevi uma etapa da minha vida, isso seria uma espécie de revisionismo histórico pessoal. Quis apenas resgatar memórias, completar lacunas, lançar luz onde havia desconhecimento. Tal como queria fazer um estudo da perda e do luto - que começa no momento em que a minha mãe fica doente, mas que deflagra ondas de choque que se espalham ao longo dos anos por várias pessoas. É importante dizer que o livro não é apenas sobre mim, sobre a minha dor, mas sim um texto que mergulha no tema universal da perda, recorrendo muitas vezes a outros autores que também o fizeram. No aspecto pessoal, posso dizer que descobri coisas sobre a minha mãe, os meus avós, o meu pai e irmão, coisas que possibilitam um maior entendimento do outro, das suas ações e dores pessoais. Neste processo, entendi que quem quer escrever sobre a morte, acaba sempre a escrever sobre a vida. Fui capaz de ver a minha mãe como mulher, como jovem, alguém que namorou e dançou e mergulhou no mar, não apenas como a minha mãe que morreu. Ela teve uma vida, não existiu apenas na doença e na morte.   

 
Há algo que você modificou para deixar mais literário, mais bonito ou mais palatável ao leitor? 
Hugo Gonçalves - O livro começa com um aviso: "Este é um relato verdadeiro ainda que, na tentativa de fazer sentido, a nossa memória seja tantas vezes imaginação". Tentei ser o mais fiel às minhas memórias, e às memórias das pessoas com quem falei, mas a memória, em si, já está pejada de preconceitos, embelezamentos, ângulos mortos, exageros. Várias vezes - e isso está no livro - percebi que havia versões distintas do mesmo acontecimento. Eu estava certo que a minha mãe tinha saído de casa, para um hospital em Londres, numa manhã, antes de eu ir para a escola. A minha avó garantiu que foi no final da tarde. Mas qual a verdade? A verdade é aquela que faz sentido para nós. Parti para este livro com o propósito de ser fiel à verdade, não queria manipular sentimentos, enganar o leitor, isso era algo inegociável. Mas a verdade tem vários corações a bater dentro de si, vários pares de olhos, vários relicários de memórias.  


Se pudesse reescrever a própria história a partir de seu livro, o que mudaria nela? 
Hugo Gonçalves - Não mudaria nada porque só cheguei neste momento - e fui capaz de escrever esse livro - com todos os enganos, tropeções e fracassos que vivi. Não havia atalhos, alternativas possíveis. Há coisas que temos de viver, há coisas que temos de deixar  que passem por nós, ou nos passem por cima. Um dia perguntaram a um comediante que admiro, Dave Chappelle, o que diria ele ao jovem Dave Chappelle, caso a sua versão aos 40 anos pudesse falar com a versão dos 20 anos. E ele respondeu: "tudo o que pudesse dizer ao jovem Dave, ele não daria ouvidos". Partilho dessa visão.      

 
Como passar por um luto e sobreviver a ele pode moldar o caráter de alguém?
Hugo Gonçalves - Viver é pagar um preço. Desde que nascemos estamos sempre a perder coisas - e a ganhar também, claro. Não sou nada miserabilista, pelo contrário, acho que estar vivo é fascinante, estou muito grato pela vida que tenho, sou um felizardo. Mas sei que o caráter é moldado pelas adversidades, sem dúvida. Quem tem tudo servido de bandeja, sem esforço ou luta, bem, é uma receita para ser um imbecil. Claro que a morte de uma mãe - ou, pior ainda, de um filho - é uma perda que pode deitar tudo abaixo. Conto no livro sobre o dia em que perguntei ao meu irmão se, também ele, como eu, se sentia mais destemido e indiferente a certas dores uma vez que tivera a maior perda de todas logo no início da vida (a morte da mãe). E ele respondeu: "Sim, durante muito tempo foi assim, mas depois fui pai e voltei a temer outra grande perda". 


O que hoje permanece vivo de sua mãe em você?
Hugo Gonçalves - Durante muitos anos não tinha uma fotografia dela. Hoje tenho várias, uma dessas fotos está junto do computador onde escrevo estas respostas. Mais além dos elementos materiais da memória, os artefactos da sua existência, há a ideia de um amor interrompido que eu consegui curar - com ajuda de psicoterapia, da minha mulher e agora do meu filho acabado de nascer. O amor pode ser curado, essa é a grande herança da minha mãe. Tive de esperar muitos anos para o entender, tive de ir atrás, mas resgatei esse amor perdido, e posso agora unir o fio desse amor, onde foi cortado, ao amor que sinto pelo meu filho. 





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