quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

.: "Daqui Não Saio": o povoado italiano que fez de Hitler um herói

Sucesso de crítica e de vendas na Itália, com mais de 100 mil exemplares vendidos, "Daqui Não Saio" é um dos maiores fenômenos literários da Europa dos últimos anos. 

Uma premiada narrativa confessional sobre a relação nem sempre amistosa entre nazismo e fascismo, a obra de Marco Balzano chega pela Editora Bertrand Brasil com tradução de Ivone Benedetti

Quem admira a bela imagem composta por um lago azul-esverdeado e uma torre de igreja medieval que emerge das águas, na região do antigo povoado de Curon (uma localidade do Alto Adigio, na Itália), não imagina que, por trás (ou melhor, abaixo) da deslumbrante paisagem, há um fragmento histórico precioso. 

Apenas o inusitado da torre cercada de água por todos os lados e a beleza do quadro já seriam suficientes para fazer do local um ponto turístico, mas Marco Balzano reconstitui em Daqui não saio o que se sucedeu na região na fronteira entre Itália e Áustria no período do início da II Guerra.

Mussolini, de um lado, e Hitler, do outro, dividem a preferência dos habitantes. Trina, uma professora de alemão, língua oficial da região, é proibida de lecionar e toda a população se vê obrigada a aprender italiano para a revolta dos locais. A insatisfação se intensificaria mais tarde com a decisão da criação de um lago artificial que inundaria suas vilas e casas. A personagem da professora, segundo o autor, em entrevistas, teria existido e resistido à inundação da aldeia, subindo ao telhado de sua casa e gritando que ali ficaria ("resto qui", daí o título no original em italiano).

Trina era casada com Erich, um dos manifestantes que liderava o “movimento dos descontentes” com o avanço fascista e as mudanças impostas na região, com quem teve um filho e uma filha. Um passeio histórico pelo nazifascismo, a narrativa premiada de Balzano avança pela trajetória de Trina na forma de uma carta escrita à filha, que desapareceu aos dez anos, levada por tios para Berlim. Com a ascensão do nazismo, perdem o outro filho para o exército de Hitler, que se voluntaria ao regime para o desgosto dos pais, ferrenhos antinazistas.

O texto delicado de Marco Balzano analisa com lupa as nuances do período histórico. Neste microcosmo, uma parte comunidade italiana passou a tratar Hitler como um herói (não é o caso dos protagonistas da história, é claro) pela promessa de “livramento” das garras de Benito Mussolini, que empobrecia a população e a fazia sofrer sob seu regime fascista. Quando os nazistas tomaram a Itália, as obras da represa pararam, puderam voltar a falar sua língua e a população passou a ter trabalho – por mais que não soubessem que construíam, na verdade, estradas para campos de concentração nazistas.

Tudo isso é pedaço de vida real entranhado na vida da fictícia Trina, que encontra na palavra, na resistência do idioma que ensinava, uma forma de não se submeter à tirania.  Daqui não saio é uma história social atualíssima, que cativa desde a primeira página. Marco Balzano tem a habilidade dos grandes narradores: harmoniza a escrita à respiração das personagens. Com uma voz íntima que devolve vida à história, ele retrata a força de uma comunidade no momento em que, agarrando-se a raiva, opta por resistir.

Sobre o autor
Marco Balzano nasceu em Milão em 1978, onde mora e trabalha como professor. Com mais de 100 mil exemplares vendidos somente na Itália e direitos de tradução adquiridos em diversos países, Daqui não saio, seu sexto romance, foi finalista do Prêmio Strega e ganhador dos prêmios Bagutta, Mario Rigoni Stern, Asti d’Appello, Minerva, Elba, Dolomiti Unesco, Viadana, Latisana, Omegna e Méditerranée.

"Daqui Não Saio" ("Resto Qui")
Marco Balzano
Tradução de Ivone Benedetti
210 páginas | R$ 39,90
Ed. Bertrand Brasil | Grupo Editorial Record

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