"...escrever é uma relação quase religiosa de me reconectar com o desconhecido, com a minha natureza e com uma natureza cósmica",
Maria Casadevall
Capa da revista Glamour de setembro, a atriz Maria Casadevall, sucesso como a Rimena da supersérie "Os Dias Eram Assim", falou à publicação sobre militância, fama, rótulos, drogas, aborto, feminismo e outros assuntos. Ela tem 30 anos e o título de uma das atrizes mais intensas de seu tempo – não à toa, importante frisar. Questão de entrega, é de se jogar sem medo: na vida, nas telas ou nas fotos que ilustram essa matéria. Confira trechos da entrevista, que pode ser vista na Glamour desse mês, já nas bancas de todo o Brasil. O editorial foi feito nas ruas de Paris, onde ela esteve para assistir ao desfile da grife Dior. As fotos são de Gleeson Paulino.
Mas quando você decidiu que seria atriz?
Esse momento nunca existiu, o que existiu foi uma urgência, uma necessidade imensa de transfigurar a minha realidade, de externar esse jeito particular que tenho de ver a vida. A primeira maneira que encontrei de colocar isso tudo para fora foi escrevendo. Por isso também cursei jornalismo. Gosto de escrever poesias, tenho alguns contos prontos e muitos pensamentos rabiscados. Mas vai além: escrever é uma relação quase religiosa de me reconectar com o desconhecido, com a minha natureza e com uma natureza cósmica.
Hoje a militância é uma quase obrigação?
Me lembro de ler uma entrevista da Clarice Lispector na qual ela dizia que sofria preconceito porque sua escrita não apresentava uma identidade política clara. Mas você quer militância maior do que a forma como ela olhava para o outro? Eu não me sinto na obrigação de assumir posições, embora tenha consciência do poder da minha opinião, uma vez que ela é pública. A minha única urgência, entretanto, é a de ser verdadeira. Na Os Satyros [Companhia teatral de SP] falamos muito disso, de respondermos às questões imediatas do nosso entorno de uma forma orgânica. A sede fica na praça Roosevelt, no Centro de São Paulo, local rodeado de putas, travestis, jovens, velhos, estudantes, traficantes… É impossível ignorar tudo o que está em nosso entorno, e nem queremos isso, então, absorvemos essas informações e as colocamos todas no palco. O resultado é verdadeiro, bonito e enriquecedor.
Ser observada te incomoda?
A fama nunca foi um objetivo. Nunca refleti sobre essa questão antes de alcançá-la. Eu escrevia e amava isso, mas não queria fazer da escrita um ofício, porque ela era desregrada, amadora para mim. Mas sempre tive uma relação muito familiar com o corpo e sabia que queria me manifestar artisticamente. E ainda tinha a voz, com quem até hoje tenho uma relação de amor e cuidado… O teatro era a solução, e ele aconteceu de forma natural. Sempre fui mais introvertida do que extrovertida. Os olhares não me incomodam, o que me incomoda é o sequestro da minha condição de observadora e da condição de observada. Mas essa não é uma regra. Ainda reconquisto meu lugar do anonimato no centro de São Paulo, por exemplo. Ali eu ando com meu cabelo bagunçado, vou à banca de chinelo e pijama, caminho sem disfarce. E, quer saber? Ninguém me olha.
Em "Os Dias Eram Assim", supersérie da Globo, você vive a Rimena, médica humanitária que se envolve com o cunhado. Sua personagem foi criticada por isso. É uma visão machista do público?
Existe machismo, mas também existe hipocrisia. Porque muitas vezes não há uma análise mais profunda dos motivos que a levaram a isso. O público, por vezes, ainda pode ser muito julgador. É um pouco também sobre rotular as pessoas, personagens ou não.
O rótulo de atriz-cabeça te incomoda?
Qualquer rótulo me incomoda. E o de atriz-cabeça não foi o primeiro. Antes teve o de namoradinha do galã [Caio Castro], namoro que eu nunca assumi. O “não” em relação a um homem começou de forma orgânica, só depois entendi que era porque eu não queria compactuar jamais com esse pensamento machista de que a minha existência depende de uma relação amorosa masculina. Então, se você me perguntar se estou namorando, não vou responder. Eu e todas as mulheres temos e somos muito mais do que isso. O segundo rótulo foi o de gay, porque saiu uma foto minha dando um selinho em uma amiga. O que eu respondi? Que tanto faz, que não importa, porque, de fato, não importa. Depois, caí na caixa da atriz hipster, da atriz-maluca, da atriz-cabeça… Podem até tentar me enquadrar, mas eu não me coloco em caixa alguma. É mais ou menos como aquela música dos Novos Baianos: “vou mostrando como sou, e vou sendo como posso, jogando meu corpo no mundo, andando por todos os cantos”.
Em que momento você se entendeu feminista?
Nunca tive um incentivo político ou intelectual dentro de casa. Na época da ditadura militar, minha mãe, aos 19 anos, lutava contra um câncer seriíssimo. Ela sobreviveu, mas, obviamente, as questões dela eram outras. Ainda jovem, comecei a sentir essa carência intelectual e fui buscar respostas na faculdade e nos livros que devorava. Mas leva tempo até absorver informação e transformá-la em opinião. Em 2013, com as manifestações explodindo nas ruas de São Paulo, essa tomada de consciência política me fez pensar sobre questões que antes eu julgava serem apenas minhas. Me entendi feminista ao compreender que as minhas questões eram questões de outras, quando assimilei que somos treinadas a reproduzir valores de uma sociedade machista e sexista. Tomei gosto pela discussão, por trabalhar o pensamento além da assimilação de dados. É fácil entrar numa bolha de iguais onde se reproduz um mesmo pensamento. O excesso de informação pode acabar desinformando. Por tudo isso, a importância de um trabalho de base, de se inserir em um contexto político e social e, aí sim, entender onde nos encontramos.
Você é a favor do aborto? E sobre a descriminalização das drogas, qual a sua opinião?
Nunca fiz, mas faria. Sou totalmente a favor, por uma legislação menos machista e conservadora, que valorize a vida da mulher, principalmente a mulher negra da periferia, que opta pela interrupção da gravidez, garantindo o acesso legal e o acompanhamento médico apropriado para isso. Por uma legislação que reconheça os direitos da mulher sobre seu próprio corpo e respeite as escolhas feitas por ela. Sobre a descriminalização das drogas, sou a favor de um amplo debate que não defenda interesses nem privilégios, que discuta efetivamente a possibilidade de regulamentação e controle sobre produção e venda e que leve em consideração as condutas desiguais dos agentes de repressão em relação ao porte, uso e tráfico de drogas de acordo com raça e condição social.
Você tem medo de envelhecer?
Outro dia estava conversando com a Cássia Kiss [sua colega de cena em "Os Dias Eram Assim"] sobre isso. A primeira vez que a olhei nos olhos fiquei arrebatada com a beleza do tempo que ela carregava, parecia um bicho. Além de ser uma mulher incrivelmente bonita, ela carrega todo um discurso com ela. Muita gente diz que a vida passa rápido demais. Discordo. O que acontece é que a maioria das pessoas passa por ela de forma inconsciente. Eu sei de cada coisa ao meu redor... Sei que aquela flor ali fora está murchando, sei que você pediu um mate igual ao meu e que esse cheiro de café vem da xícara semivazia. Gosto de reparar, presto atenção. Outro dia me perguntaram quais superpoderes eu teria se pudesse. O primeiro seria ser invisível, só para poder observar tudo de perto. Mesmo sem tê-la, já me pego espionando conversas triviais. O segundo seria a capacidade da memória absoluta, para resgatar tudo de qualquer momento da minha vida.
Essa atriz é muito linda, por dentro e por fora.
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