Lya Luft lança livro que mistura romance, ensaio e autoficção
“A casa inventada” leva o leitor aos cômodos de sua casa imaginária, onde estão guardados os amores, as dores, as frustrações, as alegrias e lembranças das famílias, numa metáfora da própria existência. Obra chega às livrarias em momento triste: Lya perdeu um de seus três filhos, André, no início deste mês
Leia entrevista que a autora concedeu à jornalista e escritora Juliana Krapp, antes da trágica notícia, em que fala sobre como construímos as casas das nossas vidas, com “tropeços, grandes pedras, terremotos, mas também pequenos paraísos: http://bit.ly/2AhbVjq
Capítulo a capítulo, os cômodos de uma casa ganham vida. A porta de espiar, a sala da família, o porão das aflições, o pátio cotidiano. Cada espaço revela suas ambiguidades e seus mistérios, desvelando “clarões de ternura e riso” nos desvãos da memória. No espelho, Pandora sacode os cabelos e devolve as indagações da menina que, em pleno espanto, investiga o que move as pessoas e a arquitetura ao redor.
Em "A casa inventada", Lya Luft se confronta, mais uma vez, com os temas que marcam sua carreira de mais de 50 anos na literatura. As contradições da vida humana, a infância e a morte, a família como motor de liberdade e de opressão. O espaço da casa, cotidiano, cresce com as metamorfoses secretas de quem o habita. É, como a caixa guardada pela personagem mitológica, um repositório de desejos, euforias, alegrias e sombras. Ao abri-la, Lya Luft mostra, mais uma vez, sua habilidade em construir uma prosa poética desconcertante, singular.
A obra, que chega às livrarias em novembro, é publicada em um momento triste da vida da autora: Lya perdeu um de seus três filhos, André Luft, no início deste mês. Num dos trechos do livro, numa triste coincidência, ela conta como a morte de um menino, vizinho seu, e o lamento de seu pai a marcaram pelo resto da vida. Em entrevista concedida no fim de outubro ao blog da editora, a autora falou sobre como construímos as casas das nossas vidas, com “tropeços, grandes pedras, terremotos, mas também pequenos paraísos”.
TRECHO:
Os porões da alma podem esconder esse grande enigma, o desaparecimento, o nunca mais, escondendo pessoas amadas em suas largas mangas.
— Pandora, Pandora, por que temos de morrer?
Nessas horas ela desvia os olhos, se pudesse escapava para dentro de um espelho, mas desta vez eu seguro firme:
— Me diz, me explica, me fala!!! Me consola! Ou me condena!!!
Ela resiste, ela quer ser livre, então eu a deixo ir.
Não sei se ela sabe a resposta. Nem adivinho se ela entende o que se move, sombra e apelo, naquele lugar de que pouco falamos: eu deveria criar uma Sala dos Mortos?
As mortes se multiplicam para quase todos como amargos, tristes frutos: amigos, amigas, parentes, velhos, jovens, pais, parceiro ou parceira de vida.
A primeira morte de que tomei notícia, morte mais tremenda, mais pungente, foi a de uma criança que avistei poucas vezes, há tanto tempo, e cujo nome nem recordo. É a primeira de que me lembro, e pela qual, sem nada presenciar, eu sofri: meus pais procuravam me proteger de todo o medo, e perigo, e mal.
Numa casa vizinha, um homem imenso, muito gordo, simpático, bonachão, e sua mulher, depois de muitos anos, tiveram um filhinho. O menino devia ter dois anos, mal caminhava naquele trotezinho dos bebês. Muito louro, o pai o chamava “meu patinho”.
A criança adoeceu, ou caiu da escada da casa, não sei mais. Lembro comentários confusos. Sei que morreu, e durante toda a noite, toda a madrugada, eu ouvia de meu quarto de menina os desesperados gritos do pai chamando o filhinho morto. Gritos, berros, urros. E agarrava-se a ele, contaram depois, e o mantinha firmemente seguro em seus braços fortes, e não deixava que o levassem. E assim foi a noite toda, até que um médico amigo lhe deu uma injeção, e ele afrouxou o abraço, cedeu, deitou-se, dormiu — e ficou para sempre órfão do seu menininho.
Foi o mais terrível lamento que até ali eu tinha escutado: e ainda hoje, se apuro o ouvido em alguma madrugada, ele continua lá, como tudo continua enquanto dele tivermos lembrança.
SOBRE A AUTORA: Lya Luft publicou seu primeiro romance, As parceiras, em 1980, seguido por A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), Mulher no palco (1984), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), O lado fatal (1988, relançado em 2011), A sentinela (1994), O rio do meio (1996, prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes), Secreta mirada (1997), O ponto cego (1999), Histórias do tempo (2000), Mar de dentro (2002), Perdas & ganhos (2003), Pensar é transgredir (2004) e, no mesmo ano, Histórias de Bruxa Boa, sua estreia na literatura infantil, tema que retomaria em 2007 com A volta da Bruxa Boa. Em 2005, publicou o volume de poesia Para não dizer adeus e, em 2006, a reunião de crônicas Em outras palavras. Em 2008, lançou o livro de contos O silêncio dos amantes. Em 2009, voltou à literatura infantil, publicando com o filho, Eduardo Luft, Criança pensa, seguindo a linha de pensamento que busca estimular na infância e na adolescência a observação, a análise e o discernimento. Lançou, em seguida, os livros Múltipla escolha (2010) e A riqueza do mundo (2011). Em 2012, voltou ao romance com O tigre na sombra, vencedor do Prêmio da Academia Brasileira de Letras em 2013. Em 2014, lançou o livro O tempo é um rio que corre e, em 2015, Paisagem brasileira. Formada em letras anglo-germânicas e com mestrados em Literatura Brasileira e Linguística Aplicada, Lya foi professora titular de Linguística de 1970 a 1980. Depois disso, dedicou-se unicamente à tradução e à sua literatura. Viúva do linguista Celso Pedro Luft, com que teve os filhos Susana (médica), André (agrônomo) e Eduardo (filósofo), reside em Porto Alegre com seu companheiro Vicente Britto Pereira, engenheiro e escritor.
Livro: A Casa Inventada
Autora: Lya Luft
Páginas: 112
Editora: Record / Grupo Editorial Record
“A casa inventada” leva o leitor aos cômodos de sua casa imaginária, onde estão guardados os amores, as dores, as frustrações, as alegrias e lembranças das famílias, numa metáfora da própria existência. Obra chega às livrarias em momento triste: Lya perdeu um de seus três filhos, André, no início deste mês
Leia entrevista que a autora concedeu à jornalista e escritora Juliana Krapp, antes da trágica notícia, em que fala sobre como construímos as casas das nossas vidas, com “tropeços, grandes pedras, terremotos, mas também pequenos paraísos: http://bit.ly/2AhbVjq
Capítulo a capítulo, os cômodos de uma casa ganham vida. A porta de espiar, a sala da família, o porão das aflições, o pátio cotidiano. Cada espaço revela suas ambiguidades e seus mistérios, desvelando “clarões de ternura e riso” nos desvãos da memória. No espelho, Pandora sacode os cabelos e devolve as indagações da menina que, em pleno espanto, investiga o que move as pessoas e a arquitetura ao redor.
Em "A casa inventada", Lya Luft se confronta, mais uma vez, com os temas que marcam sua carreira de mais de 50 anos na literatura. As contradições da vida humana, a infância e a morte, a família como motor de liberdade e de opressão. O espaço da casa, cotidiano, cresce com as metamorfoses secretas de quem o habita. É, como a caixa guardada pela personagem mitológica, um repositório de desejos, euforias, alegrias e sombras. Ao abri-la, Lya Luft mostra, mais uma vez, sua habilidade em construir uma prosa poética desconcertante, singular.
A obra, que chega às livrarias em novembro, é publicada em um momento triste da vida da autora: Lya perdeu um de seus três filhos, André Luft, no início deste mês. Num dos trechos do livro, numa triste coincidência, ela conta como a morte de um menino, vizinho seu, e o lamento de seu pai a marcaram pelo resto da vida. Em entrevista concedida no fim de outubro ao blog da editora, a autora falou sobre como construímos as casas das nossas vidas, com “tropeços, grandes pedras, terremotos, mas também pequenos paraísos”.
TRECHO:
Os porões da alma podem esconder esse grande enigma, o desaparecimento, o nunca mais, escondendo pessoas amadas em suas largas mangas.
— Pandora, Pandora, por que temos de morrer?
Nessas horas ela desvia os olhos, se pudesse escapava para dentro de um espelho, mas desta vez eu seguro firme:
— Me diz, me explica, me fala!!! Me consola! Ou me condena!!!
Ela resiste, ela quer ser livre, então eu a deixo ir.
Não sei se ela sabe a resposta. Nem adivinho se ela entende o que se move, sombra e apelo, naquele lugar de que pouco falamos: eu deveria criar uma Sala dos Mortos?
As mortes se multiplicam para quase todos como amargos, tristes frutos: amigos, amigas, parentes, velhos, jovens, pais, parceiro ou parceira de vida.
A primeira morte de que tomei notícia, morte mais tremenda, mais pungente, foi a de uma criança que avistei poucas vezes, há tanto tempo, e cujo nome nem recordo. É a primeira de que me lembro, e pela qual, sem nada presenciar, eu sofri: meus pais procuravam me proteger de todo o medo, e perigo, e mal.
Numa casa vizinha, um homem imenso, muito gordo, simpático, bonachão, e sua mulher, depois de muitos anos, tiveram um filhinho. O menino devia ter dois anos, mal caminhava naquele trotezinho dos bebês. Muito louro, o pai o chamava “meu patinho”.
A criança adoeceu, ou caiu da escada da casa, não sei mais. Lembro comentários confusos. Sei que morreu, e durante toda a noite, toda a madrugada, eu ouvia de meu quarto de menina os desesperados gritos do pai chamando o filhinho morto. Gritos, berros, urros. E agarrava-se a ele, contaram depois, e o mantinha firmemente seguro em seus braços fortes, e não deixava que o levassem. E assim foi a noite toda, até que um médico amigo lhe deu uma injeção, e ele afrouxou o abraço, cedeu, deitou-se, dormiu — e ficou para sempre órfão do seu menininho.
Foi o mais terrível lamento que até ali eu tinha escutado: e ainda hoje, se apuro o ouvido em alguma madrugada, ele continua lá, como tudo continua enquanto dele tivermos lembrança.
SOBRE A AUTORA: Lya Luft publicou seu primeiro romance, As parceiras, em 1980, seguido por A asa esquerda do anjo (1981), Reunião de família (1982), Mulher no palco (1984), O quarto fechado (1984), Exílio (1987), O lado fatal (1988, relançado em 2011), A sentinela (1994), O rio do meio (1996, prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes), Secreta mirada (1997), O ponto cego (1999), Histórias do tempo (2000), Mar de dentro (2002), Perdas & ganhos (2003), Pensar é transgredir (2004) e, no mesmo ano, Histórias de Bruxa Boa, sua estreia na literatura infantil, tema que retomaria em 2007 com A volta da Bruxa Boa. Em 2005, publicou o volume de poesia Para não dizer adeus e, em 2006, a reunião de crônicas Em outras palavras. Em 2008, lançou o livro de contos O silêncio dos amantes. Em 2009, voltou à literatura infantil, publicando com o filho, Eduardo Luft, Criança pensa, seguindo a linha de pensamento que busca estimular na infância e na adolescência a observação, a análise e o discernimento. Lançou, em seguida, os livros Múltipla escolha (2010) e A riqueza do mundo (2011). Em 2012, voltou ao romance com O tigre na sombra, vencedor do Prêmio da Academia Brasileira de Letras em 2013. Em 2014, lançou o livro O tempo é um rio que corre e, em 2015, Paisagem brasileira. Formada em letras anglo-germânicas e com mestrados em Literatura Brasileira e Linguística Aplicada, Lya foi professora titular de Linguística de 1970 a 1980. Depois disso, dedicou-se unicamente à tradução e à sua literatura. Viúva do linguista Celso Pedro Luft, com que teve os filhos Susana (médica), André (agrônomo) e Eduardo (filósofo), reside em Porto Alegre com seu companheiro Vicente Britto Pereira, engenheiro e escritor.
Livro: A Casa Inventada
Autora: Lya Luft
Páginas: 112
Editora: Record / Grupo Editorial Record
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