"É fascinante trabalhar num personagem dentro de um musical que tem um pacto com a dúvida! Hoje em dia, com as redes sociais, todos têm tanta certeza de tudo, pois estão ilhados atrás de seus avatares", Charles Möeller
Por: Mary Ellen Farias dos Santos
Colaboração de Helder Moraes Miranda
Em junho de 2018
Charles Möeller, figura importante para a dramaturgia brasileira, devido a longa estrada galgada com trabalhos inesquecíveis, da TV ao teatro, não se gaba pela extensão de seu currículo que inclui as ocupações de ator, diretor, autor, figurinista, cenógrafo e professor de teatro. Homem de diversas facetas dentro do teatro, brilhou na televisão em novelas como "Mico Preto" e "Xica da Silva", fez seriados como "Você decide", passou para atrás das câmeras e trabalhou em "Chiquinha Gonzaga" e "Dalva e Herivelto: Uma Canção de Amor".
Formando a produtora M&B, Möeller e Botelho, ao lado do também ator Cláudio Botelho, a dupla foi responsável pelo resgate do teatro musical no Rio de Janeiro, trazendo aos palcos brasileiros sucessos como "Beatles Num Céu de Diamantes", que há 10 anos viaja pelo Brasil, incluindo apresentações internacionais, "A Noviça Rebelde", após temporada aclamada em São Paulo, com estreia no Rio, em julho, e a novidade "Pippin", com primeira apresentação marcada para 2 de agosto, no Rio. Confira entrevista ESPECIAL com Charles Möeller, o homem do teatro musical!
RESENHANDO - Como é ser um dos responsáveis pelo resgate do teatro musical no Rio de Janeiro?
CHARLES MÖELLER: Quando começamos a fazer musical em 1990, não tinha essa caráter de resgate. Era quase um sonho impossível, uma teimosia, éramos dois garotos cheio de sonhos. Sofremos muito. Insistimos no gênero. No começo só conseguíamos pautas em teatro públicos e em horários mortos e não ia ninguém. Mas nunca esmorecemos, cada conquista foi celebrada, cada crítica, o aumento de público devagar. Formamos literalmente gerações de plateias e elencos. Eu me sinto um bandeirante que abriu estradas para todos os que vieram. Esse resgate quase impossível era de um gênero absolutamente desacreditado e faltava tudo: Desde equipamento à equipe. E não tínhamos elenco capaz de fazer com excelência as três coisas: dançar cantar e interpretar, era tudo setorizado e separado. Me dá muito orgulho de termos conseguido tanto e revertido esse placar.
RESENHANDO - Como foi sair do litoral paulista -Santos- e ganhar o mundo?
C.M. - Sempre sonhei com essa profissão. Acho que tinha muita fé também. Fé, às vezes, cega. Tudo aconteceu muito rápido comigo. Fui muito levado pelos acontecimentos e sempre chutei a bola mais pra frente que podia. Fiz teatro amador desde sempre e com 13 anos já tinha DRT e com 16 anos estava protagonizando um espetáculo na abertura do teatro SESC de Santos, chamado "O Noviço", essa peça me levou para festivais e fui imediatamente para o CPT, Companhia do Antunes Filho que fiz paralelamente aos meus estudos na faculdade de artes cênicas. Estava formado com 20 anos, fiz minha primeira peça fora o CPT, chamada "O Concílio do Amor", com direção de Gabriel Vilela. Um olheiro me viu num elenco de 30 pessoas e me indicou para um teste na Rede Globo, para uma novela das 19! Fui para o Rio sem nunca ter pisado na cidade. Fiz o teste e passei. Foi tudo tão rápido que em três semanas já tinha me mudado para o Rio num verão de 50 graus. Tenho pavor de calor. Com 20 anos, sozinho no Rio de Janeiro, sem conhecer ninguém, com um salário que mal pagava as minhas contas e com uma personagem enorme sem nunca ter feito TV. Foi só pancadaria. A vida sempre me colocou em furacões, mas acredito muito que marinheiro bom se faz em tempestade! E isso nos fortalece muito na estrada. Nos molda.
RESENHANDO - O que o teatro representa em sua vida?
C.M. - O teatro me salvou em todos os sentidos. Se não fosse o teatro eu não respiraria, não comeria. Não tenho sobrevida fora do teatro. O teatro me deu tudo que tenho hoje. Sou um homem de teatro. Sou um ator, diretor, autor, figurinista, cenógrafo e professor de teatro. Não falo isso com arrogância. Falo isso, pois tudo nesse ofício, para mim, sempre foi oxigênio. Quando não trabalhava como ator, estava fazendo cenário, figurino. Assim, nasceu o autor, o diretor, o professor e o produtor. Por sobrevivência e por não me imaginar fazendo outra coisa que não seja esse ofício. A minha vida é totalmente atrelada a minha carreira e meus anos são contados por aquilo que realizei.
RESENHANDO - Nas artes cênicas, o que prefere: ser ator, criar figurino, fazer cenografia ou produzir?
C.M. - Certamente ser diretor virou o meu ofício principal. Tanto que ele ofuscou todos os outros e hoje sou produtor apenas para realizar meus sonhos de diretor e não ter que ficar à deriva, à mercê de fazer títulos que não me interessam como artista.
RESENHANDO - O musical "Beatles Num Céu de Diamantes" completou 10 anos em cartaz, nos palcos paulistas e cariocas. Imaginava que a produção seria esse sucesso todo?
C.M. - Nunca! Beatles foi uma janela de pauta entre o "Sete - O musical" e "A Noviça Rebelde". Fui chamado no SESC Copacabana para criar um musical jovem, pois queriam mudar o público que frequentava e tive a ideia dos Beatles. Quando propus ao SESC Copacabana eles me perguntaram: Beatles é jovem? E eu respondi: Eles são eternos! Desconstruímos o som. Tiramos a bateria, a guitarra e fizemos um gênero que amo: o Musical Revue. Naquela época pouco difundido no país. Estreou muito timidamente, e em um mês éramos uma febre absoluta, os ingressos da temporada toda no Sesc se esgotaram. Formatamos para palco italiano, pois originalmente era em teatro de Arena e nunca mais parou. Já estivemos no Brasil todo. Fomos para a Europa e a cada temporada eu vejo uma enorme renovação. Tenho a sensação de que nunca vamos parar de fazer o espetáculo. Todo último dia dos Beatles a gente fala: Até daqui a pouco. Fenômeno não se explica.
RESENHANDO - 2018 marca o resgate de "A Noviça Rebelde" após 10 anos. Terminada temporada de sucesso em São Paulo, o musical segue para o Rio de Janeiro. Por que a trama de Maria foi escolhida?
C.M. - A Noviça Rebelde foi um marco nas nossas carreiras. Foi o primeiro musical gigante que fizemos. Era estreia do Teatro Oi Casagrande e foi o primeiro de uma série de musicais old Broadway que tivemos uma enorme felicidade de fazer. "A Noviça" foi um sucesso estrondoso há 10 anos e repetiu um feito ainda maior dessa vez que foi lotar o Teatro Renault, de quarta a Domingo. Na primeira produção, não era uma franquia e isso aumenta muito a responsabilidade de estar naquele palco sagrado onde o nível de excelência é absoluto.
RESENHANDO - Qual é a mágica que faz essa história tocar o coração das pessoas?
C.M. - A mágica, eu acho, está em não repetir fórmulas. Não ficar preso no sucesso de 10 anos atrás e tentar não me auto franquiar ou me remontar. Fizemos do zero. Nova roupagem, nova visão. Novo enfoque. Mas com o mesmo amor por essa história fascinante de Maria, do Capitão Von Trapp e seus filhos. Uma metáfora para o poder da musica, da arte e da cultura, capazes de mudar o luto e enfrentar qualquer totalitarismo e tirania. Claro que isso não seria possível se não tratasse de um dos musicais mais perfeitos do Oscar Hammerteimm e Richard Rodgers.
RESENHANDO - Qual é a diferença entre a Maria de Kiara Sasso e a de Malu Rodrigues?
C.M. - Kiara e a Malu começaram comigo, são frutos de terra muito arada, regada e adubada por nós. Acho que 10 anos depois queria ter outro enfoque do personagem! Quis me aproximar mais da verdadeira Maria Kutchera. Mais indisciplinada e mais bagunceira, mais respondona. Mais selvagem e tirolesa. Uma camponesa mesmo. A Malu tem a mesma idade da Maria quando chega na casa do Capitão. Lemos todas as biografias existentes inclusive da Agathe Von Trapp, filha mais velha do Capitão. Acho o trabalho de ambas, Kiara e Malu, maravilhosos. A Kiara era perfeita para aquela concepção: mais centrada, polida , romântica e dona da situação. A de Malu é mais para selvagem e moleca, tem relação de igual para igual com as crianças, enquanto a de dez anos atrás era mais de governanta e preceptora. Não tinha como mudar o olhar da peça e não passar pela Maria. Sou suspeito pois amo as duas! São tintas perfeitas para quadros muito diferentes .
RESENHANDO - Gottsha -muito admirada pelo público do portal Resenhando.com- já atuou em produções Möeller e Botelho, como "Nine", "Beatles Num Céu de Diamantes" e "Rocky Horror Show", sendo que atualmente, está em "A Noviça Rebelde". Como é trabalhar com ela?
C.M. - Gottsha é minha irmã. Temos um relação que vai além dos palcos. Começamos juntos. Passamos por tudo. Muitas alegrias, muitas tristezas. Temos uma simbiose. Amamos estar juntos e ela é um gênio. Tem dos timbres mais lindos que já ouvi. Gosto sempre de dar outros rumos para ela, fiz isso a vida toda com ela, e ela embarca cegamente em todas e tudo que peço.
RESENHANDO - Por que colocá-la no papel de Madre Superiora em "A Noviça Rebelde"?
C.M. - A Madre Superiora é tudo aquilo que ninguém pensaria em dar para ela. Acostumada a papéis muito exuberantes, voz muito vinculado ao Pop music e a Disco, como encarar uma senhora, quase lírica e de hábito, sem maquiagem? Mas ela vai de Bach a Emilinha. Ela é um ser humano muito agregador. Tem uma relação de muito amor e envolvimento com o trabalho quando ela acredita. Também, quando não acredita sai de baixo! Ela gosta quando é provocada e corre atrás de superação. Somos muito amigos, mas sabemos muito bem a hora de trabalhar. Se tenho que ser duro com ela, ela sabe que serei. É muito difícil quando você trabalha com artistas que não querem ser dirigidos ou quando são ficam num mar de lágrimas e justificativas. Gottsha é muito prática, como eu, e sabe que sempre vou querer ela brilhando e ela sempre brilha. Nunca passa desapercebida, pois tem muita luz e é uma estrela no melhor sentindo da palavra. Ela brilha, mas sabe que não faz isso sozinha então sempre vai pensar no todo.
RESENHANDO - Há novos projetos no teatro musical de Möeller e Botelho com Gottsha?
C.M. - Sempre há ! E quando não há ela se escala. (risos)
RESENHANDO - Como é a experiência de refazer super produções como "Beatles Num Céu de Diamantes" e "A Noviça Rebelde"?
C.M. - A experiência é sempre ter um frescor, não pensar em repetir e tirar coelhos da cartola e sempre se reinventar, manter a chama acesa, não cair nunca no burocrático e deitar no sucesso. Os deuses não perdoam quando você se acredita muito e acha que sabe tudo. Sempre estou me atualizando. Estou reiniciando todos os dias. Gente que acha que chegou lá fica sempre chata e chateado. Acho a chatice o túmulo do artista.
RESENHANDO - "Rocky Horror Show" é uma produção emblemática. Por que vocês sentiram vontade de montar esse espetáculo que toca em assuntos ainda polêmicos? Há previsão de ser remontada?
C.M. - Não acho polêmico, acho muito saudável e divertido brincar com esses temas. Antes de mais nada ele trata de uma grande homenagem ao trash movie, filme B, ficção cientifica. O "Rocky Horror" é anárquico por natureza. E não podemos colocar numa caixa, rotularmos ou classificá-lo, assim ele perderia sua essência que é ser o avesso do avesso. Trata com muito humor a possibilidade de não idealizar a vida, não romantizar o sonho. Não Sonhe : seja! Faça aquilo que te dê prazer, em todos os sentidos. Não é à toa que eles brincam iconicamente com a imagem da boca faminta, sedenta... Não temos previsão pra remontar, mas é claro que o ROCKY merece ser revisto sempre pois: Let's do the time-warp again.
RESENHANDO - Atualmente, está trabalhando na produção de "Pippin". O que lhe impulsionou a escolher outro grande musical da Broadway?
C.M. - Nesses 30 anos de carreira, já temos mais de 44 espetáculos e todos tem um norte: Nunca fizemos um espetáculo pensando se ele será um sucesso de público ou qual é demanda do mercado. O Pippin assim como muitos é sonho antigo. Amo essas músicas desde adolescente. Somos adoradores de Bob Fosse e durante anos nosso aquecimento era feito com "Magic to do", em todas as peças! Tentei comprar algumas vezes e nunca conseguia. Quando soube da remontagem, enlouqueci e estava na primeira fila da estreia da Diane Paulos. Quando os direitos de não réplica ficaram disponíveis compramos e estamos renovando há muitos anos e finalmente conseguimos patrocínio para a tão sonhada mágica .
RESENHANDO - "Pippin" trabalha o autoconhecimento e o significado da vida. O que já pode adiantar da nova produção?
C.M. - A peça é muito profunda e quanto mais trabalho nela, vejo a modernidade. Acho o "Pippin", o "Hamlet" dos musicais. É fascinante trabalhar num personagem dentro de um musical que tem um pacto com a dúvida! Hoje em dia, com as redes sociais, todos tem tanta certeza de tudo, pois estão ilhadas atrás de seus avatares. É maravilhoso tratar de um personagem que duvida de tudo, o tempo todo, até dele mesmo e quer, acima de tudo, ter uma vida extraordinária sem escolhas ordinárias! A produção está sendo feita com o rigor e amor de sempre. Estamos muito apaixonados por todo o processo e espero que todos tenham o mesmo prazer vendo do que estamos tendo em fazer.
RESENHANDO - Entre as excelentes produções da dupla Möeller e Botelho, há preferência por alguma? Qual?
C.M. - É como você me perguntar qual é o filho que eu acho mais bonito? Vou sempre falar o último, pois nunca fiz nenhum trabalho sem chegar no meu limite. Quando faço, vivo aquilo tão intensamente que me transformo por inteiro. Tanto que quando estreia eu me afasto para tentar me reciclar e deixar o navio zarpar. Não tenho uma preferencia explícita. Tenho marcos na carreira. Às vezes, nem sempre, foram os que deram mais bilheteria. Mas tiveram mais significado. O "7 - O musical", foi nossa peça de menor bilheteria que me deu mais prêmios, mais dívidas, mas fui muito feliz fazendo.
RESENHANDO - Há outros projetos para levar aos palcos?
C.M. - Muitos outros sempre. Na sequência do Pippin faremos "West Side Story", no Teatro Municipal. Ano que vem já temos duas remontagens de outros títulos da M&B, estamos gostando de nos revisitar. E mostrar para novas gerações títulos nossos. Vivo disso e não me dou o luxo de achar que ocupo um lugar inatingível. Continuo matando um leão por dia, a tapa, e sei que não existe hegemonia nessa profissão. Sou operário braçal mesmo.
*Mary Ellen Farias dos Santos é criadora e editora do portal cultural Resenhando.com. É formada em Comunicação Social - Jornalismo, pós-graduada em Literatura e licenciada em Letras pela UniSantos - Universidade Católica de Santos. Twitter: @maryellenfsm
Melhor pessoa.
ResponderExcluirAdoro musicais.
Lucy in the sky with diamonds
Fazer cultura num país como esse em que os ricos ainda se transvestem de colonizadores é uma árdua batalha. Esse cara merece nosso respeito. Tem belos trabalhos, embora reme contra a maré.
ResponderExcluirEspetáculo
ResponderExcluirExcelente entrevista, parabéns
ResponderExcluir