Ubu lança nova edição de romance emblemático de Marilene Felinto, "As Mulheres de Tijucopapo", em momento de visibilidade das lutas antirracista e feminista. Livro aponta para a excelência literária desse romance premiado, com prefácio inédito da escritora Beatriz Bracher, posfácio da pesquisadora Leila Lehnen e fortuna crítica com ensaios e resenhas de Ana Cristina Cesar, João Camillo Penna, José Miguel Wisnik, Marilena Chaui e Viviana Bosi. Mas é a nova geração, engajada nas lutas feminista e antirracista, que se apropriará do romance. Um livro para ser lido hoje.
A potência da linguagem da escritora e tradutora Marilene Felinto se mostra mais atual do que nunca. Romance emblemático da autora, "As Mulheres de Tijucopapo" ganha nova edição, com prefácio inédito da escritora Beatriz Bracher, posfácio da pesquisadora Leila Lehnen e fortuna crítica com ensaios e resenhas de Ana Cristina Cesar, João Camillo Penna, José Miguel Wisnik, Marilena Chaui e Viviana Bosi.
Escrito em 1982, quando a autora tinha 22 anos, o livro narra a viagem de retorno da narradora Rísia a Tijucopapo, localidade fictícia onde sua mãe nasceu, que evoca a história real de Tejucupapo, no Pernambuco. No século XVII, a cidade foi palco de uma batalha entre mulheres da região e holandeses interessados em saquear o estado. Nas entrelinhas de "As Mulheres de Tijucopapo", conta-se a história das mulheres guerreiras de Tejucupapo.
O livro se constrói como um fluxo de consciência literário cujo teor histórico, feminista e antirracista se evidencia no trajeto que a narradora faz de volta a essa terra mítica, iluminando as contradições inerentes à sociedade e à cultura multirracial brasileira. Nas palavras da poeta Ana Cristina Cesar, a narrativa autobiográfica é "traçada em ziguezague, construída toda em desníveis, numa dicção muito oral, atravessada de balbucios, repetições, interrupções, associações súbitas".
Em trajeto reflexivo, a personagem vai em busca das origens, para assimilar as experiências da infância e a dor da diferença vivida na capital paulista. Quanto mais ela se aproxima de Tijucopapo, mais perto chega de se tornar, ela própria, uma mulher de Tijucopapo. A força das guerreiras pernambucanas é a imagem invertida da fraqueza de Rísia, menina pobre de muitos irmãos, que se refugia na gagueira por impossibilidade de exprimir seu ódio.
A obra rompe com definições normativas, ocupando um espaço novo entre a narrativa ficcional, o depoimento pessoal e o discurso poético. De acordo com Caio Fernando Abreu, "com voz inconfundível, sensibilidade, talento e precisão, a autora demarca um território novo na literatura brasileira".
Sobre a autora
Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, foi criada em São Paulo e é formada em Letras pela USP. Seu primeiro romance, "As Mulheres de Tijucopapo", lhe rendeu o Prêmio Jabuti de Autor Revelação (1983) e o prêmio de Melhor Romance Inédito da União Brasileira de Escritores (1982) e foi traduzido para o inglês, o francês, o holandês e o catalão. Felinto tem outros romances publicados, coletâneas de contos e ensaios diversos, entre eles "Autobiografia de Uma Escrita de Ficção", ou "Porque as Crianças Brincam e os Escritores Escrevem" (ed. de autora, 2019); "Fama e Infâmia: Uma Crítica ao Jornalismo Brasileiro" (ed. de autora, 2019); "Contos Reunidos" (ed. de autora, 2019); "Sinfonia de Contos de Infância" (ed. de autora, 2019); "Obsceno Abandono" (Record, 2002); "Jornalisticamente Incorreto" (Record, 2000); "O Lago Encantado de Grongonzo" (Imago, 1992); "Outros Heróis e Este Graciliano" (Brasiliense, 1983).
É também tradutora do inglês (Edgar Allan Poe, Virginia Woolf, Ralph Ellison, Tom Wolfe, Richard Burton, entre outros). Foi escritora convidada da Universidade da Califórnia, Berkeley (Estados Unidos, 1992), da Haus der Kulturen der Welt (Alemanha, 1994), do Ministério da Cultura da França (1998), da Universidade de Utrecht (Holanda, 2012) e da Universidade de Coimbra (Portugal). Atuou em órgãos de imprensa, como a Folha de S.Paulo e a revista Caros Amigos. Foi autora convidada da Feira Literária Internacional de Paraty 2019 e do Festival de Literatura Latino-Americana 2019, em Houston e San Antonio, nos Estados Unidos.
Trechos do livro
"Só sei que minha mãe nasceu em Tijucopapo. Lugar de lama escura. O resto, mistério, nem ela sabe. Só eu que sei."
"Me disseram que eu vivo é em guerra. Em pé de guerra. E vivo mesmo, e acrescento que vivo em batalha, em bombardeio, em choque. E só vou conseguir sossegar quando matar um."
"Minha mãe foi dada numa noite de luar. Minha vó não podia. Era o seu décimo e tanto filho. Não podia matar mais um daquela fome que era toda de farinha e charque e falta d'água."
"Parar de brincar é parar de viver. Eu parei de brincar muitas vezes por causa de mamãe. Mamãe foi quem me deu a vida e a morte. Mamãe me cansava de indiferença, mamãe era uma merda."
"E o meu sentimento-choro era de que: para onde iam aqueles barcos que eu não podia ir? A palavra 'coisa' é a própria indefinição de tudo."
"O entardecer é o desembocar de todas as ausências. É o vento soprando saudade e dores. Não sei como ainda não morri. Mas estou morro não morro. E acho que é mesmo no entardecer que desemboco a morrer, cada tarde um bocado."
"Quando você morreu eu vou fazer uma elegia. Não me levanto em crer. Quando você morreu eu vou buscar, em todas as fotos de antes, os meus sorrisos. Não terei mais risos? Quando você morreu eu choro minhas lágrimas de sal. E o mar estronda lá mas eu queria que fosse aqui dentro de mim. E que eu engolisse ondas d'água para esse vazio, oco, seco. Quando você morreu eu desembesto campina afora como égua acuada. E, ironia, eu corro de novo a liberdade das minhas pernas de égua. Não quero mais o mundo e ninguém."
"Hoje estou tomada por um asco ao mundo. Há uma ânsia de vômito inerente a mim; é ela manifestar-se como hoje e todos os cheiros me fazem pior. Não posso com cheiro de nada."
"No meu caminho há babaçus e mocambos. Não sei direito por que vou aqui afora, talvez por minha crueldade. Quero ver flores."
"Saí de São Paulo porque lá, se eu quisesse eu não podia. Porque lá não chovia, não tinha areia, não tinha pitomba. Lá, se eu quisesse não podia. No centro da cidade de São Paulo havia concreto armado contra mim."
"Quando eu acordei havia mulheres em volta da cama onde me tinham deitado. Eu estava seminua e molhada. Havia dez mulheres minhas mães. Dez rostos de mulheres minhas mães. Tinha dez mães. Nenhuma servia. Eu estava tão fraca e desprotegida que nem dez mães serviriam. Nem dez abraços. Eu estava no lugar solitário que é o lugar de uma queda, o arraso quase que total. Nenhuma mãe serviria mais."
"Meu sentimento muitas vezes é assim de chuva, molhado, pingado. Sentimento chorado, lágrimas espessas sobre a natureza que me parece tão cruel desse mundo que não se lava, que nem chuva lava. Pois, se chovesse lá fora, eu olhando da janela, como definir esse meu sentimento senão como vindo do alto cume de mim, o meu céu, para bater, gotas grossas, no fundo de mim, o meu poço? Eu me alago e entristeço. Eu quase me sufoco nesse sentimento pluvial. Ele me escorre dos cabelos molhados e se prega em minha roupa grudando-a no corpo, ele me abandona acocorada, encharcada e tremida na encruzilhada duma esquina sem abrigo."
O que falaram sobre o livro
"Obra de trauma e triunfo, criança recém-nascida [...] que esperneia e estraçalha o céu em um canto temerário. [Marilene tem] a força inaugural de quem é capaz de se impor como escritora e de ser a primeira a atiçar as energias que poderão desencantar literariamente a sua geração." – José Miguel Wisnik
"A história de Rísia é a história de uma mulher – ou mesmo de muitas mulheres – pobres, negras, nordestinas, retirantes. Mulheres que sofrem a violência interseccional e que revidam esta violência com a força de sua criatividade." – Leila Lehnen
"Literatura é de um material como que estrangeiro, que nos separa dessa proximidade do sentimento bruto, nos descola de nós e da língua das nossas pessoas. Não é preciso [...] ‘androgenizar-se’ (como queria Virginia Woolf) para fazer grande literatura. A trip de Marilene terá direção: literária." – Ana Cristina Cesar
"[A obra] possui o raro valor de unir força de sentimento e de linguagem. É um livro comovente [...], que alterna ritmos pesados e leves, em cadência de arrebentação: espraia e reflui, arreganha ou alarga." – Viviana Bosi
"Embora seja um primeiro livro, Marilene já nasce com identidade própria. Não é uma 'estreia promissora', mas um autor com face definida, guardando em seus traços certa rispidez como a de Graciliano Ramos, aliada à paixão de dizer até o fundo (e dizer de forma cristalina o aparentemente indizível) que caracterizava Clarice Lispector." – Caio Fernando Abreu
Ficha técnica
Livro: "As Mulheres de Tijucopapo"
Autora: Marilene Felinto
Prefácio: Beatriz Bracher
Posfácio: Leila Lehnen
Fortuna crítica: Ana Cristina Cesar, João Camillo Penna, José Miguel Wisnik, Marilena Chaui, Viviana Bosi
Formato: brochura
Páginas: 240
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