quinta-feira, 26 de maio de 2016

.: Capitu foi fiel a si mesma quando traiu "Dom Casmurro"


Por Helder Miranda
Artigo publicado originalmente na revista "Mirante" em outubro de 2015
               
Talvez o meu mundo se divida entre antes e depois de Machado de Assis, antes e depois de “Dom Casmurro” e, principalmente, antes e depois de "Capitu". E essa história me faz pensar se existe, mesmo, traição, se a única fidelidade é a que devemos a nós mesmos. O escritor Machado de Assis, rejeitado por mim na infância e na adolescência (culpa das leituras obrigatórias das escolas) surge como um furacão em minha vida e me faz rever conceitos.

Antes, pensava eu ser Capitu inocente. Mas de quê, se não deveria existir culpa quando a finalidade é o amor? Tantos julgamentos de Capitu, nas academias e nas universidades, depois dessa ruptura de ideias, fizeram com o que eu pensasse o quanto somos machistas, sexistas. Nesses julgamentos, ela é a ré. O acusador é absolvido de todo o terrorismo psicológico que impôs, mesmo que velado.

Porque a história não é sobre Bentinho ou como ele se tornou “Dom Casmurro”, é sobre Capitu e a dúvida sobre a fidelidade dela. Passei muito tempo atrás de uma pista, de alguma prova de que a personagem feminina mais marcante de Machado de Assis tivesse traído Bentinho – e, acredite, ela fez isso – mas não encontrei nada que, de fato, fizesse com que aparecesse algum indício de rompimento, de ela com ela mesmo, um buquê jogado que fosse, a aliança deixada de lado... nada, enfim.

Ela traiu enquanto buscava em Escobar, o amigo do marido dela, algum resquício daquele Bentinho “fracote” da adolescência, apaixonante e apaixonado, do início da narrativa. Amava aquele Bentinho covarde, sedento por agradar a tudo e a todos, e que não se cansa de dizer “não” a si mesmo, e a maior prova disso é ter aceitado ir ao convento. Bentinho nunca sequer gostou Capitu, e a prova viva disso é que prefere se indispor com ela a qualquer outra pessoa.

Bentinho repete o “não” a si mesmo quando rompe com Capitu, mesmo querendo que ela não vá embora, e é fadado a obsessões inúteis. Porque, sabendo ou não se Capitu teve um caso com Escobar, Bentinho jamais teria o poder de mudar o que foi feito. Permanecer com ela, no entanto, teria mudado o seu final. Um apontamento que não deixa de ser uma tese machista, pois ignora o direito de escolha de Capitu.

Se ela quisesse continuar com "Dom Casmurro", porque na maturidade ele já não era mais o Bentinho que ela havia conhecido, era um estranho, um completo desconhecido... Mas, se mesmo assim quisesse continuar com este homem, ela teria armado um jeito de ter ficado com ele, assim como fez para impedir o rapaz de se tornar seminarista, bem como agiu para conquistar a mãe dele durante a ausência desse jovem durante alguns anos. Capitu viu que o jogo estava perdido, não costumava chutar cachorro morto, nem brigar por migalhas.

O Bentinho do passado, divertido, por vezes patético e condicionado a agir como alguém sedento pelo amor de uma mulher a vida inteira, cede espaço ao homem de meia-idade, Dom Casmurro, chato, obsessivo, repetitivo e completamente devotado à ideia do que se espera dele: um homem apaixonado por uma mulher e, assumidamente, à sua sombra, odiando-a com a intensidade dos invejosos por acreditar que a ama, mas que na verdade a despreza. Dom Casmurro tem profunda repulsa de mulheres e ama veladamente a quem não pode, Escobar. Ama tanto que rejeita o único filho, que pode ser dele, por pensar ser do outro.

É uma característica machadiana escrever grandes mulheres, e Capitu ofusca todas as outras. Ela amava Bentinho, era esperta e, com o temperamento forte que transparecia, não permaneceria ao lado de um homem se não houvesse amor. Capitu amou Bentinho e teve compaixão por "Dom Casmurro", mas ainda assim o amava e nutria alguma esperança de que ele voltasse a ser o que era.

Mas, buscando alguma aproximação, um mínimo resquício que seja do que o marido foi no passado, ela se entregou ao amigo dele que, leal aos dois, levou este segredo para o túmulo. Bentinho diz, ao longo do romance, que Capitu era uma mulher dissimulada. Mas só se enxerga no outro o que realmente se é. O resto são suposições ou, como diria William Shakespeare em “Hamlet”, é silêncio.


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