*Por Fred Coelho, em fevereiro de 2019.
Apesar do rosto na penumbra, um halo faz com que a foto de Cafi para a capa de Besta Fera seja o registro definitivo de uma iluminação. Após vinte anos sem lançar um trabalho de composições inéditas (o último foi "O Q Faço É Música", de 1998), Jards Macalé apresenta em seu novo disco a expressão exata de sua atualidade provocadora.
Fruto de um projeto realizado através do programa de patrocínios Natura Musical e gravado nos estúdios Red Bull de São Paulo, Besta Fera aprofunda a excelência de sua discografia, iniciada em 1972 pelo mitológico long-play gravado ao lado de Lanny Gordin e Tuti Moreno. Ao mesmo tempo, ele é um convite irrecusável para que novos ouvintes adentrem um universo sonoro único chamado Jards Macalé. Em tempos de audições fragmentadas em múltiplas frentes e plataformas, "Besta Fera" é um disco que apresenta, simultaneamente, canções que funcionam tanto em sua força única quanto no conjunto de uma verdadeira obra.
Essa sonoridade, impactante já em sua primeira audição, é fruto do encontro entre velhos e novos amigos do músico carioca. Na sua bagagem de 50 anos de estrada com a canção popular, Macalé assume a direção musical do disco para costurar referências como Gregório de Mattos (cuja presença ecoa o parceiro Waly Salomão) e Ezra Pound (que, se o primeiro poema gravado por Macalé foi "Luz", presente no disco "Let's Play That", gravado em 1983, agora, afinado com os tempos que atravessamos, surge com "Trevas"), parcerias históricas como José Carlos Capinam e homenagens como a Renô, amigo do tempo de andanças com Hélio Oiticica. Tais nomes, fazem a síntese, que só um artista como Macalé é capaz, entre a formação crítica de sua geração e a formação noturna, malandra, lírica e violenta do Rio de Janeiro.
Esses velhos companheiros de estrada batem papo com os novos parceiros, cujas trajetórias sólidas nos últimos anos casam perfeitamente com a caminhada de Jards e acrescentam a presença da cena musical contemporânea de São Paulo. A banda é formada por Kiko Dinucci (violão e sintetizadores) e Thomas Harres (bateria e percussão), responsáveis pela produção musical, além de Pedro Dantas (baixo) e Guilherme Held (guitarra). Os quatro foram colaboradores de Jards nos arranjos ao lado de Romulo Fróes (diretor artístico do disco) e Thiago França (responsável pelo arranjo orquestral da música "Buraco da Consolação"). Rodrigo Campos, Juçara Marçal, Ava Rocha, Clima e Tim Bernardes também têm participações brilhantes, sejam como músicos, sejam como compositores (ou ambos, no caso de Tim).
Sobre os arranjos, cada uma das canções traz elementos cujas camadas fazem com que os que conhecem a obra fundamental do músico, cantor e compositor, encontrem referências sutis, sacadas secretas, memórias melódicas. São momentos em que a sonoridade inovadora de seus álbuns antológicos dos anos 1970 e 1980 se faz presente sem precisar soar como passadismo ou homenagem engessada. É o entendimento, por parte dos músicos, produtores e arranjadores, de que a música de Macalé sempre é atual, em qualquer tempo. Além disso, sua dedicação técnica nas gravações de todos os seus trabalhos e sua formação erudita – de copista de orquestras a diretor musical de discos e shows importantes de sua geração – garantem que essa qualidade pessoal seja sempre renovada por ideias em ebulição.
As levadas de diferentes caminhos, forças, tons e timbres, fazem com que Macalé explore todas suas vertentes – do sussurro em voz e violão ao rock rasgado, do clima agônico de Lupicínio Rodrigues e Jamelão ao baile de orquestras como a sua dileta Tabajara, da batida bossa nova redonda ao reggae com rabeca, do samba levado por cavaco, percussão (com Ariane Molina e Thai Halfed) e coro (da Velha guarda musical da Nenê de Vila Matilde, composto por Laurinha, Clara e Irene) ao experimentalismo em sonoplastias, fitas cassetes e samples. Sempre inquieto e em movimento dentre as várias artes que convive, Macalé nunca perdeu de vista o caráter ampliado da canção popular brasileira. Cinema, poesia, teatro, performance, artes visuais, crime, filosofia, literatura, botequins, matas, mares e muitas outras frentes se fazem presentes na obra de Macalé, o que não seria diferen te em Besta Fera.
Vale também ressaltar que o grupo reunido ao redor de Jards Macalé para a gravação de seu novo disco é praticamente o mesmo que, recentemente, revolucionou a obra de Elza Soares em seus trabalhos "A Mulher do Fim do Mundo" (2015) e "Deus É Mulher" (2018). A informação, aqui, serve para lembrarmos que esses músicos escutaram com a máxima atenção a obra dos mestres. Foi a partir dessa audição interessada e atenta que, nos últimos anos, conseguiram criar coletivamente novos momentos artísticos sem perder de vista as identidades sonoras dessas trajetórias. No caso de "Besta Fera", essa fidelidade com a obra está registrada justamente ao encararem todos os desafios de um trabalho em estúdio com Macalé e colaborarem para um resultado contundente de um criador em seu auge. Exigente, experimental e rigoroso, Macalé tem como marca em sua careira tirar o máx imo possível do estúdio, principalmente quando mergulha em um trabalho de canções inéditas, podendo desenvolver suas ideias durante o processo de gravação.
Até tempos atrás, Macalé era um artista cujos supostos fins e maldições eram sempre relembrados ao falarem de seu trabalho. Com oito discos nos últimos vinte anos, todos bem recebidos por público e crítica, não há mais a menor dúvida de que sua produção cresce a cada dia, assim como sua influência sobre novas gerações. Por ser um artista contemporâneo de todos os tempos, Macalé faz de Besta Fera um comentário preciso, lírico e feroz na justa medida sobre o Brasil de hoje. Prepare-se para adentrar um mundo entre trevas, bombas Hs, túneis de cidades más, águas fundas, olhos de sangue, ignorâncias dos homens, beiras e obstáculos. Temas cuja força crítica é iluminada por arranjos e vozes certeiras. Aqui, não há margens, e sim um centro irradiador de canções feitas no calor de quem está sempre pronto para novos combates. Besta Fer a é a prova de que Jards Macalé está vivíssimo, quente, iluminado e bem acompanhado. Um disco que diz, com todas as letras, os delírios e belezas de um faquir da dor. Eis sua versão sobre nossos tempos – e, principalmente, contratempos.
0 comments:
Postar um comentário
Deixe-nos uma mensagem.