Por Oscar D’Ambrosio, jornalista e crítico de arte.
O prazer de criar comandou a poética do artista pernambucano Francisco Brennand, falecido no último dia 19, aos 92 anos, em Recife, no Pernambuco. Se algo o mobilizava, era justamente uma força demiúrgica que se faz presente em todo seu trabalho, tanto na pintura como na escultura. Esses dois universos, muitas vezes dissociados, parecem brotar e um mesmo manancial: a capacidade de se sentir vivo e de compartilhar esse sentimento de estar no mundo.
Talvez por esse motivo a melhor forma de visitar o Museu Oficina Cerâmica Brennand seja iniciar a jornada pelo prédio batizado como Accademia, onde estão desenhos e pinturas que não só apresentam uma trajetória consistente, como também revelam como o ceramista estava contido no pintor.
A sensualidade presente nos desenhos ganha expressão tridimensional nas esculturas, mas possui uma mesma força vital. Brennand foi um artista da vida, da infinita capacidade humana de criar. Suas incontáveis mulheres, seja no plano ou no espaço, evidenciam um poder ilimitado de sedução e de conquista.
Elas funcionam como as sereias em forma de aves de rapina que tentam Ulisses na Odisseia. Têm o poder de encantar e de matar, porque são grandiosas em todos os sentidos. O problema está que a maioria dos observadores se coloca perante o universo de Brennand de duas formas que pouco contribuem para a apreensão dos seus trabalhos: a inferioridade adoradora submissa ou a superioridade crítica arrogante.
As duas opções são perversas para colocar numa dimensão adequada o talento de Brennand. Perante a magnitude do que vê, a maior dificuldade do observador está em dialogar com elas de igual para igual – e quem consegue isso dá um passo gigantesco para penetrar com mente e olhos livres no espaço criado pelo artista na Várzea pernambucana.
Quando se observa esse universo em uma posição de inferioridade, corre-se o risco de ler o trabalho plástico ali presente apenas com adoração, como se fosse um templo. As esculturas ganham então uma dimensão mítica e o demiurgo Brennand passa a ser venerado como se fosse um Deus.
Esquece-se que é um artista plástico e, acima de tudo, um ser humano. Por isso, ver os desenhos e pinturas antes das esculturas é essencial. Torna-se evidente que se está perante um criador de grande capacidade, mas não de um deus, já que seus temas e técnicas evidenciam justamente sua humanidade, com as cenas de engenho e retratos familiares.
De fato, o desenho é uma forma de arte na qual não se mente. E o autêntico Brennand está ali, seja nos autorretratos, nas imagens da família e na maneira como vê o mundo ao seu redor, inclusive com imagens de qualidade ímpar como as que tratam do tema das relações visuais e simbólicas entre os célebres personagens da Morte e da Donzela.
Outra possibilidade do visitante é adotar uma posição de superioridade crítica, sob a desculpa de um olhar técnico sobre a produção exposta, tanto no Templo Central, em que o Ovo Primordial é o centro das atenções, no Salão de Esculturas, em que o olho se perde perante a quantidade de esculturas, na Praça Burle Marx, em que gramados, cisnes selvagens e peças bi e tridimensionais constituem uma admirável cenografia, o Templo do Sacrifício, com sua solenidade grávida de referências, e a mencionada Accademia, berço de uma criatividade e talento diferenciados.
Ao se conhecer o universo de Brennand com esse olhar, perde-se também a perspectiva humana. O olhar frio e voltado apenas para questões de forma, proporções e recursos plásticos em si mesmos deixa de lado o fato de que um homem criou aquilo tudo que se vê. Desconsiderar esse aspecto significa ignorar a capacidade mítica de que cada um de nós pode ser o demiurgo de uma própria realidade interior e virtual, de sua própria Second Life.
Se o olhar inferior coloca Brennand num pedestal inatingível, vertente agravada ainda pelo fato de ele, com sua volumosa barba branca e chapéu de abas largas, parecer de fato um ser divino, o olhar superior tende a apagar a figura biográfica e humana do artista, resultado, como diria o filósofo espanhol Ortega y Gasset de suas “circunstâncias” temporais, vivenciais e influências absorvidas, assimiladas ou negadas.
O infinito poder de criar de Francisco Brennand só pode ser captado com os olhos de quem está pronto a estudar o artista e a sua obra de frente: sem ver no homem nascido em 11 de junho de 1927, no Engenho São João, um Deus, mas também sem se esquecer que ele existiu concretamente e tem uma história para contar.
O artista pernambucano foi, antes e acima de tudo, um homem, como qualquer um de nós. Entender isso, sem mitificá-lo, é passo essencial para um melhor mergulho em sua significativa obra. E, nessa linha de raciocínio, ele é mais e densamente humano nos trabalhos expostos no espaço batizado de Accademia. Ali está o artista pleno, tão divinamente longe de Deus e liricamente perto dos homens como qualquer um de nós pode, deve e precisa ser.
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