sexta-feira, 3 de maio de 2019

.: Warchavchik e sua inscrição na paisagem e no tempo

Antes da reforma - 1927
Em março de 2010 celebraram-se em São Paulo os 80 anos de uma determinada casa. Pode-se dizer que comemorar a passagem do tempo de uma casa não é feito pequeno numa metrópole como a capital paulista.

A casa de número 961 da rua Itápolis, no bairro de Pacaembu, foi reaberta tal qual no dia da sua inauguração: com uma exposição de artes. Quando inaugurada no dia 26 de março de 1930, Gregori Warchavchik, autor do projeto, ao abrir suas portas ao público, inseriu a arquitetura nas discussões acaloradas do que seria a arte moderna brasileira em sua primeira dentição, debates protagonizados por Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Antes dela, Warchavchik já tinha projetado aquela que ficou conhecida como a casa da rua Santa Cruz, no bairro Vila Mariana. Essa, sim, primeira casa modernista do Brasil, erguida em 1927, a “casa-manifesto”.

Naquele momento, o que manifestavam as paredes desses projetos? “Construções moderníssimas que despontavam no topo de colinas ainda rústicas”, escreveu o antropólogo Claude Levi Strauss (1908-2009) em seu Saudades de São Paulo. Ou ainda uma tradução em concreto em volumes prismáticos daquilo que, em seu manifesto Acerca da Arquitetura Moderna (1925), Warchavchik afirmou: “O arquiteto moderno deve amar sua época com todas as manifestações do espírito humano”.

Por conta dessas duas construções, assim como a casa da rua Bahia, também em São Paulo, erguida em 1930, Warchavchik será reconhecido pelos seus pares e nos primeiros livros de história da arquitetura do Brasil como sendo o pioneiro da nossa arquitetura moderna.

Que essas três casas ainda constituam a paisagem de São Paulo é algo que chama atenção. Foram erguidas numa época (que parece nunca passar) em que tudo se destruía, como fez notar Lévi-Strauss, que viveu no Brasil na década de 1930, em seus Tristes Trópicos: “Já que as cidades são novas e tiram dessa novidade a sua essência e justificação, custo a perdoá-las por não continuarem a sê-lo (...). A cidade desenvolve-se a tal velocidade que é impossível manter seu mapa: a cada semana demandaria uma nova edição”.

Gregori Warchavchik nasceu na Ucrânia e chegou no Brasil em 1923, após ter passado por uma formação em arquitetura na Itália. Veio justamente por conta de um emprego. E aqui parece ter encontrado, como diria mais tarde Lina Bo Bardi ao aportar no Rio de Janeiro em 1947, “um país também a ser construído”, diz o arquiteto Marco Artigas.

Na década de 1980, as três casas foram tombadas pelos órgãos de proteção ao patrimônio nas esferas federal, estadual e municipal. Para um país como o nosso, cuja borracha do esquecimento desliza velozmente, isso não é pouco. Chama particularmente atenção que, por muito pouco, por exemplo, a casa da Rua Santa Cruz não tenha sido demolida: tão logo anunciou-se ali a intenção de construção de um edifício (e logo a sumária destruição da casa), a sociedade civil, mobilizada, solicitou o seu tombamento, o que aconteceu em 1994.

A casa da rua Santa Cruz já estava referenciada no livro Arquitetura Contemporânea no Brasil, publicado pela primeira vez em 1981, e escrito pelo francês Yves Bruand, um dos grandes documentos de arquitetura brasileira. Ali, o autor dá atenção à maneira como Gregori Warchavchik construiu um aparato estratégico para criar condições de constituir uma arquitetura desnuda que à época as leis de regulamentação de obras não previam.  “[O arquiteto] apresentou então um projeto onde os volumes eram cuidadosamente mantidos, mas sua pureza provocante desaparecia embaixo de acréscimos fictícios: cornijas, enquadramentos de janelas, portas, balcões”, escreveu Bruand.

Ao final da obra, Gregori Warchavchik declara aos órgãos municipais de controle urbano que ele não teve meios econômicos para completar a construção. “O que é muito bonito simbolicamente, uma vez que é isso que o moderno tem como uma de suas premissas: a economia e a verdade dos materiais”, diz a arquiteta Marta Bogéa, professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU/USP).

À época, Warchavchik também participava do debate em torno do ensino. Por dois anos, foi professor da Escola Nacional de Belas Artes (Enba), no Rio de Janeiro, justamente quando essa tinha em sua direção o arquiteto Lúcio Costa, com quem ele chegou a dividir a criação de alguns projetos. No livro Arquitetura Moderna Brasileira – Depoimentos de uma Geração, organizado em 1987 por Alberto Xavier com textos fundamentais dessa geração de arquitetos modernos, lá está o depoimento de Paulo Santos, que foi aluno da Enba, colocando a presença de Warchavchik como aquele que trazia à escola “o presságio das casas modernas que desde 1927 e 1930 tinha construído na cidade de São Paulo”.

O arquiteto ucraniano, portanto, naturalizado brasileiro, está nos primeiros documentos para uma historiografia da arquitetura, como também o é livro Arquitetura Moderna Brasileira, de Henrique E. Mindlin, publicado primeiramente em francês, inglês e alemão, em 1956.  Sua obra é atualizada pelo pesquisador José Lira, no livro Warchavchik. Fraturas da Vanguarda (2011).

Mas por que então uma sensação de que esse arquiteto ucraniano naturalizado brasileiro tem sido pouco lembrado em escolas de arquitetura do Brasil? “Eu poderia supor ser uma necessidade de construir ícones de unicidade, assim como Lúcio Costa foi deslocado do debate sobre o projeto de Brasília evidenciando Oscar Niemeyer. Tem a ver com uma fragilidade cultural que, ao invés de caberem muitos, cabe apenas um ou dois, enquanto na verdade é no diálogo entre muitos que a arquitetura moderna se estabeleceu no Brasil”, diz Marta.

Em 2010, para a comemoração do aniversário da casa da rua Itápolis, o também arquiteto Carlos Eduardo Warchavchik, que recuperou e restaurou a casa desenhada pelo seu avô, realizou, além da citada exposição, um registro do momento. Com o escritório Piratininga Arquitetura, ao lado do arquiteto Marco Artigas, compôs pequenos filmes de entrevistas com arquitetos e estudiosos brasileiros.

Tratava-se, à luz daquela efeméride, de responder à seguinte questão: “Existe na arquitetura e urbanismo de hoje o mesmo potencial de transformação que houve há 80 anos?”. Difícil pensar assim quando se imagina que no surgimento das três casas modernistas existiam na cidade 900 mil habitantes e, após 80 anos, já éramos cerca de 20 milhões de pessoas em solo paulista.

Mas o que atravessa esse tempo e nos alcança hoje é justamente pensar a arquitetura enquanto produção da cultura. À sombra dos cactos das antigas casas modernas de Warchavchik, o que cabe retomar é o gesto inicial de colocar a arquitetura em debate com a sociedade – o que “permite pensar uma questão que é não olhar nostalgicamente para estas casas mas provocar aquilo que elas trazem de mais intrigante”, diz Marta Bogéa.

Ao fazer da casa ponto do debate em torno de nossa produção em arte, cultura, ensino e em política, Warchavchik parece ainda hoje nos convidar a pensar de que maneira, a partir deste tempo presente em que vivemos, vamos ativar com propriedade as questões que são de nossa época, e respondendo-as com criações que se inscrevam no tempo, na paisagem e nas pessoas, como fez ele àquela época, por meio de seus desenhos e ações.

Mariana Lacerda
jornalista e cineasta
(Este texto faz parte da publicação produzida pelo Itaú Cultural especialmente para a Ocupação Gregori Warchavchik)

Ocupação Gregori Warchavchik
De 27 de abril a 23 de junho

No Itaú Cultural
Terças-feiras a sextas-feiras, das 9h às 20h (permanência até as 20h30)
Sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h
Piso térreo
Classificação indicativa: livre
Entrada gratuita
Avenida Paulista, 149, Estação Brigadeiro do Metrô
Telefones: (11) 2168-1777
Acesso para pessoas com deficiência
Ar-condicionado
Estacionamento: Entrada pela Rua Leôncio de Carvalho, 108
Se o visitante carimbar o tíquete na recepção do Itaú Cultural:
3 horas: R$ 7; 4 horas: R$ 9; 5 a 12 horas: R$ 10.
Com manobrista e seguro, gratuito para bicicletas.
www.itaucultural.org.br

No Museu Lasar Segall
Quartas-feiras a segundas-feiras, 11h às 19h
Classificação indicativa: livre
Entrada gratuita
Rua Berta, 111
Fone: 11. 2168-1777

Café | Wi-Fi | Fraldário | Bicicletário
Ar-condicionado
www.mls.gov.br/o-museu/

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