Por: Antonio Esteves
“Esta é uma história de livros e não de mistérios quotidianos”
“Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”. Assim termina o romance "O nome da rosa", do pensador italiano Umberto Eco (1932-2016). Em tempos de informações globalizadas e rápidas em um minuto pode-se descobrir que essa frase em latim diz, em nossa língua, que a rosa antiga apenas permanece no nome e que, na verdade, nada temos além dos nomes. Podemos até mesmo descobrir que se trata de um verso de um poeta medieval modificado pelo autor do romance: o original não falava da rosa, mas de Roma. E como o próprio Eco esclarece mais tarde, se refere às glorias passageiras. Tudo acaba de algum modo esvaindo-se no nada. É o bíblico pó que ao pó retorna.
Desde sábado, Umberto Eco é apenas um nome. Do escritor, sem dúvida o mais ilustre representante da cultura italiana do último século, resta apenas um nome e uma biblioteca. Uma coleção de livros escritos com uma constância quase frenética, ao longo de mais de meio século, em várias áreas do conhecimento, da filosofia à linguística, da literatura à semiótica. A maioria deles está traduzida ao português, disponível em qualquer livraria ou biblioteca brasileira, país que ele visitou várias vezes. Um pensador que tendo iniciado seus estudos na filosofia medieval, sempre esteve preocupado com seu tempo, sendo um dos pioneiros em discutir a cultura de massa e suas relações com a chamada cultura erudita. No campo do ensaio, Apocalípticos e integrados (1964) é leitura básica para os interessados em discutir as relações entre a cultura e os meios de comunicação.
Já pensador de renome, em 1980, Eco decidiu colocar em prática suas ideias sobre a cultura de massa e escreveu seu primeiro romance, O nome da rosa, que já nasceu best seller, como ele tinha previsto. Escreveu, em seguida, mais seis romances, o último publicado em 2015. Traduzido a mais de trinta línguas, vendeu milhões de exemplares, transformando-se ainda em um dos livros mais estudados da literatura italiana.
A pergunta que se costuma fazer é o que teria feito com que um livro de mais de quinhentas páginas, com ação na Idade Média, cheio de citações em latim e discussões teológicas tenha se tornado tão popular. Só no Brasil, país que não prima pela cultura letrada nem pelo exercício da leitura, teria vendido mais de quinhentos mil exemplares. Pode ser que o fato de ser uma mistura de romance histórico, narrativa policial e thriller cultural tenha prendido seus leitores. Também pode ser que o filme homônimo de Jean Jacques Annaud, de 1986, estrelado, entre outros, por Sean Connery, que segue fielmente a ação do livro, tenha alavancado sua vendagem. Ou vice-versa, demonstrando aquilo que o próprio Eco discutia em seus ensaios. Nenhuma resposta é satisfatória.
Talvez o fato de que o romance seja uma espécie de máquina de interpretações explique o sucesso do livro. O próprio Eco já alertava que aquela era uma história de livros e não de mistérios quotidianos, embora estes prendam a atenção do leitor. Para ele, os livros falam sempre de outros livros, e das ideias que esses livros trazem. Ele acreditava na capacidade de diálogo entre o livro e aqueles livros escritos antes dele que acabam por aparecer por trás de suas páginas. Também acreditava que o diálogo entre o autor e o leitor se faz através da leitura. Para ele um romance bem escrito sempre quer revelar o leitor a si próprio. Pela leitura, o leitor se torna diferente, aprende algo sobre o mundo, sobre a linguagem, e principalmente sobre si próprio.
Um romance com ação no passado pode e deve ser uma obra que faça seu leitor identificar no passado as causas do que aconteceu depois e entender o processo pelo qual essas causas foram lentamente produzindo seus efeitos. Mas ao mesmo tempo, pode levá-lo a se divertir, com o jogo de máscaras apresentado pelo escritor. Isso pode explicar porque milhões de leitores de O nome da rosa tenham rido e/ou chorado com as aventuras do jovem Adso de Melk que acompanha fielmente seu mestre, o frade franciscano detetive Guilherme de Baskerville, que trata de desvendar os crimes ocorridos durante uma semana numa abadia medieval. Enquanto os teólogos estão discutindo o amor divino, Adso está preocupado com o amor carnal. Questões que estão no cerne do pensamento de qualquer ser humano normal.
Afinal de contas, quem nunca se perguntou o que restará de nossas glórias mundanas e de nossos amores transitórios?
Antonio Esteves é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis.
“Esta é uma história de livros e não de mistérios quotidianos”
“Stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus”. Assim termina o romance "O nome da rosa", do pensador italiano Umberto Eco (1932-2016). Em tempos de informações globalizadas e rápidas em um minuto pode-se descobrir que essa frase em latim diz, em nossa língua, que a rosa antiga apenas permanece no nome e que, na verdade, nada temos além dos nomes. Podemos até mesmo descobrir que se trata de um verso de um poeta medieval modificado pelo autor do romance: o original não falava da rosa, mas de Roma. E como o próprio Eco esclarece mais tarde, se refere às glorias passageiras. Tudo acaba de algum modo esvaindo-se no nada. É o bíblico pó que ao pó retorna.
Desde sábado, Umberto Eco é apenas um nome. Do escritor, sem dúvida o mais ilustre representante da cultura italiana do último século, resta apenas um nome e uma biblioteca. Uma coleção de livros escritos com uma constância quase frenética, ao longo de mais de meio século, em várias áreas do conhecimento, da filosofia à linguística, da literatura à semiótica. A maioria deles está traduzida ao português, disponível em qualquer livraria ou biblioteca brasileira, país que ele visitou várias vezes. Um pensador que tendo iniciado seus estudos na filosofia medieval, sempre esteve preocupado com seu tempo, sendo um dos pioneiros em discutir a cultura de massa e suas relações com a chamada cultura erudita. No campo do ensaio, Apocalípticos e integrados (1964) é leitura básica para os interessados em discutir as relações entre a cultura e os meios de comunicação.
Já pensador de renome, em 1980, Eco decidiu colocar em prática suas ideias sobre a cultura de massa e escreveu seu primeiro romance, O nome da rosa, que já nasceu best seller, como ele tinha previsto. Escreveu, em seguida, mais seis romances, o último publicado em 2015. Traduzido a mais de trinta línguas, vendeu milhões de exemplares, transformando-se ainda em um dos livros mais estudados da literatura italiana.
A pergunta que se costuma fazer é o que teria feito com que um livro de mais de quinhentas páginas, com ação na Idade Média, cheio de citações em latim e discussões teológicas tenha se tornado tão popular. Só no Brasil, país que não prima pela cultura letrada nem pelo exercício da leitura, teria vendido mais de quinhentos mil exemplares. Pode ser que o fato de ser uma mistura de romance histórico, narrativa policial e thriller cultural tenha prendido seus leitores. Também pode ser que o filme homônimo de Jean Jacques Annaud, de 1986, estrelado, entre outros, por Sean Connery, que segue fielmente a ação do livro, tenha alavancado sua vendagem. Ou vice-versa, demonstrando aquilo que o próprio Eco discutia em seus ensaios. Nenhuma resposta é satisfatória.
Talvez o fato de que o romance seja uma espécie de máquina de interpretações explique o sucesso do livro. O próprio Eco já alertava que aquela era uma história de livros e não de mistérios quotidianos, embora estes prendam a atenção do leitor. Para ele, os livros falam sempre de outros livros, e das ideias que esses livros trazem. Ele acreditava na capacidade de diálogo entre o livro e aqueles livros escritos antes dele que acabam por aparecer por trás de suas páginas. Também acreditava que o diálogo entre o autor e o leitor se faz através da leitura. Para ele um romance bem escrito sempre quer revelar o leitor a si próprio. Pela leitura, o leitor se torna diferente, aprende algo sobre o mundo, sobre a linguagem, e principalmente sobre si próprio.
Um romance com ação no passado pode e deve ser uma obra que faça seu leitor identificar no passado as causas do que aconteceu depois e entender o processo pelo qual essas causas foram lentamente produzindo seus efeitos. Mas ao mesmo tempo, pode levá-lo a se divertir, com o jogo de máscaras apresentado pelo escritor. Isso pode explicar porque milhões de leitores de O nome da rosa tenham rido e/ou chorado com as aventuras do jovem Adso de Melk que acompanha fielmente seu mestre, o frade franciscano detetive Guilherme de Baskerville, que trata de desvendar os crimes ocorridos durante uma semana numa abadia medieval. Enquanto os teólogos estão discutindo o amor divino, Adso está preocupado com o amor carnal. Questões que estão no cerne do pensamento de qualquer ser humano normal.
Afinal de contas, quem nunca se perguntou o que restará de nossas glórias mundanas e de nossos amores transitórios?
Antonio Esteves é professor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Assis.
Muito bom seu texto, Esteves. Destaca de forma sensível e inteligente a grande contribuição dessa grande personalidade do século XX. Um homem que conseguia ver o seu tempo com uma visão aquém e além dos limites que a realidade presencial nos impõe de forma natural.
ResponderExcluirMuito bom seu texto, Esteves, que vejo como uma homenagem sensível e inteligente a essa grande personalidade universal de nosso tempo, tão justamente admirada. Ele conseguia ver seu tempo sem os limites naturais que nos são impostos pelas nossas contingências do presente, viajando aquém e além para enaltecer o perene.
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