sexta-feira, 27 de abril de 2018

.: Oscar Wilde e "O Retrato de Dorian Gray"

Flores se espalham em volta do túmulo de Oscar Wilde, no cemitério Père Lachaise, em Paris. Há também inúmeros bilhetinhos apaixonados pelo chão. São declarações de amor ao autor de "O retrato de Dorian Gray", que morreu num hotel simples, em Paris, em 1900. De certa forma, essas pequenas e diárias homenagens revelam a admiração que até hoje sua literatura suscita entre jovens leitores. Não se pode dizer apenas sua literatura, mas sua figura, que encarnou perfeitamente a imagem do dândi do século XIX. 

Claro que na esteira das admirações também vieram os detratores, com boatos e acusações principalmente sobre sua homossexualidade, Não é para menos. Oscar Wilde desafiou as regras estanques da moral inglesa, buscando ampliar o horizonte literário e estético de sua época. Sua obra e suas atitudes são provas de uma postura que não se poderia chamar de rebelde, mas provocativa. Como anota Richard Ellmann, em Oscar Wilde, extensa e minuciosa biografia do escritor, ele sempre esteve exposto ao perigo, "ri de sua situação difícil e, ao caminhar para a perda de tudo, provoca a sociedade por ser ela muito mais dura do que ele, muito menos amável, muito menos atraente".

Para Jorge Luíz Borges, a literatura nos oferece autores mais complexos ou imaginativos que Wilde, mas nenhum mais encantador. Num resumo impressionante dessa trajetória, Borges escreve o seguinte -e vale seguir suas linhas, deliciosamente bem traçadas: "Mais do que outros de sua espécie, Oscar Wilde foi um homo ludens. Jogou com o teatro; A importância de ser severo, é a única comédia do undo que tem sabor de champanhe. Jogou com a poesia; A esfinge, não tocada pelo patético, é pura e sabiamente verbal. Venturosamente, jogou com o ensaio e o diálogo. Jogou com a novela; Dorian Gray é uma variação decorativa executada sobre o tema de Jekyll e Hyde. Jogou tragicamente com seu destino; iniciou um pleito que sabia de antemão perdido e que levaria ao cárcere e à desonra. Em seu desterro voluntário, disse a Gide que ele quis conhecer 'o outro lado do jardim'".

Assim, em sucintas linhas, Borges nos coloca diretamente no coração da vida de Oscar Wilde, esse irlandês nascido em Dublin, em 1854, e que recebeu o nome completo de Oscar Fingal O´Flahertie Wills Wilde. Foi criado num ambiente em que se respirava literatura. Sua mãe, Jane Francesca Wilde, uma bela e excêntrica mulher, bastante admirada em seu meio, era poeta de inspiração nacionalista, e colaborav na imprensa com seus poemas e também com seus artigos, alguns bastante polêmicos, defendendo a identidade irlandesa. O pai, William Wilde, era médico, com especialização em doenças do olho e do ouvido. Além disso, tinha grande facilidade para escrever. Conta-se que, muitas vezes, entre camponeses, no lugar de receber pelas consultas, ele preferia que lhe contassem superstições locais, lendas, receitas medicinais e feitiços - material que depois ele transformaria em livros sobre a cultura popular irlandesa.

Oscar cresceu num ambiente da abundância. Ele e seu irmão Willie estudaram em Portora e depois no Tritiny College com uma forte formação humanística. Tinham uma irmã menor, Isola, que morreu aos nove anos. Além dela, tinham também três outros irmãos, filhos de seu pais, anteriores ao casamento com Jane. Destes, Henry Wilson seguiu a carreira do pai, e as duas moças morreram cedo, e de forma trágica, marcando profundamente a experiência familiar. O pai, que nunca escondeu os filhos ilegítimos, cuidou da educação de todos.

Foi em Trinity que o menino Oscar começou a se interessar pela cultura estética. Como lembra seu biógrafo, foi nessa época que ele começou a reunir os elementos de seu comportamento em Oxford - "as afinidades com os pré-rafaelistas, as roupas de dândi, a sexualidade ambígua, o desprezo pela moral convencional". Em Oxford, cursando letras clássicas, encontrou o ambiente propício para seu talento e sua verve, principalmente nos seminários de dois professores: John Ruskin e Walter Pater. Ruskin era professor de belas-artes, autor do famoso livro "As pedras de Veneza"; Pater, vinte anos mais novo, trabalhava na mesma área e tinha escrito "Estudos da história da Renascença", livro de cabeceira de Wilde. Foi nas aulas dos dois - que divergiam profundamente - que o jovem Oscar foi buscar sua concepção de estética, de uma vida estética.

Como lembra o crítico Otto Maria Carpeaux, em "História da Literatura Ocidental", a arte para os esteticistas é "a atmosfera do relativismo ético; e para alcançar essa esfera servem-se de mais outros instrumentos, afins ou for das atividades artísticas de escrever, pintar e fazer música: colecionar objetos de arte, bibliofilia, dandismo, prazeres da cozinha e outros prazeres, sejam legítimos ou até proibidos pelo Código Penal". E continua: "A fé na arte não é o elemento essencial do esteticismo; antes, essa fé exclusiva na arte é a última consequência da indiferença moral ou até do imoralismo consciente dos esteticistas".

Essas ideias pavimentam o pensamento filosófico do jovem Wilde que, depois de formado, precisando ganhar a vida (seu pai morreu em 1876, dividindo a herança entre os filhos), acabou se tornando um porta-voz da corrente esteticista não só na Inglaterra, mas também em outros países. Logo depois de lançar seu primeiro livro, "Poems", em 1881, que obteve sucesso e também gerou muita polêmica - chegou a ser acusado de plágio -, o autor passou uma longa temporada nos Estados Unidos, vivendo de palestras e chocando a sociedade local com suas vestimentas exuberantes e suas frases afiadas, cheias de visto, veneno e esteticismo exacerbado.

Entrou em cena o Oscar Wilde que conhecemos - que já vinha de antes, da adolescência, mas que agora desfilava com seus dandismo escorado numa corrente estética e ideológica que reverberava nos jornais e revistas e, claro, na sociedade vitoriana. Durante uma viagem a Dublin, ele conheceu uma jovem admiradora, Constance Lloyd , com quem viria a se casar, em 1884. Eles tiveram dois filhos, Cyrill, que nasceu em 1885, e Vyvyan, em 1886. Mas logo Wilde foi deixando de lado o papel de marido e se aproximando da sociedade dos moços - sua homossexualidade sempre foi tolerada, mas também explorada por seus adversários, muitas vezes em tom de galhofa.

Wilde tinha resposta para tudo. Apaixonado pela forma de epigrama, formulava frases contundentes que revelavam toda a sua inteligência e sua facilidade para a concisão de pensamento. Continuou levando a vida de conferencista, atraindo um público cada vez maior - e também, vale dizer, detratores. Como dizia Carpeaux, "sua vida foi obra de gênio; e ao gênio a sociedade sempre faz pagar caro a singularidade da sua natureza".

A obra: Entre contos, poemas e ensaios, Wilde escreveu, em 1889, a primeira versão de seu único romance "O retrato de Dorian Gray", cuja versão definitiva sairia em 1891. É nessa obra que o leitor encontrará o esteticismo de Wilde condensado em seus principais personagens. O romance foi fortemente criticado -alguns viam nele uma fonte de imoralidade, pois Wild, entre outros objetivos, introduziu com essa ficção o tema da homossexualidade no romance inglês. "A apresentação convenientemente velada desse tema censurado deu ao livro a notoriedade e originalidade", anotou o biógrafo Richard Ellmann.

E foi esse livro que aproximou Wilde do jovem Alfred Douglas, o filho mais moço do marques de Queensberry. Um primo de Alfred os apresentou e logo Wilde se ofereceu para ser seu professor particular. O garoto havia lido nove vezes Dorian Gray. Os dois mantiveram um intenso caso amoroso, que teria desdobramentos trágicos para o escritor. Enquanto isso, Wilde passou a se dedicar ao teatro, escrevendo e apresentando peças como "O leque de lady Windermere" (1892), "Um marido ideal" (1895) e "A importância de ser prudente" (1895).

O caso com Alfred Douglas, conhecido por Bosie, acabou por comprometer a vida do escritor. O pai do garoto acusou publicamente Wilde de sodomia, e este, como reação, resolveu processar o marques por injúria. Ele não só perdeu a causa como o marques contra-atacou com um processo de prática de homossexualidade que levaria Wilde a cumprir dois anos de trabalhos forçados. Na cela, escreveu o texto confessional "De profundi"; e, quando saiu "A balada do cárcere de Reading", sobre seus dias na prisão.

Seus últimos anos de vida foram praticamente no ostracismo. Ele havia perdido toda a notoriedade que conquistara. Mudou-se para Paris, onde chegou a se avistar com Bosie, de quem já havia se separado. Em 1898, soube da morte de Constance, que havia mudado de sobrenome por causa do escândalo do processo. Ele mesmo dera entrada no Hotel d´Alsace, em Paris, assinando-se como Sebastian Melmoth. E foi assim, em 30 de novembro de 1900, com poucos amigos, vivendo na miséria, que ele morreu.

Seu destino, guardadas as devidas diferenças, não deixa de lançar paralelos com seu principal personagem literário: o belo Dorian Gray. Para o escritor Albert Camus, no ensaio "O artistas na prisão", Wilde "desprezava o mundo em nome da beleza": "Toda sua obra de então assemelha-se àquele retrato de Dorian Gray que se cobria de rugas com uma rapidez tanto mais assustadora quanto seu modelo parecia permanecer jovem e gracioso". O romance, que condensa, em seus inúmeros diálogo, todo o pensamento de Wilde sobre o esteticismo, permite leitura variada.

É o romance de um esteta, mas, ao mesmo tempo, contém as limitações do próprio esteticismo - que se esvazia diante da realidade, do tempo que dolorosamente passa e abre sulcos no rosto do homem. Todas as questões que acompanharam o exuberante Wilde ao longo dos anos aparecem nas páginas do livro, principalmente nos diálogos sensacionais entre o jovem Dorian Gray, o pintor Basil Hallward e o velho dândi Henry Wotton. É por meio desse tripé que Wilde oferece ao leitor uma análise detalhada e complexa da sociedade inglesa do final do século XIX.

Um traço que chama a atenção do livro de Wilde é a quase desaparição de um narrador - ele surge, está lá, se intromete, mas, no entanto, a história se desenrola em diálogos. É uma narrativa dramática basicamente marcada por atos teatrais, com seu cenário, movimentos, gestos e conversar de função filosófico. Ele mesmo chegou a comentar com uma amiga: "Receio que se pareça bastante com minha vida - repleto de conversas e nenhuma ação".

É por meio dessas conversas que o escritor vai adentrando em seus assuntos: a moral, a ética, a estética, a religião etc. Aquelas ideias que ele havia bebido em Pater ou em Ruskin são ativadas nesses diálogos. No entanto, o fio condutor é o da tragédia: o belo adolescente Dorian Gray deixa-se retratar pelo pintor Basil Hallward, que nutre por ele uma secreta paixão; Basil o apresenta ao lord Henry Wotton, que, com suas teorias em defesa do individualismo, da arte pela arte, do pouco-caso pela vida comum e do prazer extremo, será uma figura fulgurante ao longo do livro todo. Dorian, diante da beleza do quatro, faz uma súplica, pedindo para permanecer sempre jovem, como no retrato. Não sem espanto, ele descobre certo dia que o retrato começa fantasticamente a envelhecer, a surgir todos os dias novas marcas na face colorida. É a vitória da beleza e, ao mesmo tempo, a derrota do homem, que não a percebe, tão entretido está em si mesmo, no seu profundo individualismo e narcisismo.

Ele passa a esconder o retrato no sótão e a levar uma vida mundana, de esplendor, dissipando-se nos prazeres de toda ordem. Wilde havia se embebido da literatura gótica, como "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, ou a famosa lenda do Fausto, que inspirou o poeta alemão Goethe. Mas cirou um romance cuja leitura não se fecha na questão do bem e do mal, vai além disso, criando um personagem que não pode abarcar com respostas prontas: Doriam teria sido um herói do esteticismo, levando-o às últimas consequências, ou vítima ingênua dele?


Texto retirado do livro "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wild; tradução de José Eduardo Ribeiro Moretzsohn. - São Paulo: Abril, 2010. 304p. - (Clássicos Abril Coleções; v.4)


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