Por Helder Moraes Miranda, editor do Resenhando.
Ao longo dos cinco episódios de "Manhãs de Setembro", nova série nacional da Amazon Prime Video que estreia dia 25 de junho, pairou o questionamento se Liniker de Barros - uma atriz que virou cantora, como ela própria se define - leu "Ninguém É Mulher Impunemente", a autobiografia de Vanusa Santos Flores lançada pela editora Madras em janeiro dos anos 2000.
O questionamento surge porque Cassandra, a mulher trans interpretada por Liniker é a própria Vanusa em diferentes camadas. A Cassandra da série, tal qual a artista que idolatra, é dramática como um tango regado a vinho, carrega suas próprias dores e exala por todos os poros o que é ser mulher. O seriado gira em torno dela, que acaba de conquistar a independência, mas se vê surpreendida pela chegada de um filho que gerou com outra mulher dez anos antes e de cuja existência não sabia.
Há em "Manhãs de Setembro" uma ruptura. As personagens trans são colocadas em contextos diferentes do que geralmente são apresentadas no setor audiovisual. A protagonista não está em uma situação de vulnerabilidade e começa alugando uma kit-net em um bairro popular de São Paulo. Ela trabalha como motogirl e tem um relacionamento sério e sólido com um homem casado.
Não espere de "Manhãs de Setembro" imagens estereotipadas, ou degradantes de violência, prostituição e exposição banal do corpo. As personagens trans são tratadas com respeito e, sobretudo, como seres humanos que erram, acertam e podem frequentar os mesmos ambientes que você. O mérito é todo dos autores Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro.
Cassandra, a protagonista, tem vínculos afetivos fortes, o que é raro de se ver em personagens transexuais. No seriado, há o casal de homossexuais interpretado com muita sensibilidade por Paulo Miklos e Gero Camilo, este, por sua vez, ao longo da pandemia, vem representando um elo de resistência do teatro sem parar de se apresentar, mesmo que virtualmente.
Destacam-se, também, o ator Thomas Aquino, que empresta todo o carisma a Ivaldo, namorado de Cassandra, em um trabalho que transborda afetividade ao representar um homem dividido entre a razão e a emoção. Gersinho, interpretado com muita inteligência emocional por Gustavo Coelho, ator de 12 anos que demonstrou sensibilidade e maturidade rara para segurar um personagem que mistura densidade e poesia.
Toda a versatilidade de Karine Teles também é contemplada. Chega a ser uma surpresa vê-la em um tipo tão despojado e sacaninha - o que é uma delícia. Leide, divide com Cassandra a essência do seriado. É ela quem traz o humor que, em algumas vezes, falta em Cassandra. Habituada a personagens ricas e até esnobes, Karine Teles encarna em "Manhãs de Setembro" uma personagem leve, ensolarada e repleta de boas tiradas.
Em uma personagem que não tem um caráter reto, Karine consegue atrair a empatia do público e fazer com que ele entenda as razões que a levraram até ali: uma mulher que precisou se virar para criar o filho sem a ajuda de ninguém. O alívio cômico também se dá pela participação esfuziante de Isabela Ordoñez e suas excelentes tiradas - ela leva graça e leveza à trama. A direção é de Luís Pinheiro e Dainara Toffoli. Produção da Amazon Prime e da O2 Filmes.
No fim das contas, não importa se Liniker leu, ou não, "Ninguém É Mulher Impunemente". A sua Cassandra, tão doce e sensível e visceral, é a personificação da própria Vanusa. Ela é tão Vanusa quanto a original. Aliás, é possível acreditar que se houver outra dimensão e Vanusa estivesse assistindo a "Manhãs de Setembro" e pudesse escolher, penso que ela voltaria na pele de alguém tão especial como a Cassandra de Liniker.
Trailer de "Manhãs de Setembro"
0 comments:
Postar um comentário
Deixe-nos uma mensagem.