Por Heloisa Schurmann
Em fevereiro de 2016
Quase todos nós, românticos, caminhando na beira da praia, sonhamos encontrar uma garrafa com mensagem. E, com certeza, todos nós, velejadores, algum dia, já jogamos uma garrafa ao mar com uma mensagem.
Foi assim que uma garrafa jogada ao mar, há 22 anos, nos trouxe a uma ilha longínqua em Papua Nova Guiné.
Em 1993, na travessia de Vanuatu para o Estreito de Torres na Austrália, Vilfredo e eu jogamos uma garrada com uma mensagem no mar. O texto, escrito em inglês, contava quem éramos e sobre nossa viagem de volta ao mundo. Pedíamos que a pessoa que encontrasse a mensagem nos enviasse uma carta, dizendo onde a encontrou e seu endereço. A garrafa tinha a missão de encontrar um novo amigo.
Quando chegamos no Brasil, em 1994, depois de nossa viagem ao redor do mundo, de 10 anos no mar, recebemos uma carta de Boitau Jonathan, um jovem de 17 anos, de Papua Nova Guiné. Ele havia encontrado a garrafa um mês depois que a jogamos no mar. Ele contava que estudava na cidade, longe de sua ilha natal, e estava terminando o curso secundário. Ele nos passou seu endereço e fez um pedido: se podíamos lhe enviar um relógio ou uma câmera ou um rádio.
Respondi a carta dizendo que, talvez, um dia nós iríamos a seu país. A única lembrança que pudemos enviar, naquele momento, foi uma camiseta de nossa viagem.
Navegando na Expedição Oriente, nossa rota nos levou rumo a Papua Nova Guiné. Decidimos ir em busca de nosso amigo desconhecido. Como encontra-lo? Pesquisamos o lugar. Haviam poucas informações, mas a carta náutica mostrava a ilha. Mudamos nossa rota rumo ao atol de Yanaba.
Fomos em busca de Jonathan. Será que estaria em sua ilha ainda? Com 40 anos, ele podia estar morando em outra vila, cidade ou ilha.
Depois de um ano e três meses, desde a partida do Brasil, chegamos a Yanaba. Assim que entramos no atol, uma dúzia de canoas se aproximaram e cercaram o veleiro Kat. Parecia uma cena do filme (do Bounty.). Frágeis, feitas de madeira, com crianças remando e, algumas, com adultos. Curiosos e sorrindo nos disseram “alô” em inglês.
Contamos que éramos do Brasil e logo perguntamos por Boitau Jonathan.
Surpresos de que conhecíamos o conselheiro da ilha – um cargo importante, pois é a pessoa de confiança do chefe – os nativos nas canoas nos convidaram para ir em terra.
Depois de 22 anos, finalmente conhecemos o jovem que respondeu nossa mensagem na garrafa.
A garrafa navegou 794 milhas em 30 dias e "andou" uma média de 25 milhas por dia; foi jogada no mar, no dia 15/08/93, entre Vanuatu e Torres estreito Austrália (Sº15.09’ / E164º03’), e foi encontrada em 16/09, no atol de Yanaba.
Quem encontrou, na praia, a garrafa foi Paul, irmão de Jonathan, mas, como na ilha ninguém sabia ler, guardaram a mensagem até as férias de Natal, quando ele veio para casa. A história da garrafinha foi uma alegria em toda a vila com 300 habitantes, dos quais, 120 crianças. Com um respeito muito grande pelo mar, eles consideraram nossa visita como um milagre que aconteceu em sua ilha: “Vocês vieram de tão longe para nos conhecer”?
Jonathan visitou o veleiro Kat e, emocionado, recebeu o relógio que lhe trouxemos de presente. Ele não podia acreditar. Feliz, nos contou sua história.
Ele foi o primeiro nativo de sua ilha que saiu para estudar na capital da província. Estudioso, queria progredir para trazer melhor educação para sua tribo. Hoje, depois de muito batalhar, ele conseguiu trazer para a ilha a escola elementar completa (até os 15 anos).
Morar na cidade, que é longe, custa caro e a maioria dos pais não tem recursos para manter os filhos. Poucos acabam frequentando o curso secundário. Hoje, casado e pai de três filhos, ele é um exemplo para os jovens, pois o estudo abriu suas portas e o levou ao cargo de conselheiro do chefe.
Jonathan abriu as portas da vila para nós. Os moradores, que vivem como seus ancestrais, em casas de palha, dormem em esteiras ou direto na areia, nos receberam com muito carinho em suas casas. Compartilharam suas tradições, fizeram apresentação de dança, contaram suas tradições e costumes. Para ajudá-los, fizemos uma distribuição de alimentos, roupas e deixamos um estojo de primeiros socorros com ataduras e bandaids.
A ilha não tem eletricidade, oito casas têm painéis solares, a água para o dia a dia é recolhida da chuva, não há hospital, lojas ou mercado. A dieta dos moradores é a base de peixe, porcos, galinhas e o que plantam: mandioca, inhame, batata doce, fruta pão, bananas, cocos e limões.
A ilha pertence a um sistema de trocas milenar, o Kula, pelo qual seus bens básicos - como coco, bananas, peixe e cana de açúcar - são trocados por outros produtos que eles precisam. O escambo funciona porque eles constroem grandes canoas capazes de viajar milhares de milhas para trocar os produtos.
As crianças nascem todas na ilha e uma parteira se encarrega de assistir aos nascimentos dos bebês e de fazer chá de ervas para curar resfriados ou mal de barriga.
Durante nossa visita ao atol de Yanaba, as crianças tornaram o veleiro Kat em seu playground. Chegavam em canoas a vela ou a remo, brincavam, nadavam e pulavam da plataforma. Alguns trocavam suas frutas por roupas. Volta e meia, uma carinha sorridente aparecia na gaiuta do barco.
E Jermias, um senhor que mal falava inglês, me chamou e pediu a neta para traduzir o que ele queria dizer: “vocês vieram até aqui porque a garrafa com a mensagem era mágica. Porque vocês estão aqui, agora estamos unidos como amigos para sempre”.
Família Schurmann & Expedição Oriente
Primeira família a dar a volta ao mundo a bordo de um veleiro, a história da Família Schurmann ganha destaque a partir de 1984, quando o economista Vilfredo e a professora Heloísa decidiram abandonar a vida estável e confortável em terra firme e zarpar rumo aos mares e oceanos do planeta, acompanhados dos filhos pequenos: Wilhelm, na época, 7 anos, David, 10, e Pierre, 15. Três décadas depois, com algumas aventuras marítimas no meio e as crianças, agora, homens feitos e até mesmo pais de uma nova geração, a Família Schurmann volta a exercitar o desapego. Desde 21 de setembro de 2014, o veleiro Kat vem sendo a moradia dos Schurmann e a imensidão do mar, o destino da Expedição Oriente!
Com o apoio fundamental dos patrocinadores Estácio, HDI Seguros e Solvi, os velejadores percorrerão cerca de 30 mil milhas (o equivalente a quase 50 mil quilômetros), passando por quatro oceanos, cerca de 50 portos. Pela primeira vez, eles estiveram na Antártica e na Papua Nova Guiné e chegarão à República Popular da China, que fica a aproximadamente 17 mil quilômetros de distância do Brasil. O curioso é que as rotas das aventuras anteriores somadas ao roteiro da Expedição Oriente resultariam em 14 viagens da Família Schurmann à China. Se o roteiro reserva lugares desconhecidos, a nova travessia também marca a estreia da terceira geração a bordo: o jovem Emmanuel integra a tripulação Schurmann, formada pelo casal Vilfredo e Heloísa e os filhos Wilhem, David (líder da tripulação de terra) e Pierre – os dois últimos, em alguns trechos da aventura. Kat, a filha caçula, falecida em 2006, está simbolicamente presente ao inspirar o nome do novo veleiro da família, neste projeto que envolve inovação, tecnologia e sustentabilidade. Com a Expedição Oriente, a Família Schurmann veleja inspirada em polêmicas teorias que defendem os chineses como os primeiros grandes navegadores e descobridores do mundo. Ou seja, os primeiros aventureiros a contornarem o globo.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
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