terça-feira, 22 de junho de 2021

.: Crítica: "Manhãs de Setembro" mostra que ninguém é mulher impunemente


Por 
Helder Moraes Miranda, editor do Resenhando.

Ao longo dos cinco episódios de "Manhãs de Setembro", nova série nacional da Amazon Prime Video que estreia dia 25 de junho, pairou o questionamento se Liniker de Barros - uma atriz que virou cantora, como ela própria se define - leu "Ninguém É Mulher Impunemente", a autobiografia de Vanusa Santos Flores lançada pela editora Madras em janeiro dos anos 2000.

O questionamento surge porque Cassandra, a mulher trans interpretada por Liniker é a própria Vanusa em diferentes camadas. A Cassandra da série, tal qual a artista que idolatra, é dramática como um tango regado a vinho, carrega suas próprias dores e exala por todos os poros o que é ser mulher. O seriado gira em torno dela, que acaba de conquistar a independência, mas se vê surpreendida pela chegada de um filho que gerou com outra mulher dez anos antes e de cuja existência não sabia.

Há em "Manhãs de Setembro" uma ruptura. As personagens trans são colocadas em contextos diferentes do que geralmente são apresentadas no setor audiovisual. A protagonista não está em uma situação de vulnerabilidade e começa alugando uma kit-net em um bairro popular de São Paulo. Ela trabalha como motogirl e tem um relacionamento sério e sólido com um homem casado.

Não espere de "Manhãs de Setembro" imagens estereotipadas, ou degradantes de violência, prostituição e exposição banal do corpo. As personagens trans são tratadas com respeito e, sobretudo, como seres humanos que erram, acertam e podem frequentar os mesmos ambientes que você. O mérito é todo dos autores Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro.

Cassandra, a protagonista, tem vínculos afetivos fortes, o que é raro de se ver em personagens transexuais. No seriado, há o casal de homossexuais interpretado com muita sensibilidade por Paulo Miklos e Gero Camilo, este, por sua vez, ao longo da pandemia, vem representando um elo de resistência do teatro sem parar de se apresentar, mesmo que virtualmente. 

Destacam-se, também, o ator Thomas Aquino, que empresta todo o carisma a Ivaldo, namorado de Cassandra, em um trabalho que transborda afetividade ao representar um homem dividido entre a razão e a emoção. Gersinho, interpretado com muita inteligência emocional por Gustavo Coelho, ator de 12 anos que demonstrou sensibilidade e maturidade rara para segurar um personagem que mistura densidade e poesia.

Toda a versatilidade de Karine Teles também é contemplada. Chega a ser uma surpresa vê-la em um tipo tão despojado e sacaninha - o que é uma delícia. Leide, divide com Cassandra a essência do seriado. É ela quem traz o humor que, em algumas vezes, falta em Cassandra. Habituada a personagens ricas e até esnobes, Karine Teles encarna em "Manhãs de Setembro"  uma personagem leve, ensolarada e repleta de boas tiradas. 

Em uma personagem que não tem um caráter reto, Karine consegue atrair a empatia do público e fazer com que ele entenda as razões que a levraram até ali: uma mulher que precisou se virar para criar o filho sem a ajuda de ninguém. O alívio cômico também se dá pela participação esfuziante de Isabela Ordoñez e suas excelentes tiradas - ela leva graça e leveza à trama. A direção é de Luís Pinheiro e Dainara Toffoli. Produção da Amazon Prime e da O2 Filmes.

No fim das contas, não importa se Liniker leu, ou não, "Ninguém É Mulher Impunemente". A sua Cassandra, tão doce e sensível e visceral, é a personificação da própria Vanusa. Ela é tão Vanusa quanto a original. Aliás, é possível acreditar que se houver outra dimensão e Vanusa estivesse assistindo a "Manhãs de Setembro" e pudesse escolher, penso que ela voltaria na pele de alguém tão especial como a Cassandra de Liniker.

Trailer de "Manhãs de Setembro"


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