Por André Araújo, em maio de 2018.
Walcyr Carrasco é um escritor de inenarrável talento e dono de uma mente que não para de criar. Se daqui a um mês a Rede Globo o chamar para escrever uma novela a ser exibida às 17h, com certeza, em menos de três dias, o talentoso autor estará com um maravilhoso enredo escrito num papel e pronto para desenvolvê-lo em capítulos.
Mas não é de enredo que uma novela sobrevive e muito menos de grandes nomes em seu elenco, o que conta mesmo é a história, mas uma história com subtramas bem delineadas e capítulos com ganchos inteligentes, onde seus telespectadores não queiram ver outra coisa senão a continuação do mesmo no dia seguinte. Mas não basta isso. É preciso colocar em questão, mesmo que com muita sutileza, questões que são enfrentadas no cotidiano pela sociedade.
Lições de cidadania não fazem mal a ninguém, embora poucos aprendam; mas se os autores insistirem, especialmente esses que escrevem suas telenovelas para o horário mais nobre da maior emissora de TV do Brasil, “de grão em grão” um dia a cabeça do povo brasileiro se abre e as melhoras sociais cresçam cada vez mais.
“O Outro Lado do Paraíso” tinha tudo para ser “a novela do ano 2017”, devido os temas que seu criador abordaria no decorrer dos capítulos, contudo, o que os telespectadores receberam diariamente não passou de uma bagunça geral, beirando o ridículo, com cenas/textos/sequências patéticas onde a qualidade da história, prometida bem antes de sua estreia, ficou mesmo muito longe do esperado.
O mote central seria a vingança de uma mocinha ingênua que seria trancafiada num manicômio por toda a eternidade, mas que ao conseguir escapar, voltaria com todo o gás disposta a virar a vilã-mor da novela do avesso e, como rastilho de pólvora, alcançar a todos que compactuaram com a megera, mesmo que esses pobres diabos tenham sido “forçados” pela bruxa das esmeraldas, a pérfida Sophia Montserrat, tão bem defendida pela interpretação magnífica de Marieta Severo.
Mas interpretação sublime não salva novela de deslize, assim como um elenco de estrelas também não isenta uma novela de fracasso. (Lembram do megafracasso “BABILÔNIA”, em 2015, que além de levar a assinatura do autor Gilberto Braga, era “tarimbada” de grandes nomes?)
1) O psiquiatra Samuel (Eriberto Leão) forjou um exame falso para que a mocinha Clara (Bianca Bin) fosse interditada e perdesse seus direitos, não apenas sobre o filho, mas também pelas terras recheadas de esmeraldas. Samuel, homossexual enrustido, levava vida dupla. Casou-se com uma loura-burra para satisfazer sua mãe e, nos dez anos em que a mocinha da história esteve mantida no manicômio, o médico não só enganava a mãe, como fazia a esposa de trouxa. Para piorar, nesses 3.650 dias, aproximadamente, não conseguiu engravidar a mulher. Clara volta como vingadora e a única coisa que acontece com o médico foi tirá-lo do armário para a mãe e a esposa idiota. Na realidade, um alívio para “a tigresa”. Era essa a vingança? Vi como uma palhaçada digna de novela das tramas das 18h que o autor sempre soube conduzir com graça e grande audiência. “Dr. Samuel” não perdeu o direito de exercer a medicina e nem muito menos foi processado pela esposa devido os dez anos em que fora feita de trouxa.
2) O delegado Vinícius (Flávio Tolezani), além da arrogância natural do personagem, engavetava as denúncias de Clara contra o marido covarde, Gael (Sérgio Guizé) e ainda era pedófilo. A vingança da mocinha contra o delegado consistiu apenas em desmascará-lo. Ok. Justiça. Mas preso, ele acabou sendo assassinado a mando de Sophia, como “queima de arquivo”. E ficou por isso mesmo, uma vez que o filho da bruxa das esmeraldas ouviu quando a mãe assumiu que fora a mandante do assassinato.
3) O corrupto juiz Gustavo (Luis Melo) contribuiu para que Clara fosse interditada a custa de malas cheias de dinheiro que Sophia pagava sem pedir descontos. Nádia (Eliane Giardini), cúmplice do marido, fazia parte de todos os esquemas e volta e meia saía da casa da bruxa das esmeraldas com dinheiro até dentro da calcinha; numa dessas vezes, cédulas e mais cédulas voaram com o vento pela cidade e não houve um único habitante de Palmas (Tocantins) que fizesse uma foto e denunciasse a cena. Se a intenção do autor era fazer graça, o efeito foi exatamente o contrário, uma vez que os telespectadores se frustraram. Deu em nada. Quanto à corrupção do badalado juiz, a vingadora da novela “pressentiu” que ele era dono de um bordel, que traía a esposa, e armou o flagrante. Deu quase em nada. Ficou estranho. A mulher o botou para fora de casa e “fim”. A esposa traída arranjou um “boy magia”, levou-o para seu lar e, assim do nada, “descobriu” que só o “pônei” seria capaz de entendê-la na cama. Outra frustração.
4) Nádia (Eliane Giardini), como cúmplice do marido, deveria, se não ter pago pelos seus erros nas mãos da vingadora Clara, responder pelo crime de racismo que, mais uma vez, foi tema abordado pelo autor em forma de graça, com aquela frase: “Você, que veio do Quilombo, blá blá blá...”. De repente, não mais do que de repente, (risos) o autor resolveu que ela teria um netinho negro e daí se redimiria. Castigo? É castigo uma mulher branca ter um neto negro em pleno 2018? Para mim, um tiro no pé e um tapa na cara dos telespectadores, que torciam por uma punição à ex-patroa de Raquel.
5) Raquel (Érika Januza), que sofreu mais que sovaco de aleijado nas mãos de Nádia, que não aceitava que seu filho lindo (e branco!) se envolvesse com uma garota pobre (e negra!), acabou sendo enxotada da vida do rapaz e, para surpresa geral, retornou dez anos depois, JUÍZA, o que não mudou muita coisa. O racismo continuou explícito da parte da mulher do empoderado juiz Gustavo e nada aconteceu com a maledicente. Como se não bastasse isso, a ex-musa do quilombo teria como missão julgar quem teria a guarda de Tomaz (Vítor Figueiredo). Entretanto, a bruxa das esmeraldas, prevendo que perderia sua “galinha dos ovos de ouro” (as minhas estão no nome do menino), mandou seu capanga de confiança dar cabo na magistrada, que a atropelou com seu peculiar sadismo. O capanga Rato (César Ferrário) era a desgraça em forma de gente. Raquel, salva pelas preces milagrosas da vidente Mercedes (Fernanda Montenegro) que (essa foi demais!) fez com que a namorada do delegado Bruno (Caio Paduan) até levitasse no quarto do hospital e voltasse a andar sem sequelas. Absurdo geral. Mas o mais absurdo mesmo veio depois, ou seja, ficou por isso mesmo. A recuperação da personagem merecia destaque no programa “Fantástico”, com a chamada: “Milagre Existe!”. E o delegado? O Bruno socorreu a amada no hora do atentado e deixou o crime “para lá”. Sequer mencionou investigar a tentativa de assassinato. E se ele não a amasse, hein?! Dessa “temporada”, a verdade é uma só: a bruxa das minas se livrou de pagar por isso, uma vez que o capanga incubido do serviço sujo, morto pela vilã capítulos depois, levou o segredo para o túmulo.
6) Estela (Juliana Caldas), a anã filha da megera que fora escondida pela mãe-bruxa por anos a fio na Europa onde não fez outra coisa senão estudar, voltou para o Brasil (e para casa!) com a missão de ouvir, da boca de Sophia, dia após dia, noite após noite, que deveria ter sido vendida para um circo como grande atração e, claro, ser chamada de monstrengo. Pela primeira vez numa novela se falou em nanismo, e todo mundo esperou pra ver o tema abordado dentro da história. Onde mesmo? O que se viu ali foi uma moça anã que vivia com um romance aberto nas mãos e longe da família por imposição de sua genitora, que nunca a suportou. Em seguida, a anã se viu envolvida por dois homens: Juvenal (Anderson di Rizzi) e Amaro (Pedro Carvalho). O primeiro é pobre, trabalha como lapidador e vê a renegada filha da bruxa das minas com os olhos do amor. O segundo, português interesseiro, aproximou-se da jovem de olho nas esmeraldas que ela viria a herdar; por ironia do destino (ou seria ironia do autor da novela?), Juvenal se envolve com uma prostituta, embora ainda alimente algum sentimento pela irmã caçula de Gael, ao mesmo tempo em que o português ambicioso se afasta da sofredora quando a megera promete deserdá-la. E é nesse momento que acontece a “epifania” de Estela, que decide, enfim, fazer alguma coisa de útil e passa a dar aulas (de graça!), para os garimpeiros e prostitutas analfabetos do lugar, tornando-se uma espécie de ídolo, o que não quis dizer nada. Então, Amaro sofre acidente nas minas, fica cego e lá vai a professorinha cuidar do rapaz, que revela seu amor. Que lindo!
7) Lívia (Grazi Massafera) começou a novela como ninfomaníaca (um excelente tema) e cem por cento cúmplice da megera-mor da trama, não por acaso sua mãe. A tampa e a panela, para exemplificar a relação da duas. Como aprendiz de vilã, a irmã de Gael ajudou Sophia no que pode, mas com interesse próprio: queria o filho da cunhada, já que por conta de abortos não poderia engravidar se um dia quisesse mesmo ter um gerado dentro de si, o que acabou por conseguir. Mas como se isso fosse pouco, quando a vingadora voltou, a vilãzinha virou uma mãe sofredora que, de minuto a minuto, alienava o chatinho Tomaz para que ele odiasse a mãe biológica. Alienação parental é crime, e esse tema é mais do que interessante, ainda mais nos tempos de hoje. Walcyr Carrasco mostrou, mas não abordou a coisa como deveria. Lívia melhorou um pouco quando Sophia, por amar o mesmo homem que a filha, Mariano (Juliano Cazarré), revelou ser sua mãe postiça. Então, em vez de uma aprendiz de vilã, a ex-ninfomaníaca passou a ter seus dias de heroína mexicana, chorando baldes e baldes de lágrimas, mas sem convencer ninguém.
8) Renato (Rafael Cardoso), esse, sem dúvida, o pior personagem de toda a novela no quesito surpresa ruim. Da água de coco Renato transformou-se (ou se revelou?) em uísque falsificado. O "Dr. Bonzinho-galã-parceito-de-Clara-nas-vinganças-cheio-de-amor-para-dar", tornou-se um monstro de meter medo até mesmo no megavilão do filme "Os Vingadores - Guerra Infinita”, uma vez que suas ironias e sarcasmos dispensavam qualquer texto. Que Renato era “perfeitinho demais”, todo mundo sabia, e talvez fosse essa a grande surpresa do autor para aqueles que torciam pelo rival de Gael na disputa pelo amor de Clara. Ok. É natural de todo folhetim que se presa esse tipo de “surpresa”, mas... Como que a vidente Mercedes (Fernanda Montenegro), uma espécie de “tutora” da vingadora da novela, nunca se deu conta do pérfido caráter do médico? Por que “eles”, os espíritos que nada deixavam escapar, não alertaram a mulher do Josafá (Lima Duarte) sobre o médico-monstro? Difícil de engolir. Os espíritos que seguem a vidente são seletivos? Estranho demais...
9) E o que dizer da superdotada advogada Dri (“Adriana” Júlia Dalavia) que, dez anos depois de ter a mãe desaparecida, não conseguiu reconhecê-la, mesmo sem que a Beth (Glória Pires) tenha feito nenhuma plástica? Difícil de digerir também. Sem contar a chatice da mimadinha que se recusava a ouvir as explicações da mãe e muito menos ter uma boa conversa com o pai, o diplomata com cérebro de minhoca chamado Henrique (Emílio de Mello), um superbanana que encobriu a verdadeira face do pai, com medo das reações da filha chatinha, que idolatrava o avô. De doer.
10) Agora me paira uma coisa no ar: em que momento da escrita o autor Walcyr Carrasco decidiu transformar Sophia e Renato em cúmplices? Como que ele foi matar a coitada no hospício a mando da "bruxa das minas" se em momento algum houve sequer uma troca de olhar de conchavo entre os dois? Sophia planejava atacar o médico a tesouradas também depois de tudo feito? Ou Renato voltaria do manicômio com a ideia de acabar com a mãe de Gael e o próprio “viúvo” de Clara e se apossar das minas, uma vez que adotaria o Tomaz?
A novela acabou e essas questões expostas aqui jamais serão esclarecidas, fora outros “furos” dentro dos capítulos que, se eu fosse citar, dariam algo em torno de cento e tantos capítulos. Bem, mas se era boa audiência que a Rede Globo queria, a emissora chegou ao paraíso.
André Araújo é um apaixonado por telenovelas. Tanto que ele escreve algumas por aí e publica pela internet, arrebatando fãs e distribuindo inspiração. Da cabeça dele já saíram grandes personagens. Entre as novelas virtuais, é autor de "Uma Vez Na Vida! e "Flor de Cera".
Confesso que não entendi como essa novela agradou tanto o público, sendo que era bem preconceituosa e pra lá de pesada com o tema da vingança sempre em foco. Enfim...
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