domingo, 15 de setembro de 2019

.: Crítica de "Agosto" a peça que convoca o público para fazer um jogo da verdade

Fotos: Cláudia Ribeiro
Por Helder Moraes Miranda, em setembro de 2019.

Por mais estranho que pareça, assistir a peça teatral "Agosto" no mês de setembro (o espetáculo estreou no último dia 31) só mostra  que a história é atemporal. Escrito por Tracy Letts com direção e adaptação de André Paes Leme, o espetáculo está em cartaz até dia 29 de setembro no Teatro Porto Seguro.

Dos elementos da narrativa, sobressaem-se o espaço - representado pela casa escura de sempre janelas fechadas - e os personagens que movimentam a história como se estivessem guiados por uma fábula rodrigueana. Narradores participantes, eles cometem pecados, julgam e condenam uns aos outros sem a menor cerimônia: maltratar é consequência do ambiente insalubre em que vivem.

O tempo é o senhor e o elemento que está em todas as cenas de "Agosto". Em cada diálogo, ele está lá, à espreita, como um narrador onisciente. Esse personagem, que não tem uma fala, é tão presente que pode até ser tocado. Ele conhece tudo sobre os personagens e sobre o enredo, sabe o que se passa no íntimo das personagens, conhece as emoções e pensamentos, mas é capaz de desvendar, e entregar de bandeja ao público, quando menos se espera, os segredos de una família disfuncional.

É o tempo responsável por se encarregar de todos os enlaces e desenlaces nos 130 minutos de espetáculo. O tempo que construiu essa família é o mesmo que irá destruí-la. Na miríade deste tempo, físico, psicológico, orquestrado e tão abusivo quanto os personagens que rege e movimenta, reinam, absolutas, três mulheres de diferentes gerações: mãe, filha e neta. 

Violet Weston  (Guida Vianna) é a abelha rainha de uma teia que se move ao dispor de seus ditames. Com câncer na boca, algo que pode ser uma metáfora para a língua ferina da personagem, ela é um poço de mágoas mal resolvidas.  É  ela quem dá as cartas, sobretudo quando resolve falar as verdades empoeiradas que estavam varridas para baixo do tapete. 

Ódios velados, desprezos explícitos, divórcios secretos e até um incesto, nada passa incólume ao olhar repleto de maledicência e sagacidade da personagem. A Violet de Guida Vianna é puro deboche e não há nenhuma outra atriz que pudesse representá-la tão bem. Ao invés de unir essa família, ela separa e repele as filhas, e até o próprio marido, como um elemento desagregador que vai chegar ao cúmulo na cena final que faz com que o público saia destruído.


Letícia Isnard, com uma personagem tão intensa Barbara Fordhan, mostra-se uma surpresa para quem está habituado a vê-la em personagens mais leves na televisão. Ela se revela  um monstro sagrado do teatro, abençoada pelos deuses das artes cênicas, e fica tão gigante no palco que é ali que se tem a dimensão exata do talento dela.  É um caso perdido: o carisma e a a genialidade não cabem na tela da televisão, já que no palco ela transborda. Se todos tivessem a dimensão do quanto essa mulher é potente no teatro, Letícia Isnard seria reverenciada todos os dias, do momento em que acordasse até a hora de dormir. Se fosse uma atriz estrangeira, seria, inclusive, mundialmente conhecida.

Lorena Comparato também, uma mulher de 29 anos, faz com que o público acredite que ela é uma menina de 15 na pele de Jean Fordham. Essas três mulheres captam todos os olhares, mastigam o texto e jogam para o público algo entre o profano e o sublime. Algo que é eterno, mesmo que o tempo, matéria-prima do espetáculo, insista em apostar na efemeridade. Mas não se engane, nenhuma delas é santa, apenas personagens repletos de humanidade e vilanias.

Há outros destaques, como Claudia Ventura, a carismática atriz que empresta seu talento à personagem Karen Weston que é uma irmã doidivanas. Na apresentação que assistimos, Marianna Mac Niven, na pele de Ivy Weston, a irmã que abdicou da vida para cuidar dos pais, estava muito gripada e, com isso, quase sem voz. Mas até essa característica contribuiu para que a personagem se desenvolvesse como uma personagem sem voz ativa, incapaz de tomar as rédeas da própria vida, comprovando o talento indiscutível da atriz. 

Entre as coadjuvantes, Julia Schaeffer, como a contida índia que tem papel fundamental na resolução do desfecho, e a leveza contraditória de Eliane Costa no papel de Mattie Fae Aiken também fazem a diferença com as suas personagens antagônicas: enquanto uma é discreta, a outra é histriônica.

Com essa gama de personagens femininos tão fortes, o elenco masculino não deixa de ter a sua função. Mas há, nos homens de "Agosto", uma nítida inversão de papéis já que a peça, comandada por mulheres, mostra os homens como elementos frágeis, retratados com delicadeza pelo texto do autor.

O olhar para com o masculino é mais generoso para eles, que não tomam as rédeas da vida e lidam com as inseguranças da pior maneira possível, como, por exemplo, a sedução de mulheres mais novas. Isaac Bernat, Alexandre Dantas Cláudio Mendess e Guilherme Siman emprestam a própria dignidade a personagens quebrados e frágeis em um contexto em que a testosterona é das mulheres. 

"Agosto", com seus segredos, é um espetáculo que insiste em ser lembrado mesmo semanas depois de ser assistido. Em 2013, ganhadora dos principais prêmios nos Estados Unidos - Pulitzer e Tony -,a obra inspirou o longa-metragem "Álbum de Família" protagonizado por Meryl Streep e Julia Roberts, além de Ewan McGregor, Juliette Lewis, Sam Shepard e Benedict Cumberbatch. 

Esta primeira montagem no Brasil surgiu pelas mãos da produtora Maria Siman, da Primeira Página Produções, em parceria com Andrea Alves e Sarau Agência de Cultura Brasileira. Mas está terminando a temporada no Teatro Porto, por isso interessados em assistir a uma boa peça de teatro em São Paulo devem correr. Em outubro, a peça vai para Minas Gerais e retorna ao Rio de Janeiro para as últimas apresentações.

Falar que "Agosto" é um soco no estômago do espectador é cometer eufemismo - a maneira como ela atinge o público, que sai arrebatado, é muito mais do que isso. As relações humanas nunca foram tão longe, e com tanto excesso de velocidade, no teatro: todos querem uma catarse, mas nem todos são merecedores dela. 

Daí o tom de desafeto desde a primeira fala e a overdose de ressaca moral em que o espectador é submetido. Afinal, parafraseando Regina Duarte na célebre fala de outro espetáculo igualmente perturbador que trata sobre família, "O Leão no Inverno" (também apresentado no Teatro Porto Seguro": "Que família não tem seus problemas?".



"Agosto", de Tracy Letts
De 30 de agosto a 29 de setembro – Sextas e sábados, às 21h. Domingos, às 19h.
Classificação: 14 anos.
Duração: 130 minutos.
Gênero: comédia dramática.
Ingressos: R$ 80 plateia / Balcão e frisas R$ 70.

Ficha Técnica:
Texto: Tracy Letts. Tradução: Guilherme Siman. Direção e Adaptação: André Paes Leme. Elenco/personagens: Guida Vianna (Violet Weston), Letícia Isnard (Barbaraordhan), Alexandre Dantas (Steve Heidebrecht),  Claudia Ventura (Karen Weston), Cláudio Mendess (Charlie Aiken), Eliane Costa (Mattie FaeAiken), Guilherme Guilherme Siman (Charles Júnior), Isaac Bernat (Beverly Weston/Bill Fordham), Julia Schaeffer (Johnna Monevata),Lorena Comparato (Jean Fordham), Marianna Mac Niven (Ivy Weston). Diretor Assistente: Anderson Aragón. Cenografia: Carlos Alberto Nunes. Figurino: Patrícia Muniz. Iluminação: Renato Machado. Música: RiccoViana. Diretor Assistente: Anderson Aragón. Cenografia: Carlos Alberto Nunes. Figurino: Patrícia Muniz. Iluminação: Renato Machado. Música: Ricco Viana. Projeto Gráfico: Mais Programação Visual. Fotografia: Silvana Marques. Assessoria de Imprensa: ArtePlural. Produção Executiva: Felipe Valle. Direção de Produção: Andrea Alves e Maria Siman. Idealização e Coordenação Geral: Maria Siman. Realização: Primeira Página Produções.

Teatro Porto Seguro
Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo.
Telefone (11) 3226-7300.

Bilheteria: de terça a sábado, das 13h às 21h e domingos, das 12h às 19h.
Capacidade: 496 lugares.
Formas de pagamento: Cartão de crédito e débito (Visa, Mastercard, Elo e Diners).
Acessibilidade: dez lugares para cadeirantes e cinco cadeiras para obesos.
Estacionamento no local: Estapar R$ 20 (self parking) - Clientes Porto Seguro têm 50% de desconto.
Serviço de Vans: transporte gratuito Estação Luz – Teatro Porto Seguro – Estação Luz. O Teatro Porto Seguro oferece vans gratuitas da Estação Luz até as dependências do Teatro. Como pegar: na Estação Luz, na saída Rua José Paulino/Praça da Luz/Pinacoteca, vans personalizadas passam em frente ao local indicado para pegar os espectadores. Para mais informações, contate a equipe do Teatro Porto Seguro. Bicicletário – grátis.
Gemma Restaurante: terças a sextas-feiras das 11h às 17h; sábados das 11h às 18h e domingos das 11h às 16h. Happy hour quartas, quintas e sextas-feiras das 17h às 21h.

Vendas: tudus.com.br
Facebook: facebook.com/teatroporto
Instagram: @teatroporto


*Helder Moraes Miranda é bacharel em jornalismo e licenciado em Letras pela UniSantos - Universidade Católica de Santos, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura, pela USP - Universidade de São Paulo, e graduando em Pedagogia, pela Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo. Participou de várias antologias nacionais e internacionais, escreve contos, poemas e romances ainda não publicados. É editor do portal de cultura e entretenimento Resenhando.



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Um comentário:

  1. Espetáculo excelente com magníficas atuações. Resultado: o público sai reflexivo a respeito de toda a sequência de acontecimentos na vida daquela família. Montagem impecável!!

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