"A busca por uma gama variada de experiências vem em parte da necessidade e em parte do interesse por atuar e conhecer os meandros de cada uma delas" - Ian Soffredini
Foto: Instagram @iansoffredini
Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Em maio de 2019
Não há como negar que as artes cênicas pulsam nas veias de Ian Soffredini. O neto de Carlos Alberto Soffredini, filho de Isser Korik e Renata Soffredini, nomes de referência no teatro, é ator, diretor, dramaturgo, produtor teatral, além de diretor artístico do Teatro dos Arcos. No palco, já mostrou que tem pinta de galã para ser o príncipe da Cinderela, mas também tem propriedade e total sagacidade para improvisar com humor de bom gosto que arranca gargalhadas.
Com habilidades de sobra, ele também sabe trabalhar fora dos holofotes para chegar à essência do teatro e torná-la concreta. Tal versatilidade, por exemplo, o coloca na posição de responsável pela dramaturgia e direção da adaptação do clássico da literatura universal como "O Pequeno Príncipe", em cartaz no Teatro Folha, até agosto. Confira a entrevista EXCLUSIVA com o talento dos teatros: Ian Soffredini!
RESENHANDO - Ator, diretor, dramaturgo e produtor teatral. Nas artes cênicas, para você, há preferência por alguma área de atuação? Por quê?
IAN SOFFREDINI - No Brasil, trabalhar com teatro significa, em boa parte das produções, exercer múltiplas funções. Principalmente quando temos o interesse em realizar uma obra artística, dificilmente o projeto dos seus sonhos virá pelo convite de outra pessoa, então você mesmo tem que viabilizar aquilo o que quer ver montado. A alma do teatro é a dramaturgia e todas as outras funções vêm servir o conteúdo a ser transmitido. A realização plena do trabalho acontece na figura do ator, e tanto o diretor como o produtor são funções-meio, de viabilização da ideia. Quanto mais você entende do todo, melhor você executa funções individualmente, sejam elas quais forem. Por isso, para mim, a busca por uma gama variada de experiências vem em parte da necessidade e em parte do interesse por atuar e conhecer os meandros de cada uma delas.
RESENHANDO - Você é diretor artístico do Teatro dos Arcos. Como é estar cercado pelas artes cênicas?
I.S. - O trabalho do diretor artístico está em criar um ambiente que disponibilize da melhor forma seus recursos a fim de viabilizar os projetos seus e de outras pessoas. Também se relaciona com trabalhar na facilitação entre um fluxo de ideias e de realizações, buscando uma forma e um sentido para o espaço. Tento diferenciar o que eu busco nesse teatro que está no Bixiga. Um local tradicional para o teatro paulistano e uma referência para o teatro brasileiro, honrando a tradição do teatro de pesquisa, em um espaço onde o processo de criação é tão importante quanto o momento das apresentações. Outra coisa que acredito para o Teatro dos Arcos é em criar um ambiente de troca e confraternização entre plateia e artistas, incluindo o público no processo criativo.
I.S. - A obra de Sant-Exupéri não é um texto infantil. É uma obra sobre o resgate da infância para adultos. Por isso, tem muitos momentos de digressões filosóficas, autorreferências bibliográficas e muitos conceitos que não estão diretamente relacionados com a trajetória do protagonista. O próprio autor, no livro, destaca que está escrevendo para adultos, mas dá dicas de como teria escrito se fosse para crianças -esta foi a chave principal para a adaptação do livro em um texto dramatúrgico.
RESENHANDO - E tudo começou...
I.S. - Uma das premissas foi focar o texto nos avanços dramatúrgicos da história e na curva dramática do Pequeno Príncipe. Desta forma, ao invés de retratar no palco um resgate saudosista de algo que se perdeu, faço uma afirmação mais direta dos valores que o texto traz, sendo que no teatro infantil estes valores podem ser postos livremente: amizade, criação de laços afetivos, fidelidade, responsabilidade, como lidar com as perdas e relativizá-las, pois há coisas que parecem ter sido perdidas, mas na verdade são perenes dentro de nós. Muitas das cenas foram criadas por meio de exercícios de improvisação junto com os atores. Além disso, a geração atual está muito desconectada de sua própria subjetividade e tem dificuldade com metáforas. Por isso, busquei materializar as metáforas por meio de metalinguagem linkando o texto com as soluções e recursos estéticos.
I.S. - Existem três momentos do espetáculo: Primeiro ato, Segundo ato e transições no espaço. A transição no espaço foi o gatilho inicial. No livro, ficamos fascinados com o fato de ele viajar pelo espaço, com um toque de realidade fantástica, ao atar-se a pássaros para viajar em um ambiente de vácuo. No livro, o autor dá poucos elementos e deixa que o leitor crie as imagens desta viagem. Por meio da linguagem do Teatro de Luz Negra de Praga, tivemos a possibilidade de fazer uma alegoria virtuosa de beleza e brilho. O que conta aqui é o resultado de deleite estético que visa ao encantamento.
RESENHANDO - Como funciona em cada ato?
I.S. - No primeiro ato, o Pequeno Príncipe é representado pelo boneco e encontra figuras antropomórficas que misturam máscaras, partes de bonecos e atores. Cada figura que ele encontra representa para o autor uma faceta desagradável do mundo adulto, uma distração que o afasta do que é essencial na vida e o impede de valorizar o que realmente deve ser valorizado. As opções estéticas vêm reforçar e caracterizar estes desvios: o homem de negócios que dá mais valor à quantidade de estrelas que tem no céu do que a capacidade que elas tem de fazer as pessoas sonharem, tem uma cabeça desproporcional ao corpo, e o seu mundo é uma mesa de trabalho; o bêbado, que se mantém entorpecido para não ter que lidar com a vergonha do seu vício, enche o copo com as próprias lágrimas. Enquanto o Pequeno Príncipe, neste momento representado por um boneco Bunraku, da tradição japonesa, é o portador da verdade essencial das situações que encontra e joga luz nos absurdos que os adultos inventam e contam para si mesmos. No segundo ato, o Pequeno Príncipe se encontra no planeta Terra e não tem mais os pássaros que permitem que ele voe livremente pelo universo. Ele agora está à mercê das intempéries do clima e de uma natureza inóspita. Neste momento ele passa a ser representado por um ser humano e se relaciona com os animais da Terra, que são bonecos, que vem trazer para ele uma visão mais profunda do essencial e dialoga com o que ele já sabia intuitivamente. Neste caso, são novamente os bonecos, na forma dos animais, que vem trazer ao Pequeno Príncipe humano as verdades essenciais. Foi feito um trabalho profundo com Sidnei Caria (cenário, figurino, adereços e bonecos), Wanderley Piras (direção de manipulação) e Diego Rocha (concepção de iluminação) de experimentação para alcançarmos o resultado almejado. Quando chegávamos com os primeiros materiais de teste e ideias, realizamos um trabalho de mesa com os atores, que permitiu a eles contribuir com o processo de criação.
RESENHANDO - Como foi ver a sua criação diante do público infantil, no dia da estreia, em que você esteve presente?
I.S. - No dia da estreia, senti uma inversão de papeis enorme: os adultos muito encantados e deslumbrados, que normalmente identificamos nas crianças; e as crianças em um lugar de diversão que só é possível quando você está entendendo tudo o que está acontecendo. Senti que as crianças estavam captando melhor os meandros da história, acompanhando e torcendo pela trajetória do personagem do que os adultos. Ou seja, as crianças estavam mais em um campo racional e os adultos em um campo subjetivo de envolvimento com a história. Isso me fez conseguir encontrar finalmente um lugar para uma citação do livro que ainda não tinha o seu espaço no espetáculo, que é “Se você não entendeu alguma coisa, pergunte a uma criança”. A estreia me deixou muito feliz, pela concretização de meses de trabalho duro e pela possibilidade de construção profunda e sensível desta história.
RESENHANDO - Qual é o segredo para o espetáculo conseguir tamanha comunicação entre as crianças e o público adulto?
I.S. - O grande segredo foi, em primeiro lugar, a escolha deste livro como tema. Li este texto várias vezes ao longo da vida e, cada vez que li, tive algum tipo de insight ou revelação que foi diferente das outras. Ele marcou muitas gerações e já existe uma relação afetiva e íntima com boa parte do público, principalmente adulto, com os personagens e a história. É quase como encontrar velhos amigos. Aqui, o grande mérito é do autor, e o espetáculo, por meio de sua estética, reforçou esta sensação.
RESENHANDO - Dos personagens de "O Pequeno Príncipe", qual é o seu favorito? Por quê?
I.S. - Meu personagem favorito é a raposa, pois a relação que ela estabelece com o Pequeno Príncipe sintetiza tudo o que as outras vivências e personagens significam para ele. Ela fala de uma forma muito simples e poética sobre o transcendental. É muito bonito que o autor coloque tamanha sabedoria personificada em um animal, invertendo a lógica de que o homem é o ser mais sábio da Terra e que os animais estão subordinados a ele.
RESENHANDO - Em "Não Tem Xícara" você dirige e atua. Como é trabalhar com o improviso?
I.S. - Meu impulso inicial para trabalhar com o improviso foi desenvolver uma pesquisa que possibilitasse aos atores uma compreensão plena da sua função dramatúrgica dentro do espetáculo. Isso surgiu de um período inicial da minha carreira na qual eu ficava muito frustrado por ver as pessoas com quem trabalhava contando suas falas e valorizando seu papel em uma montagem mais em função de entrar em cena e mais para mostrar o trabalho individual do que ser parte de uma construção coletiva. Na improvisação, os performers somam as funções de ator, diretor e dramaturgo, e as realizam no ato, em frente à plateia. Esse treino permite uma experimentação constante e muito direta tanto da criação da história quanto do como se contar uma história. Acredito que este tipo de conhecimento e habilidade pode ser aplicado em todas as linguagens interpretativas, narrativas e performáticas.
RESENHANDO - A participação de um convidado diferente movimenta ainda mais a apresentação de "Não Tem Xícara"? Como funciona na prática?
I.S. - Todo espetáculo de improviso partirá de algum gatilho, que é alguma coisa externa aos atores que vai inspirar e dar a faísca inicial para a criação. Algumas linguagens priorizam deixar este aspecto mais explícito para a plateia e outras menos. No caso do "Não Tem Xícara", optamos por trazer profissionais relevantes de áreas diversas para dividir experiências pessoais com a plateia, e estas experiências servem como inspiração para os atores criarem as cenas cômicas. A vantagem de se fazer desta forma são duas: cada pessoa traz um universo e referências próprios, possibilitando estímulos que valorizam a aleatoriedade do impulso; além disso, a plateia tem a possibilidade de ver uma pessoa que ela já admira o trabalho, fazendo algo inusitado.
RESENHANDO - Comédia de improviso é uma surpresa a cada apresentação. Qual é a diferença entre o espetáculo "Haroldo" e "Não Tem Xícara"?
I.S. - Em 2012, dirigi meu primeiro espetáculo de improviso, o "Espontânea", que é um formato que usava poesias trazidas pela plateia para produzir uma única história linear e aristotélica em longo formato, com cerca de 1h30 de duração. Essa é uma forma de se pensar improvisação que tem sido muito desenvolvida e difundida na América Latina e busca os aspectos mais teatrais da criação espontânea. Nos anos seguintes tive a oportunidade de trabalhar com grandes atores e diretores nesta modalidade: Rhena de Faria, Allan Benatti, Adriana Ospina e Gustavo Miranda, por exemplo. Esta ainda é uma pesquisa que muito me instiga e proporciona resultados relevantes nos países latino-americanos. Desde 2016 expandi meus interesses para a pesquisa e a forma de se pensar improvisação que é mais desenvolvida no Canadá e Estados Unidos, que prioriza não tanto a história que está sendo contada, mas sim os fatores de imprevisibilidade e os jogos cênicos de correspondência que estão embutidos nesta cena, com um formato voltado para esquetes e cenas independentes. Para tanto, eu me reuni com um grupo de atores improvisadores extremamente capacitados para remontar os dois formatos mais difundidos nestes países: "Harold" (aqui nomeado como "Haroldo") e "Armando" (aqui nomeado como "Não tem Xícara"). No final de 2018, junto com o Gabriel Caropreso, criamos um formato autoral a partir da lógica americana de Game of The Scene, ou Jogo da Cena, que utiliza a interação com o Instagram como ponto de partida para a criação das cenas e se chama "Sigo de Volta".
I.S. - O espetáculo "A Minha Primeira Vez" era uma mistura de depoimentos reais sobre a primeira experiência sexual das pessoas que foi coletada por meio de um site anônimo na internet. O legal deste espetáculo era que, como o texto era uma colagem de depoimentos reais, foi possível se debruçar sobre a pesquisa de criação de personagens muito diversos e a partir de um material muito genuíno e pessoal. Neste texto fui dirigido pelo meu pai, que assim como a minha mãe, é discípulo do meu avô, Carlos Alberto Soffredini, uma figura de grande contribuição na dramaturgia brasileira e no resgate de uma estética teatral particularmente brasileira. Então essa linguagem estética me foi transmitida como um ofício familiar e o processo desta peça fluiu de uma forma muito prazerosa, pois eu já era íntimo da linguagem utilizada. Um trabalho que eu ressalto na minha carreira foi um no qual eu tive a oportunidade de me aprofundar pela primeira vez na Estética Popular Teatral: o texto "Minha Nossa", escrito pelo meu avô e dirigido pela minha mãe, Renata Soffredini. Esse trabalho foi muito importante para mim, pois, além de uma vontade de expandir minhas referências e de uma criação autoral, sinto uma responsabilidade enorme em levar adiante o trabalho iniciado pelo meu avô e continuado pela minha família, de valorização do teatro brasileiro, porque acredito que o conhecimento de um povo sobre a própria cultura é importante na construção de sua autoestima.
RESENHANDO - Quais os projetos teatrais?
I.S. - Estamos remontando, depois de mais de 10 anos, o texto "Vem Buscar-me que Ainda sou Teu", que é um dos maiores clássicos da dramaturgia nacional. Ele foi contemplado com o Prêmio Zé Renato e estreará no Itaú Cultural em 06 de junho de 2019. Depois, seguirá temporada no Teatro dos Arcos, no segundo semestre do ano. O texto é justamente sobre o histórico do teatro no Brasil, surgido principalmente do circo-teatro e com uma característica do circo como ofício familiar. Em sua montagem histórica, a personagem Mãezinha foi eternizada pela Laura Cardoso, grande dama do teatro brasileiro, nesta montagem atual será representada Bete Dorgam, uma das maiores mestras do teatro popular brasileiro. Está sendo dirigido por Renata Soffredini, minha mãe e filha de C. A. Soffredini, que vem dedicando toda a vida à difusão do legado de seu pai e da valorização da dramaturgia nacional.
*Mary Ellen Farias dos Santos é criadora e editora do portal cultural Resenhando.com. É formada em Comunicação Social - Jornalismo, pós-graduada em Literatura e licenciada em Letras pela UniSantos - Universidade Católica de Santos. Twitter: @maryellenfsm
Encerramento do espetáculo no dia de estreia
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