Em julho de 2015
Nessa São Paulo que tão poucas opções de lazer a céu aberto oferece, eis que surge uma nova oportunidade de exercer uma prazerosa atividade física, até mesmo em plena hora do rush: andar a pé através das semidesertas ciclovias construídas pela Prefeitura que entrecortam caoticamente diversos bairros da cidade.
Já que as negligenciadas calçadas, por não renderem votos nem exposição midiática, tornam-se a cada dia mais esburacadas e perigosas, os pedestres dispõem agora de uma nova alternativa segura para exercerem condignamente sua locomoção pedonal: os leitos das ciclovias (ou “ciclovazias” como carinhosamente as apelidei).
Eu já aderi à novidade. Alheio ao corre-corre alucinante que acomete o resto da urbe, posso agora tranquilamente por essas vias caminhar sem risco de ser atropelado. Consigo assim melhor observar as construções peculiares, as nuances estéticas e a beleza arquitetônica ao longo de ruas e alamedas dessa megalópole de habitantes desinteressados e políticos interesseiros.
Já que o grandiloquente programa municipal de dotar a cidade de 400 quilômetros de vias exclusivas para bicicletas só terá utilização significativa dentro de uns 50 anos, até lá as faixas pavimentadas poderiam ser alternativamente usadas com maior proveito para resgatar o prazer de exercer longas caminhadas, prática lúdica e saudável a quem antes só tinha o hábito de se locomover com o uso de rodas (sejam quatro ou duas). E com direito ainda a trazer uma companhia para papear e um cão a tiracolo.
Tornou-se possível passear serenamente em meio à avalancha de carros cujos motoristas, espremidos nas pistas a que foram confinados, esbravejam por circularem num ritmo mais lento do que eu a pé. Obcecados de rancor, não entendem a repentina primazia conferida à bicicleta, devidamente doutrinada e convertida em instrumento da luta de classes contra a burguesia motorizada conservadora.
Assim, sem maiores delongas, estudos ou consultas a cidade foi repentinamente inundada com ciclofaixas pra todo lado gerando um inesperado efeito secundário: o vazio asfáltico. São quilômetros e quilômetros de pavimento de baixa qualidade, espalhafatosamente demarcado sobre os quais todavia podemos caminhar sossegados por horas a fio, à margem do frenesi de veículos carburantes alucinados que passam ao lado exalando gás carbônico e ressentimento.
Vez ou outra, topo com algum robusto ciclista desgarrado que, com a cordialidade que lhe é peculiar, dirige-me um “sai da frente, coroa filho da p(*)”. Faz parte... Indiferente ao impropério, fecho serenamente os olhos, blindo minha mente e retomo, sem estresse, os balizados caminhos da verdade interior que me conduzem ao Nirvana, passando pela Barra Funda e pela Cracolândia.
Alguns podem fazer falso juízo de minhas palavras, considerando que estou usando de sarcasmo para boicotar o mirabolante projeto da Prefeitura de converter por decreto São Paulo em Amsterdam. Nada mais falso. Como ambientalista sempre fui contra a cultura automotiva e partidário de iniciativas que incrementem o transporte alternativo, sobretudo se acompanhadas de bom senso, seriedade, planejamento, capricho e beleza estética.
A propósito: gostaria de sugerir ao alcaide que substituísse aquelas horrorosas faixas vermelho-PT por despolitizados e serenos gramados verdes. Por que não? Além de embelezar e humanizar a cidade, essa medida apartidária, além e aumentar a área com cobertura vegetal, iria permitir o escoamento das águas das chuvas que tantas enchentes provocam, essas sim um problemão que prefeito algum tem competência para resolver. Seria uma forma decente de expandir o alcance do projeto que, da maneira em que está, tem atendido a um número limitado de paulistanos.
É verdade que essa mudança, em princípio, dificultaria a locomoção das bicicletas e levantaria a fúria dos aguerridos e organizados cicloativistas que, mesmo ecológicos, não abrem mão do asfalto. Acostumados a fazer alarde desproporcional contra toda medida que não atende a suas demandas, certamente iriam perfilar uma tropa de choque com suas turbinadas bikes em frente ao MASP e bloquear todas as vias (e ciclovias) da Paulista, expediente reiteradamente utilizado pelas minorias barulhentas para impor sua vontade à maioria silenciosa. Porém o tráfego automotivo piorou tanto após a construção das ciclofaixas, que os conformados e entorpecidos motoristas de autos sequer iriam notar os efeitos de mais um protesto, resignados que estão a pagar o pato por suas execráveis máquinas poluentes. Nem buzinar ousam mais. Resignaram-se a assumir o papel dos vilões pela cidade emperrada. Nem cabe lançar mais um ônus a esses infelizes, ludibriados pelo governo que lhes dá crédito subsidiado para adquirirem seus sonhados veículos, ao mesmo tempo em que os impede de trafegá-los.
Quanto aos que, por enquanto, não se entusiasmaram com o revolucionário projeto de mobilidade improvisado pelo visionário prefeito e teimosamente se recusam a colaborar, tirando suas bikes de casa e colocando-as civicamente nas discrepantes faixas para elas destinadas, proponho que delas façam um uso mais recreativo e menos controverso.
Eu, por exemplo, ao invés de ficar vociferando inúteis brados de indignação contra as eleitoreiras medidas dos governantes, aproveito o que elas podem oferecer de melhor. Enquanto milhões ficam travados no trânsito, amaldiçoando inutilmente as autoridades, passeio descontraído a pé e ainda melhoro minha condição física e mental. Caminho feliz por horas e horas pelas “ciclovazias” sem ser importunado por carros, motos, ônibus e... claro, pelas improváveis bicicletas.
As magrelas, pobres coitadas, indiferentes à polêmica que se criou em torno de seu uso e às complexas injunções sobre mobilidade urbana e mudança de paradigma das grandes metrópoles, repousam inocentes nos apartamentos e abrigos de onde só saem mesmo para passear com seus donos nos domingos ensolarados, quando desfilam felizes pela praia da Avenida Paulista.
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