A maior longevidade que estamos alcançando fez a gente trocar o pijama e a impotência da aposentadoria por uma inquietude e o desejo de continuar realizando
Há cinquenta anos estreava nos cinemas "O Leão no Inverno". Peter O'Toole faz o rei. Katharine Hepburn, a rainha. Curiosidade: foi o primeiro filme de Anthony Hopkins, no papel do príncipe Ricardo (Coração de Leão).
A interpretação do casal é um fenômeno a parte. Eles se amam e se mutilam com uma intensidade que só não é superior à paixão pelas intrigas. Humilhação, vingança, ardis e intervalos de lirismo alternam-se com tanta velocidade que é impossível tomar partido entre os dois. São atores que leram bastante e deram duro no teatro. Aprenderam a transpirar.
A presença de rei e rainha em um mesmo ambiente é cataclísmica. A rainha, depois de mais uma vez colocar para tremer as bases do trono, é mandada de volta para seu desterro. Ela parte sem se importar, porque sabe que, se pudesse, nem vacilaria em fazer o mesmo ao rei. Ela acena do barco enquanto ele grita:
– Espero que nunca morramos!
– Eu também espero!
– Você acha que existe alguma chance?
Reprisei o filme um dia desses e me dei conta:
Quantos filmes ou livros são produzidos até que surja um clássico? Acho que uns mil, sendo otimista. Por isso, prefiro garimpar clássicos e descobrir coisas novas. Procuro chamar a atenção para o que já está quase esquecido. Consumir com avidez somente o que é lançado me dá uma sensação de desperdício de tempo. Aos cinquenta, não acho que esse seja um elemento para a gente jogar fora, e, graças aos céus, fica mais difícil engolir porcarias que julgávamos geniais aos 20.
Freud dizia, quando fez 50 anos, que não sentia diferença entre o senhor que se tornava e o jovem que fora quando tinha 15 anos. Naquilo que a gente pode chamar de ânimo, espírito, paixão de viver, capacidade de sonhar, ele achava que era igual ao jovem de 15 anos. É lógico que há um abismo entre a inteligência e a experiência e essas duas idades. Mas Freud falava do sentimento do mundo e da alma. E isso é verdade. Assim como aos 15 existem jovens brilhantes, não estamos imunes a cometer besteiras por impulso aos 50. Afinal, ainda somos nós, dentro do mesmo corpo, apenas mais céticos e menos iludidos, embora volta e meia cada vez mais gente aos 50 esteja embarcando nos desejos postergados. Isso é bom.
Quando éramos jovens de 15 anos, nos perguntávamos: onde estaremos daqui a cinquenta anos? Desconfiávamos que esse intervalo de tempo correspondia a uma eternidade.
Hoje não fazemos a mesma pergunta porque isso não importa. Questionamos a qualidade do tempo. Isso importa.
A maior longevidade que estamos alcançando e a quebra de paradigmas da década de sessenta (quando estreamos no mundo), fez a gente trocar o pijama e a impotência da aposentadoria por uma inquietude e o desejo de continuar realizando.
Conheci no Aconcágua um trio de japoneses que devia ter em média uns 70 anos de idade. Praticavam caminhadas há décadas, mas nunca estiveram em montanha complicada e perigosa como aquela. Não estavam nem aí com o fato de alcançarem ou não o cume. O que importava era estar lá e dar um passo após o outro, piano, piano, e foram mais alto que um grupo de jovens triatletas que começaram acelerados e quebraram depois dos 5 mil metros (quebrar, na montanha, significa esgotamento das energias).
Aliás, existe um monte de maratonistas de 70 anos, e muita gente de cinquenta que está começando a correr.
É que nossa geração está ousando retomar projetos postergados e sonhos que começaram muito lá atrás, quando ainda pensávamos sobre o que estaríamos fazendo em 50 anos. A diferença é que a geração anterior, em geral, enterrava esses desejos infantis, vestia o pijama e se entregava ao mutismo e à apatia. Aposentar era mais perigoso para a saúde do que subir uma montanha. Isso é fato. É estatística médica.
Voltando ao Freud, tem um outro lado: quando fez sessenta e cinco, ele sentiu que a casa caiu. Mas eu acho que ele tinha questões, vivia em um tempo mais acirrado, e o câncer dele foi complicado demais.
Eu não sei se aos sessenta vai dar a rebordosa que o Freud falou, mas com certeza não dá mais para perguntar o que estarei fazendo daqui a 50 anos.
Por isso comentei sobre O Rei no Inverno. Por isso o tempo agora é precioso e tenho um apetite descomunal em conhecer e re-conhecer. E esse gesto se faz de trás para frente; nunca de frente para trás. Quem quer ser escritor e "pula" os clássicos, não será um grande escritor. Para correr 40K da maratona, tem que vencer primeiro os 10K. Picasso dizia que foi preciso aprender a desenhar como Rafael para que pudesse finalmente desenhar como uma criança.
Não, não é um tempo ruim para quem chega aos 50. É fato que é um tempo em que certas noções caíram no ridículo, nos esquecemos do fundamental e a preguiça afasta muita gente das coisas menos fúteis. Mas tem um zilhão de coisas boas. E uma vontade do tamanho do mundo.
"O Leão no inverno" está aí para nos lembrar. Afinal,
– O que você estará fazendo daqui a cinquenta anos?
– Oxalá nunca morramos!
*Roosevelt Colini é escritor www.rcolini.com.br.
Há cinquenta anos estreava nos cinemas "O Leão no Inverno". Peter O'Toole faz o rei. Katharine Hepburn, a rainha. Curiosidade: foi o primeiro filme de Anthony Hopkins, no papel do príncipe Ricardo (Coração de Leão).
A interpretação do casal é um fenômeno a parte. Eles se amam e se mutilam com uma intensidade que só não é superior à paixão pelas intrigas. Humilhação, vingança, ardis e intervalos de lirismo alternam-se com tanta velocidade que é impossível tomar partido entre os dois. São atores que leram bastante e deram duro no teatro. Aprenderam a transpirar.
A presença de rei e rainha em um mesmo ambiente é cataclísmica. A rainha, depois de mais uma vez colocar para tremer as bases do trono, é mandada de volta para seu desterro. Ela parte sem se importar, porque sabe que, se pudesse, nem vacilaria em fazer o mesmo ao rei. Ela acena do barco enquanto ele grita:
– Espero que nunca morramos!
– Eu também espero!
– Você acha que existe alguma chance?
Reprisei o filme um dia desses e me dei conta:
Quantos filmes ou livros são produzidos até que surja um clássico? Acho que uns mil, sendo otimista. Por isso, prefiro garimpar clássicos e descobrir coisas novas. Procuro chamar a atenção para o que já está quase esquecido. Consumir com avidez somente o que é lançado me dá uma sensação de desperdício de tempo. Aos cinquenta, não acho que esse seja um elemento para a gente jogar fora, e, graças aos céus, fica mais difícil engolir porcarias que julgávamos geniais aos 20.
Freud dizia, quando fez 50 anos, que não sentia diferença entre o senhor que se tornava e o jovem que fora quando tinha 15 anos. Naquilo que a gente pode chamar de ânimo, espírito, paixão de viver, capacidade de sonhar, ele achava que era igual ao jovem de 15 anos. É lógico que há um abismo entre a inteligência e a experiência e essas duas idades. Mas Freud falava do sentimento do mundo e da alma. E isso é verdade. Assim como aos 15 existem jovens brilhantes, não estamos imunes a cometer besteiras por impulso aos 50. Afinal, ainda somos nós, dentro do mesmo corpo, apenas mais céticos e menos iludidos, embora volta e meia cada vez mais gente aos 50 esteja embarcando nos desejos postergados. Isso é bom.
Quando éramos jovens de 15 anos, nos perguntávamos: onde estaremos daqui a cinquenta anos? Desconfiávamos que esse intervalo de tempo correspondia a uma eternidade.
Hoje não fazemos a mesma pergunta porque isso não importa. Questionamos a qualidade do tempo. Isso importa.
A maior longevidade que estamos alcançando e a quebra de paradigmas da década de sessenta (quando estreamos no mundo), fez a gente trocar o pijama e a impotência da aposentadoria por uma inquietude e o desejo de continuar realizando.
Conheci no Aconcágua um trio de japoneses que devia ter em média uns 70 anos de idade. Praticavam caminhadas há décadas, mas nunca estiveram em montanha complicada e perigosa como aquela. Não estavam nem aí com o fato de alcançarem ou não o cume. O que importava era estar lá e dar um passo após o outro, piano, piano, e foram mais alto que um grupo de jovens triatletas que começaram acelerados e quebraram depois dos 5 mil metros (quebrar, na montanha, significa esgotamento das energias).
Aliás, existe um monte de maratonistas de 70 anos, e muita gente de cinquenta que está começando a correr.
É que nossa geração está ousando retomar projetos postergados e sonhos que começaram muito lá atrás, quando ainda pensávamos sobre o que estaríamos fazendo em 50 anos. A diferença é que a geração anterior, em geral, enterrava esses desejos infantis, vestia o pijama e se entregava ao mutismo e à apatia. Aposentar era mais perigoso para a saúde do que subir uma montanha. Isso é fato. É estatística médica.
Voltando ao Freud, tem um outro lado: quando fez sessenta e cinco, ele sentiu que a casa caiu. Mas eu acho que ele tinha questões, vivia em um tempo mais acirrado, e o câncer dele foi complicado demais.
Eu não sei se aos sessenta vai dar a rebordosa que o Freud falou, mas com certeza não dá mais para perguntar o que estarei fazendo daqui a 50 anos.
Por isso comentei sobre O Rei no Inverno. Por isso o tempo agora é precioso e tenho um apetite descomunal em conhecer e re-conhecer. E esse gesto se faz de trás para frente; nunca de frente para trás. Quem quer ser escritor e "pula" os clássicos, não será um grande escritor. Para correr 40K da maratona, tem que vencer primeiro os 10K. Picasso dizia que foi preciso aprender a desenhar como Rafael para que pudesse finalmente desenhar como uma criança.
"O Leão no inverno" está aí para nos lembrar. Afinal,
– O que você estará fazendo daqui a cinquenta anos?
– Oxalá nunca morramos!
*Roosevelt Colini é escritor www.rcolini.com.br.
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