segunda-feira, 20 de maio de 2019

.: A experiência de um psiquiatra vestido de palhaço na Cracolândia


Por Flavio Falcone*, em maio de 2019.

Quando cheguei na Cracolândia de São Paulo, fui o terceiro de uma equipe que preparava o terreno para executar um programa de redução de danos pela prefeitura da cidade, dois médicos e uma assistente social. 

Final de 2012, já sabíamos que Haddad (PT) seria o novo prefeito e que uma nova abordagem de cuidado seria implementada. A única certeza que eu tinha é que o palhaço seria o intermediário da minha relação com aquelas pessoas, pois já tinha testado isso por sete anos com a população de rua em São Bernardo do Campo e sabia que me proporcionaria uma relação de vínculo profundo e de confiança.

O primeiro médico foi quem me iniciou no fluxo (nome dado a cena de uso). Fui de palhaço, levei um pandeiro e a primeira impressão que causei foi uma dúvida: “o palhaço é policial à paisana?”. O médico, que eles já conheciam, informou que eu também era médico e estava ali para cuidar, não para reprimir. 

Entendi naquela cena que a última abordagem que foi tentada ali pelo governo Kassab, a “operação sufoco”, tinha traumatizado as pessoas pela utilização de violência policial extrema e pelas internações forçadas, um erro do ponto de vista do cuidado. Desfeita a dúvida, um usuário pediu o pandeiro e a visita terminou numa roda de samba, com instrumentos improvisados com baldes e latas vazias.

O samba do palhaço se tornou uma atividade regular dos usuários e culminou, em parceria com o Pessoal do Faroeste (grupo de teatro com sede próxima ao fluxo), num show e num documentário (https://vimeo.com/102278256) na Virada Cultural de 2013, quando se decidiu montar um palco no fluxo e os usuários abriram a programação do palco como artistas, um feito simbólico da mudança de paradigma que o Programa Braços Abertos propunha.

Rapidamente percebi que os poderes principais no jogo de cena da Cracolândia são as ações do poder público, as instituições cristãs, o crime organizado e a mídia, esta, dependendo da narrativa, deflagra ou freia ações opressivas executadas pelas polícias com a justificativa de combater o tráfico, que sempre continuou intacto.

Fui o primeiro garoto propaganda do programa que se chamaria “Braços Abertos” (https://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,de-palhaco-medico-combate-o-crack-imp-,1077416). Entendi a partir da reportagem do Bruno Paes Manso que a Cracolândia é um espaço de poder e é a pauta/vitrine da política de drogas oficial da cidade e do estado de São Paulo. 

Fiquei conhecido depois dessa reportagem em nível nacional. Fiz várias palestras, TEDs, virei referência para grupos de estudantes de medicina que estavam experimentando a utilização do palhaço, experimentei o poder que a grande mídia tem. Todavia, causei muita inveja em parte da equipe dos governos, pois em um mês já tinha dado entrevista em todas as grandes emissoras e eu estava virando referência dentro do Programa Braços Abertos.

O palhaço era um sucesso e sei que isso se deve ao poder do arquétipo que utilizo, represento uma forma de aliviar a dor por meio do riso. A assessoria da prefeitura passou a negar os pedidos e até o fim do programa fui cada vez mais silenciado. Isso iria se repetir no Programa Recomeço, por onde fiz uma entrevista no programa do Bial, critiquei a opressão policial e nunca mais a assessoria me liberou para dar entrevista -https://globoplay.globo.com/v/6157591/. Não poderia, por exemplo, escrever esse texto se ainda fosse contratado do poder público. A narrativa oficial é sempre manipulada e muito bem pensada para justificar violações de direitos humanos.

A função do palhaço é revelar aquilo que está escondido na sombra da sociedade e é isso que provoca o riso. Por isso, é uma figura perigosa e sempre soube que eu seria uma ameaça ao poder público, pois onde tem uma mentira deslavada, tem uma grande piada. Historicamente, o riso sempre foi perseguido em governos autoritários. 

Ser palhaço, para mim, é um ofício e a forma que encontrei de existir no mundo. O preço disso foram duas demissões políticas. Um aviso para os demais funcionários das empresas de saúde que trabalhei para que não se atrevam a questionar o sistema. O velho controle pelo medo. Hoje, percebo que só é possível ser palhaço de verdade no centro de São Paulo se eu não tiver a assessoria de governo dizendo o que posso ou não dizer e qual a narrativa que deve ser contada.

Como palhaço, não posso mais esconder o que sempre foi óbvio para mim. A Cracolândia de São Paulo é o resultado da sociedade escravocrata, racista, colonialista, machista, LGBTQfóbica, mal amada e sem espaço para o êxtase. Não resta nada a não ser a violência, o extermínio ou a conversão ao cristianismo. Os usuários são pessoas descartáveis para o Estado e para a sociedade, sem função humana, dentro desse capitalismo precário e colonial. 

O “fluxo” é uma fronteira sem legalidade, sem estado de direito, que coloca os jovens, principalmente os negros, como vidas matáveis, que encontram na polícia somente o controle e a afirmação dessa condição humana. O usuário luta para sobreviver, diante de limites impostos pela força e truculência policial, que só tem a função de afirmar a descartabilidade dessas vidas menos favorecidas, encenação ridícula de uma república que é uma falácia.

Duas histórias exemplificam bem essa violência associada ao racismo. Em 2018, criei um espetáculo chamado “Cabaré dos Afetos”, onde unia o rap, o circo e o teatro. Fizemos temporada no Espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt. No dia da estreia, MC Kawex estava ansioso e foi para o teatro correndo, saindo da Estação da Luz. Ao passar pelo largo do Arouche, por ser preto e estar correndo foi parado pela polícia. Ele disse que ia se apresentar no teatro. Os policiais riram e o chamaram de bandido, “mostra aí o que você roubou”. Levaram ele para delegacia e o fizeram chegar meia hora atrasado, depois que o espetáculo já tinha começado. 

Em 2019, criei o espetáculo “RCC – Rap Circo Cracolândia” que fez temporada no Teatro de Contêiner, que fica na região da Cracolândia. MC Meia Noite, um gênio do rap de improviso, estava indo para a última sessão com seu rádio portátil que comprou com o cachê das apresentações. Foi parado pela polícia na Praça Julio Prestes. Tentou explicar que ia se apresentar e que estava seguindo o caminho da arte para sair da Cracolândia. O policial disse que ele era bandido, nunca ia ser artista e lhe deu uma surra que o impossibilitou de cantar naquele dia. Chegou ao teatro cheio de hematomas.

Na Cracolândia, todos se chamam de “família”, é uma cidade do colonizado, uma zona de fronteira e uma cidade de má fama. Nesse lugar se nasce, não se importa como, e se morre não importa como, nem onde. As vidas vivem umas sobre as outras, cidade com fome, fome de tudo, cidade abaixada que só existe para ser excluída. A precariedade é análoga à escravidão.

Infelizmente, a maioria dos usuários da região da Luz de São Paulo é jovem e negra. A violência contra eles é desproporcional e imposta pelo estado. Assimetria covarde de uma sociedade que não abre mão de privilégios e os fins justificam os meios para que a pirâmide social permaneça intacta. Escárnio da guerra às drogas, que nunca combateu o tráfico ou diminuiu o consumo, pelo contrário. Uma guerra cujo objetivo real é o controle social.

Sobre Flávio Falcone*
Psiquiatra formado pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. Em sua prática profissional, desenvolveu metodologia única que utiliza a arte circense como ferramenta para os processos de tratamento psiquiátrico. 

Atuou como palhaço, em enfermaria psiquiátrica, no Hospital Municipal Tide Setúbal e no Hospital Vera Cruz. Desenvolveu trabalho de grupo com pacientes do CAPS-AD de São Bernardo do Campo, que resultou na “Nó Cego Cia. de Palhaços”. Desenvolve projeto de prevenção ao uso problemático do álcool e comportamentos associados em todas as unidades da Unesp. 

Realizou intervenções de palhaço pelo Programa “De Braços Abertos”, da Prefeitura de São Paulo, junto aos usuários de crack na região central da cidade. Por este trabalho, foi indicado ao “Prêmio Cidadão São Paulo – 2014”, promovido pelo site “Catraca Livre”.  Atualmente trabalha no Programa Recomeço, na região da Cracolândia, onde desenvolve os projetos “Cabaré do Palhaço” e “Rádio Helvétia”.

Palhaço formado por Cristiane Paoli Quito e Sílvia Leblon. Atuou e concebeu os espetáculos “A Culpa é da Vizinha” (2011); “Circo Geral das Galáxias” (2012) ; “Circo Negro” (2013); “Cabaré do Triunfo”. Atua no espetáculo “Na Estrada” (2014), do Circo Amarillo. Fundador da Cia. da Pegada, onde atua nos espetáculos “O Filho Daquela Lá (2015); “Andarilho” (2016) e “Cabaré do Dr. D” (2017).

Acrobata formado por Victor Abreu e Jean Paulo Galinsky (Circo do Capão). É portour de mão-a-mão e acrobacias coletivas, como canastilha e adágio. Criou os números circenses “La Traviata”(2014), “O Domador e a Besta” (2016) e “AlfaBeta”(2016).

Bailarino formado por Diogo Granato e Tica Lemos. Desde 2006, intérprete do grupo “Silenciosas”, dirigido por Diogo Granato. Apresentou “Metalinguagem1” (2006); “Aceleração e Amnésia” (2007); “O Retorno do Cavaleiro das Trevas” (2008); “Improvisos” (2009); “Dançando na Cidade” (2010); “Solos de Duos” (2011); “Stardust” (2012); “Pessoal e Intransferível” (2013); “Primeiras Estórias” (2016/2017).

Reportagem "Jornal da Gazeta"



2 comentários:

  1. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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  2. maravilhoso trabalho que vai alem das aparencias de um fenomeno social conhecido como cracolandia, possibilitando que essas vozes silenciadas por anos sejam ouvidas atraves da arte

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