Há artistas que nos abalam com a potência do seu gênio; muitos, na tentativa desesperada de salvar o mundo, dele se afastam, às vezes virando as costas à própria arte, à vida mesmo. Fernanda, artista de gênio, em nenhum dos três itens foge ao centro: no meio do mundo, no meio da arte, no meio da vida. É assim que a vejo, ela mesma pouco a pouco entendendo seu próprio destino.
Esse destino que confere ao seu trabalho uma dimensão que transcende a evidente excelência: suas criações são como os romances de Machado, os poemas de Drummond — descobrem (inventam) o sentido do nosso modo de ser; nos fundam, nos filtram, nos projetam. E nos acenam com enormes tarefas. Por isso não me preocupa se a chamam de “primeira dama do teatro brasileiro”.
Não há nada da hipocrisia pequeno-burguesa no seu relativo ceticismo frente aos excessos experimentais em arte e vida: simplesmente ela não pode, não deve ser excêntrica, afastar-se demais do centro onde está o seu destino. Ela conheceu a modernização do teatro brasileiro em suas íntimas dificuldades, desde o tempo em que o “ponto” ditava o texto e os atores eram fichados na polícia, até os dias de dialética Arena x TBC. Sabe o que são as duas conquistas reais, não se deslumbra com mudanças de superfície.
Sendo ao mesmo tempo o oposto de uma excêntrica e o contrário de uma medíocre, Fernanda nos comunica responsabilidade. Do jovem ator talentosíssimo que me disse dela “essa veio para ensinar”, ao presidente da República que a queria ministra da Cultura, todos revelam intuir nessa mulher feroz e serena uma vocação de líder moral. É que ela é civilizada e civilizadora. Ela é a encarnação da civilização brasileira possível. Ela é a grande dama do teatro brasileiro. E que sintoma de saúde do teatro no Brasil que seja assim!
Sua primeira dama não é uma virtuose acadêmica nem uma burguesa arrogante, tampouco é uma aventureira mistificadora: é uma mulher para quem "os fatos são fatos, os atos são atos e os nomes são nomes”. Se este nunca se tornar um país são e respeitável é porque terá traído Fernanda Montenegro.
Em cena, ela estende um pano sobre a mesa, em silêncio, e tudo está dito sobre a mulher, a elegância, a condição humana e o teatro. De costas para a plateia, sua pele muito branca irradia uma intensa onda sensual, feita de fragilidade e firmeza, coragem e recato.
Caetano Veloso, em texto publicado como um prefácio do livro "Fernanda Montenegro em O Exercício da Paixão", de Lucia Rito (Rocco, 1990). A atriz - "civilizada e civilizadora", nas palavras do cantor e compositor - lança agora seu livro de memórias, "Prólogo, Ato, Epílogo". Mais sobre o livro neste link.
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