terça-feira, 5 de março de 2019

.: Crítica de "Dogville": espetáculo conduz público a uma catarse coletiva


Por Helder Moraes Miranda
Em março de 2019


Há algumas maneiras de compreender o mundo em sua plenitude nos dias de hoje. Uma delas é assistir a peça "Dogville", em cartaz até dia 31 de março no Teatro Porto Seguro, obra que se faz necessária quando a intolerância vem sendo demonstrada na vida e nas redes sociais como uma ostensiva forma de orgulho. 

Mas "Dogville" não é apenas sobre intolerância, perdão, vingança ou redenção. Ela fala com o público de uma maneira individual. No espetáculo, que conta com texto de Lars Von Trier e direção de Zé Henrique de Paula, não há somente uma verdade, há três: a de Grace, forasteira que chega sob circustâncias misteriosas na pequena cidade de Dogville, a dos moradores daquele local e a verdade do meio - o que aconteceu de fato.

Contado em capítulos, com um elenco grandioso em que cada um têm o seu momento, há um embate que permeia o espetáculo: situações se invertem e, de repente, o que é bom vira mau e o que era torto se concerta para dar lugar a esse maniqueísmo próprio da humanidade. As pessoas pacíficas, alegres e acolhedoras  da peça, como toda multidão, podem dar margem a uma histeria coletiva com potencial de fazer as piores crueldades e se mostrarem, sem o menor pudor, doentes, hipócritas e desprovidas de qualquer sentimento de compaixão e empatia. 

"Dogville" é uma história de "Cinderela às avessas", em que ninguém é completamente bom ou mau - mas as maldades dos habitantes da cidade que foram apresentados como pessoas bem intencionadas ultrapassa e muito as boas ações que eles fizeram ao receber em comunidade uma mulher que tem sobre si mesma a mácula da dúvida, mas que só oferece o melhor de si para aqueles que a acolheram. As cadeiras, movimentadas como peças de xadrez, são elementos fundamentais para estabelecer uma continuidade na história.

O papel de Grace, que foi interpretado pela atriz Nicole Kidman no cinema, é a consagração de Mel Lisboa, apresentada ao público brasileiro na televisão com uma personagem marcante. Um movimento que começou com personagens que não tiveram o mesmo destaque na televisão, mas que fortificou no teatro musical quando ela encontrou em Rita Lee uma maneira de se reinventar como atriz. 

Grace, uma personagem tão cheia de nuances e energia, faz com que Mel se desvencilhe de vez do início da carreira na televisão e consiga mostrar que está preparada para enfrentar qualquer personagem. Se ainda existia qualquer dúvida a respeito do talento dessa atriz, há uma carga dramática que gira em torno da personagem que só uma intérprete de extrema sutileza, ousadia e personalidade sustentaria, como é o caso da destemida Mel Lisboa. 


Despido de vaidade, Fábio Assunção mostra todo o seu talento ao interpretar um personagem que alterna sentimentos de piedade e repulsa - saindo da zona de conforto dos papéis que lhe são dados e seguem o arquétipo de galã. Rodrigo Caetano, justamente por interpretar um mocinho controverso que filosofa enquanto cai o mundo da mulher que ele afirma amar, surge completamente diferente do que ele apresentou no espetáculo "1984" (crítica neste link), no mesmo Teatro Porto Seguro há alguns meses, também dirigido por Zé Henrique de Paula. Caetano é um camaleão nas artes. 

O mesmo pode se dizer de Thalles Cabral, que em nada lembra seus papéis anteriores, ao interpretar um deficiente mental na década de 30. Entre as mulheres, a doçura e o sadismo de Selma Egrei, Bianca Byinton e Fernanda Thurran conduzem a protagonista a esboçar a reação explosiva que o final promete. Há momentos em que o público não sabe quem olhar, porque todos estão muito bem ajustados na defesa de seus papéis.  

As projeções, que ajudam a contar a história, seguem o estilo de Zé Henrique de Paula, que já havia utilizado essa linguagem com a mesma eficiência em "1984". Dizer que "Dogville" é um soco do estômago do público é cometer redundância. Mas não há dúvidas de que é uma peça forte, que entrará para a história do teatro brasileiro por uma série de fatores, entre elas a de que a arte se torna mais combativa quando a realidade precisa de uma intervenção de pensamentos. 

Mas não se esqueça de que a peça teatral também trata de inversão de papéis. O oprimido também pode se tornar o opresessor porque o mundo exterior o tornou assim. "Dogville" é metafórica, pois coloca o espectador em conflito com questões que ele pode não querer pensar - mas está inserido nelas. Também é  libertadora, porque, por incrível que pareça, foge do final piegas e - para o bem e para o mal - leva o público para um momento em que a justiça com as próprias mãos se torna um final edificante ou controverso - dependendo de que lado ele estiver. Em ambos os casos, no entanto, o público vai à forra. 

Sobre "Dogville"
A trama se passa na fictícia cidade de Dogville, uma pequena e obscura cidade situada no topo de uma cadeia montanhosa, onde residem algumas poucas famílias formadas por pessoas aparentemente bondosas e acolhedoras. A pacata rotina dos moradores do vilarejo é abalada pela chegada de Grace (Mel Lisboa), uma forasteira misteriosa que procura abrigo para se esconder de um bando de gangsteres.

Recebida por Tom Edison Jr. (Rodrigo Caetano), que, comovido pela sua situação, convence os outros moradores a acolhe-la na cidade. Grace, apesar de afirmar nunca ter trabalhado na vida, decide oferecer seus serviços para as famílias de Dogville em agradecimento pela sua generosidade. Porém, no decorrer da trama, um jogo perverso se instaura entre os moradores da cidade e a bela forasteira: quanto mais ela se doa e expõe a sua fragilidade e a sua bondade, mais os cidadãos de bem exigem e abusam dela, levando a situação a extremos inimagináveis.

"Dogville"
Ficha Técnica
Título Original: "Dogville"
Autor: Lars Von Trier
Direção: Zé Henrique de Paula
Elenco: Mel Lisboa (Grace), Eric Lenate (Narrador), Fábio Assunção (Chuck), Bianca Byington (Vera), Rodrigo Caetano (Tom Edison), Anna Toledo (Martha), Marcelo Villas Boas (Ben), Gustavo Trestini (Sr. Henson), Fernanda Thurann (Liz), Thalles Cabral (Bill Henson), Chris Couto (Sra. Henson), Blota Filho (Thomas Pai), Munir Pedrosa (Jack McKay), Selma Egrei (Ma Ginger), Fernanda Couto (Glória) e Dudu Ejchel (Jason)
Idealização: Felipe Lima
Realização: Sevenx Produções Artísticas

Serviço
Gênero: Drama
Duração: 100 minutos
Classificação Etária: 16 anos
Sextas e sábados, às 21h
Domingos, às 19h

Teatro Porto Seguro
Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo.
Telefone (11) 3226.7300.
Capacidade: 496 lugares.
Formas de pagamento: Cartão de crédito e débito (Visa, Mastercard, Elo e Diners).
Acessibilidade: 10 lugares para cadeirantes e 5 cadeiras para obesos.
Estacionamento no local: Estapar R$ 20 (self parking) - Clientes Porto Seguro têm 50% de desconto.

Serviço de Vans: Transporte gratuito Estação Luz – Teatro Porto Seguro – Estação Luz. O Teatro Porto Seguro oferece vans gratuitas da Estação Luz até as dependências do Teatro. Como pegar: Na Estação Luz, na saída Rua José Paulino/Praça da Luz/Pinacoteca, vans personalizadas passam em frente ao local indicado para pegar os espectadores. Para mais informações, contate a equipe do Teatro Porto Seguro.
Bicicletário – grátis.

Gemma Restaurante: Terças a sextas-feiras das 11h às 17h; sábados das 11h às 18h e domingos das 11h às 16h. Happy hour quartas, quintas e sextas-feiras das 17h às 21h.

Vendas: http://www.tudus.com.br
Facebook: facebook.com/teatroporto
Instagram: @teatroporto


*Helder Moraes Miranda é bacharel em jornalismo e licenciado em Letras pela UniSantos - Universidade Católica de Santos, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura, pela USP - Universidade de São Paulo, e graduando em Pedagogia, pela Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo. Participou de várias antologias nacionais e internacionais, escreve contos, poemas e romances ainda não publicados. É editor do portal de cultura e entretenimento Resenhando.


Convite da "Mel Lisboa"


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