Há duas histórias sobre o sapato cor de abóbora que usei nos últimos dias. A primeira delas é que enquanto minha esposa vestia uma calça jeans em um provedor no Brás, centro comercial de São Paulo em que as roupas têm preços mais atrativos que o esperado, esse sapato brilhou para mim dentro de uma caixa de últimas peças.
Horrível, escalafobético, muitos tons acima da sobriedade de quem prefere cores neutras para se vestir e baratíssimo: foi amor à primeira vista. Eu quis e acredito que foi recíproco, porque penso que qualquer coisa inanimada tenha o poder de escolha sobre quem vai servir. E vesti: nossa-como-ele-se-adequa-perfeitamente-aos-meus-pés-mentira-apertava-um-pouco-eu-quis-porque-estava-muito-barato-embora-fosse-um-produto-pirata-de-uma-marca-conhecida-enfim.
A outra história é que eu coloquei esse sapato depois de uma experiência de quase morte. O dia seguinte após você quase ter morrido seja por qualquer motivo é difícil de lidar.
Antes disso, você pensa ser invencível e que nada de mau pode lhe acontecer mesmo se muita coisa ruim tenha dado as caras se você, como eu, é um velho que já avançou mais da metade da casa dos trinta. Mas há muita coisa linda no meio de tudo isso e a maturidade não chega somente com os grisalhos e as rugas - há os filhos e, se você não os têm, há os agregados.
Também há o lado que ninguém fala quando se quase morre, independente se você provocou ou não, de você ser culpado ou inocente na gentil tarefa de sobreviver, embora não tenha escolhido nem nascer, nem morrer, nem respirar: as coisas acontecem.
Mas quando se sobrevive, o dia seguinte vem carregado de vergonha. Inevitavelmente, mesmo que você não queira, o centro das atenções para quem sabe do que aconteceu é... você. Mesmo que a sua opção seja não contar para a maioria das pessoas. São explicações repetitivas que fazem com que você reviva algo que, de alguma maneira, não se quer, nem se precisa, reviver.
E quando fui atropelado por uma moto em alta velocidade assim que saí da escola em que dou aula, e caí de costela, só percebi uma luz muito forte na minha cara, escutei um barulho muito alto, gritos, e senti algo entrando em uma de minhas pernas. Depois disso, como se nada tivesse acontecido, eu me levantei sem dor e vi que o senhor que foi atingido do meu lado estava no chão: concluí que eu estava morto. Como em uma cena de filme, em que o personagem se vê fora do corpo.
Patrick Swayze em "Ghost - Do Outro Lado da Vida", Bruce Willis em "O Sexto Sentido"... Era essa a minha sensação. Tanto que eu ficava me apertando, incrédulo, resoluto e definitivo na minha certeza de ter morrido naquele momento. As referências são tudo e nada na vida de um homem...
A morte é uma experiência solitária em que tudo acontece muito rápido. Em um segundo, você está atravessando a rua, em outro, está estatelado no chão, para em seguida perceber que está machucado enquanto pessoas que não lhe conhecem gritam por você, berram, fazem caras de assustadas, e poucas, ou quase nenhuma, se dispõem a ajudar. Naquela noite, eu morri diversas vezes e renasci outras tantas.
Mas o que ninguém diz é que não se sente gratidão por estar vivo logo depois de acontecer uma coisa horrível com você. Isso só vem depois. Antes, você sente muita vergonha. Depois, sente-se culpado de fazer com que outras pessoas que não têm nada a ver com a sua vida presenciem cenas fortes e, de certa maneira, degradantes.
Se você tem o perfil de esperar a poeira baixar para contar aos outros, quando já está bem, vai se sentir muito só e passará da autopiedade à autocomplacência, quando percebe que precisa cuidar de si mesmo com o algum afago. Não é fácil aconchegar-se em você, mas é possível, como também é fácil chorar no momento em que se percebe o quanto a experiência de viver é só e o quão vulnerável se é às coisas que não estão no nosso controle.
Autocomiseracao, autocomplacência e lágrimas que brotam sem que você não consiga controlar, tudo em sequência, até resultarem em soluços. Aí vem a raiva, o "e se...", a dor que você sente no dia seguinte, a paranoia de voltar a andar na rua, a pisar no chão, a atravessar faixas, a lidar com quem você não quer, o agradecimento pelo dia seguinte e a vontade de ser uma pessoa melhor. E, no meu caso, também teve o contraste do tênis cor de abóbora alaranjado que não combina com nada, mas que dá uma infusão de cor quando você está tão cinza por dentro...
*Helder Moraes Miranda escreve desde os seis anos e publicou um livro de poemas, "Fuga", aos 17. É bacharel em jornalismo e licenciado em Letras pela UniSantos - Universidade Católica de Santos, pós-graduado em Mídia, Informação e Cultura, pela USP - Universidade de São Paulo, e graduando em Pedagogia, pela Univesp - Universidade Virtual do Estado de São Paulo. Participou de várias antologias nacionais e internacionais, escreve contos, poemas e romances ainda não publicados. É editor do portal de cultura e entretenimento Resenhando.
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