Em maio de 2015
“Ah, se a juventude que esta brisa canta/ ficasse aqui comigo mais um pouco/ Eu poderia esquecer a dor/ De ser tão só, para ser um sonho”. Os versos da música “Eu e a brisa”, de Johnny Alf, embalaram o romance de Dona Flor e Vadinho, na minissérie “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1998), reapresentada na última semana numa nova roupagem para o especial de 50 anos da Rede Globo. Apesar da versão mutilada, já que não é nada fácil transformar 20 capítulos em dois episódios, sempre é bom rever Dona Flor.
Gosto tanto desta trama que já assisti à versão inédita e todas as reprises da minissérie, fui ver a peça há alguns anos, vi e revi o filme, assim como já fiz a leitura do livro que originou todas as outras produções. E por mais de uma vez.
Eu, particularmente, acredito que Dona Flor é a obra mais complexa de Jorge Amado. Defendo esta ideia pelo conflito sentimental em que vive nossa protagonista. A trama, em si, poderia ser comparada a tantas similares, se não fosse o tempero baiano que Amado coloca para conduzir a narrativa. Característica mantida em todas as versões.
Ao entrar na casa de Flor, nós, todos nós, sentimos que estamos na sala de alguém bem próximo. Seja no livro, filme, minissérie ou peça. É só tirar os sapatos para não sujar o assoalho encerado e pedir um copo de água fresca, do filtro de barro, para prosear com Flor. Ela adiou as aulas da sua escola de culinária “Sabor e Arte”, que funciona em sua sala, para nos receber. E preparou moqueca de siri mole, banhada no azeite de dendê, e arroz fresquinho para o almoço. De sobremesa, bolo de puba.
E nossa professora de culinária tem uma dúvida que abre o livro e também seu coração: por que o paladar humano precisa do doce e do salgado? Por que ela, Florípedes Paiva Madureira (ou seria Dona Flor dos Guimarães?) precisa dos dois maridos? Um coração pode se dividir entre dois amores?
Flor vive uma tórrida paixão com Vadinho. Tímida, porém sensual, ela se envolve com o jeito alegre e sedutor do malandro, letrado em vadiagem, que ia ganhando seu corpo e coração sem pedir licença. A marca deste romance é a intensidade.
Vadinho leva Flor ao delírio. E ao altar. Mas também vai do 8 ao 8000. Nomeado como fiscal de jardins pela Prefeitura de Salvador, Vadinho batia ponto era nos bares, nos cassinos e nas camas das prostitutas. Dona Rosilda, sua sogra, era a maior inimiga porque o dinheiro que sustentava a casa era o que Flor ganhava na escola de culinária. E o juízo ele perdia a cada noite, a cada amante, a cada esquina. Se é que um dia teve!
Noites em claro esperando sua volta, bebedeira e, por vezes, agressões. Sofrimento e desilusão, mas, também, os melhores beijos, as piadas e a leveza da alegria, serenatas, sexo sem o mínimo de pudor, pele na pele, o coração a palpitar.
E, de repente, Vadinho morre. E no domingo de Carnaval. Na minissérie, falece no bloco afoxé Filhos de Gandhi. Nas outras versões, vestido de baiana ao farrear com os colegas. Em todas nas ladeiras da Bahia. Um mal súbito o leva a óbito.
Flor fica viúva muito jovem, ao despertar dos 30 anos. Sua vida era ele. A nossa protagonista, em vida, morre junto. Fica depressiva, mastigando a solidão em silêncio e lágrimas. Sente falta das carícias, da risada, das brincadeiras, das manias do cotidiano. E assim vai levando: sem graça, sem cor, sem sabor, sem gosto. Sem gostar. Morta-viva!
Até que o tempo, quase dois anos, revela na vida da nossa protagonista o quarentão doutor Teodoro Madureira, farmacêutico por vocação e profissão. Após se dedicar a uma mãe doente que viera a falecer, doutor Teodoro vive para sua farmácia e à Orquestra de Câmara Filhos de Orfeu, na qual toca o instrumento fagote.
Ela já o conhecia, mas nunca havia reparado nele. Teodoro é um homem sério, responsável, organizado, trabalhador, fiel, tímido, metódico. Nem se Vadinho voltasse ao mundo e nascesse do avesso seria parecido com ele. O doutor surge como o porto seguro de Dona Flor. Não só no aspecto financeiro, mas principalmente no sentimental. A professora de culinária se apaixona por ele. Teodoro leva Flor à paz. E ao altar.
“Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar” é o lema do farmacêutico. O esposo perfeito, que lhe garante uma lua-de-mel numa pousada, uma vida tranquila e confortável, uma casa organizada e tem um ótimo relacionamento com a sogra, é muito mais do que ela pediu a Deus. Desconfia até que não acrescentou nada a sua vida.
No entanto, a esposa sente que a timidez do marido faz com que ele tenha uma série de barreiras entre quatro paredes. E acaba, momentaneamente, acostumando-se com isso. A marca deste romance é a estabilidade. Teodoro a ama cegamente e eles vivem um casamento romântico e pacato. Estável. Linear. Entediante...
Eis que o sobrenatural dá o ar da graça
E quem pode com um coração dividido entre dois amores? Nem mesmo a morte! Após um ano casada com Teodoro, Flor quer o finado marido de volta. E recebe a visita de Vadinho! O morto surge, nu e debochado, para lhe tirar o juízo de mulher direita.
Ela reluta em acreditar, mas fica novamente caidinha na conversa do malandro. Mesmo depois de morto, ele ainda balança seu coração. A professora de culinária diz que não pode trair seu marido. Nem mesmo com... seu outro marido!
Neste momento da trama, a influência do candomblé na cultura baiana prevalece. Toda a magia da Bahia fica a serviço da literatura de Jorge Amado, tornando totalmente verossímil esse triângulo amoroso absurdo.
Um romance sobrenatural!
Dona Flor quase fica louca de tanta confusão que Vadinho arruma. Ô espírito sem luz! Mas está feliz, como nunca em toda sua vida. Porém, preocupa-se com a dimensão que as coisas vão tomando. E recorre às mães de santo para fazerem com que Vadinho volte para o lugar dos mortos, de onde nunca deveria ter saído. Nunca?!
Flor se arrepende, e clama a todas as forças espirituais que mantenham Vadinho ao seu lado. E ela ao de Teodoro. A vida segue. E Dona Flor termina seguindo a procissão com seus dois maridos, o vivo e morto.
No filme, a cena é finalizada com trechos da canção “O que será? (à flor da terra)”, de Chico Buarque.
“O que será, que será?/ que vive nas ideias desses amantes/
Que cantam os poetas mais delirantes/ Que juram os profetas embriagados/ Que está nas romarias dos mutilados/ Que está nas fantasias dos infelizes/ Está no dia a dia das meretrizes/ No plano dos bandidos, dos desvalidos/ Em todos os sentidos, o que será, que será?/ O que não tem decência, nem nunca terá/ O que não tem censura, nem nunca terá/ O que não faz sentido.”
Um coração pode se dividir entre dois amores? Quem sabe? Flor está feliz, muito feliz, inacreditavelmente feliz. Completa!
“Ah, se a juventude que esta brisa canta/ ficasse aqui comigo mais um pouco/ Eu poderia esquecer a dor/ De ser tão só, para ser um sonho.”
Ficha técnica:
Livro “Dona Flor e seus dois maridos” (1966) – Jorge Amado
Filme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976) – Bruno Barreto, da obra de Jorge Amado
Minissérie “Dona Flor e seus dois maridos” (1998) – Dias Gomes, da obra de Jorge Amado
Peça “Dona Flor e seus dois maridos” (2007) – Pedro Vasconcelos, da obra de Jorge Amado
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