sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

.: Suicidas Não Mentem, um conto de Helder Miranda

Por Helder Miranda
Em janeiro de 2015*


Não, não posso acreditar", pensou ele, ofegante, ao dar partida no conversível prata. Evidente que não voltaria. Estava desesperado: antes de entrar no casebre era um homem que havia se abandonado à própria sorte. Pouco antes de empurrar a porta e correr para o matagal, na boca da noite, tornara-se um assassino.
***

Aos 35 anos, Aurélio era alguém que nunca havia transgredido em nada. Empresário bem-sucedido no ramo da agronomia, viu sua vida dar uma guinada quando a exuberante Marcela entrou nela. Desde então, abandonara a vida social agitada, as mulheres e os amigos para se dedicar exclusivamente a ela.

Aurélio e Marcela, o protótipo de casal perfeito. Do tipo que se reúne na mesa durante um rico café da manhã, em que não tocam em quase nada, para discutir assuntos banais. O casal modelo, com despedidas repletas de beijos na testa e sorrisos de margarina. Aurélio e Marcela, pele branca, cabelos e olhos castanhos, parecidos fisicamente exceto pela altura, detinham o tipo físico exato para fazer pessoas se apaixonarem e atrair olhares convidativos ao adultério.

Como sempre, ela dava sinais de querer ir embora antes do previsto, pois dizia a ele que não aguentava ficar muito tempo no universo dos colunáveis. Não importava se eram confraternizações ou eventos sociais. A passagem de Marcela pelos lugares era tão discreta e reservada a ponto de torná-la inacessível aos outros. Quando Aurélio questionava sobre a opinião alheia a respeito dela, havia sempre uma desconversa desagradável, nitidamente porque não tinham uma opinião formada a respeito.

O objetivo de enriquecer para dar àquela mulher uma vida de rainha fez com que Aurélio renunciasse ao sonho de viver da escrita para, antes, se estabilizar. Ele esqueceu da escrita para abrir em sociedade uma microempresa que, aos poucos, se transformou em império. Acomodou-se na vida que levava, mas personagens continuavam adormecidas enquanto suas histórias evoluíam sem ser passadas para o papel.

Conheceram-se sob um toldo de uma cafeteria já fechada no Centro de São Paulo, em noite chuvosa. Aurélio, que acabara de fazer várias horas extras no emprego, correu para se abrigar ali. Ao ver uma moça bonita ao seu lado, puxou assunto e sugeriu dar uma carona de guarda-chuva até a casa dela. “Você mora perto?”, questionou ele. Desde o princípio, as respostas de Marcela sempre coincidiam com o que ele esperava.

Tímidos, pelo caminho emplacaram uma discussão sobre guarda-chuvas: segundo Marcela, o único acessório que não evoluíra. Muito mais ousada que Aurélio, foi ela quem tomou a iniciativa: já em frente à sua casa, jogou o guarda-chuva no meio da rua e o beijou, debaixo de chuva.

Nas poucas vezes que saía de casa, Marcela sempre estava acompanhada de Aurélio, que gostava de vê-la trajada com vestidos indianos de cores discretas que denunciavam as curvas de uma mulher bonita. Marcela tinha o hábito de escrever cartas enormes e sentimentais ao marido, amigos e parentes póstumos. "Querida, não sofre tanto", alertava Aurélio. Ela, no entanto, se sentia frustrada pela recusa de grandes editoras em publicar seus romances. Ele sabia disso. Também tinha consciência de que a esposa era esforçada, mas sem talento nenhum, por esse motivo pagava pelas publicações. Esses livros mal-escritos acabavam entulhados no quarto de hóspedes, à espera de serem distribuídos nos eventos da empresa, ou em aniversários de parentes e amigos.

Durante a festa de fim de ano na sede da empresa, regada a champanhe e música eletrônica, Aurélio distribuía, envergonhado, exemplares do último romance. A mulher, que alegara dor de cabeça na véspera, pediu para que o marido fosse ao evento sem ela. Entre os convidados, estava uma mulher com colorida apenas na boca, de um vermelho sangria, que o observava à espera do momento certo para abordá-lo. Toda em preto e branco, chamava-se Evangeline e, após muita hesitação, tocou nas costas de Aurélio e, insinuante, pediu um exemplar.

O momento mais lírico de sua vida, até então, foi quando a viu, ali, durante o horário de almoço. Sentada e impassível, lia algum livro. Cogitou a hipótese de ficar parado, apenas a olhar aquela mulher, mas não demorou para que ela o percebesse e iniciasse uma conversa. Evangeline contou que precisava de uma história de amor para continuar viva. Aurélio, um pouco chocado com a confissão de que ela havia estudado detalhadamente como se aproximar dele, continuou a escutá-la com um encantamento crescente. “Vou libertá-lo”, ela disse, presa na conspiração que havia tramado. 

Passaram a tarde juntos e, pela primeira vez, sentiu a sensação de quebrar regras. No íntimo, sabia que a vida que levava havia acabado. Questionou como podia se deixar envolver em tão pouco tempo por outra pessoa, sem levar em conta os sentimentos de alguém tão presente como Marcela. Concluiu que as respostas menos óbvias estariam nos pormenores.

"Ela foi uma atriz", lamentava-se Aurélio algum tempo depois ao relembrar Evangeline. Passou a ignorar Marcela e sequer se concentrava no trabalho. "Tira umas férias", aconselhou Camilo, seu sócio. Aurélio, então, contou o que se passava e, internamente, Camilo comemorou a constatação de que a farsa do casal perfeito estava acabando. "Até que enfim você encontrou uma mulher de verdade", exteriorizou.

O reencontro ocorreu por muita insistência dele. Evangeline não retornava suas ligações insistentes, com o intuito de que ele fizesse justamente o que esperava. Ao revê-la, foi brusco em suas carícias, que se tornaram hematomas, nos beijos, que tiraram sangue dela, e no sexo animalesco e sem preliminares, que se assemelhou a um estupro. Tarde demais, pensou ele, Evangeline era a droga necessária para sua calmaria. Mesmo sentida com Aurélio pelas atitudes dele no último encontro, ela estava bem-intencionada. Sabia que era capaz de levá-lo à overdose, se fosse preciso, e prosseguiu em seu plano até propor a ele o golpe final.

"Vá de carro ao ponto mais alto da colina à Oeste de sua casa, entre no casebre e converse com uma senhora chamada Fortuna. Quando você sair de lá, poderá fazer de mim o que quiser".

Aurélia seguiu para casa disposto a terminar sua relação com Marcela. Na varanda, esperou que ela sentasse ao seu lado para sentir a brisa. Puxou um assunto banal sobre a felicidade e chorou, deitado em seu colo, antes de entregar a ela um cartão de banco. "Vendi minha parte na empresa para o Camilo. Aqui tem dinheiro suficiente para que você viva honestamente para o resto da vida. Vou embora", disse ele.

Antes de qualquer reação de Marcela, Aurélio se vestiu com o terno azul-marinho, o primeiro que encontrou. Correndo, desceu as escadas e pegou a chave do conversível em cima da mesa. Ele não sabia dirigir, nem o que iria fazer, mas já havia colocado o cinto de segurança e apertado o controle remoto para levantar os portões da garagem. Enquanto tentava dar partida no carro, Marcela se jogou na cama, abafando um grito com o rosto apertado contra o travesseiro. Sabia que a sua história acabaria ali.

"Você sabe dirigir esta porcaria", disse Aurélio em voz alta ao tentar se convencer. Suava frio, lembrou da reprovação nas aulas de auto-escola e de todas as aulas desastrosas que tivera. Do menino que ele foi um dia, em estado de choque, preso a carcaças de um veículo capotado e salvo por alguém que nunca mais lembraria o rosto. O jovem que testemunhou os ossos saltados e a pele arrancada dos braços da mãe, embaixo de um veículo dirigido com irresponsabilidade por alguém que gostava de velocidade. Voltou ao presente e, depois de hesitar, ligou o carro e partiu, com o veículo cambaleante. Rumava para o Oeste.

Tenso, passou para a segunda, terceira marcha e seguiu pela estrada. Lembrou-se de uma das brincadeiras de Marcela, enquanto o motorista dirigia no banco da frente: mexer em seu pênis, ereto, como se fossem as marchas do carro.

Enquanto o motorista fingia não perceber, Aurélio, constrangido, tentava disfarçar. Durante quatro dias, dirigiu sem dormir, tomar banho ou comer, enquanto cantava exaustivamente – entre desafinado e eufórico – trechos de uma mesma cantiga de roda perdida em suas lembranças de menino.

Parou apenas para encher o tanque em um posto de gasolina, e seguiu adiante até não saber em que lugar estava, com a mesma roupa e a barba cerrada, características que davam certo ar de atitude ao homem que havia perdido a dignidade. Enquanto se aproximava do local indicado por Evangeline, aproveitou para, diante da paisagem, gritar, atirar pedras nos abismos, mostrar o dedo médio a outros motoristas, arrancar galhos de árvores para destruir placas, tudo o que não teria coragem de fazer antes de se sentir livre.

Quando finalmente pareceu avistar o casebre no topo da colina, constatou que o carro, habitualmente dirigido por motoristas particulares, sofrera uma pane. Na noite escura, desceu do veículo para buscar ajuda. De longe, o casebre emitia uma luz fraca. Seguiu para lá e, quanto mais andava pela trilha lamacenta e escorregadia, mais se arrependia de se aventurar naquele local. Tropeçou, cortou-se no matagal, desviou-se de cobras, rasgou o terno, ralou o joelho, solicitou ajuda a homens encapuzados que não o respondiam, apenas apontavam para o casebre.

Quando chegou perto da pequena construção, um homem tentou barrá-lo, mas foi surpreendido pelo grito de uma velha muito enrugada e queimada de sol. "Deixem ele em paz! Eu estava à sua espera. Foi Evangeline quem o mandou até aqui!". Aurélio, não teve tempo de pedir ajuda. Quando voltou a si, estava deitado no chão sujo do casebre, cheio de folhas secas e lamacentas, com a cabeça repousada no colo da mulher, chamada Fortuna.

O olhar dela era de um azul tão puro que ofuscava as marcas de alguém que, há tempos, havia desistido de entender a vida. A aparência dela assustou Aurélio a ponto dele fingir que continuava desacordado. "Ah, essas pequenas rejeições que transformam o homem em um cachorro manco...”, lamentou ela.

Ao perceber que Aurélio recobrara a consciência, Fortuna se levantou e repousou a cabeça dele no chão. Com os olhos semi-cerrados, viu que as mãos dela estendiam um copo de água, repleto de limo. "Sei que está acordado, e que você não sabe nada sobre a vida. Anda, beba a água, senão acaba desidratado”, disse. Ignorando a sujeira do copo e sem necessidade de fingir, Aurélio abriu os olhos e bebeu a água.

"Meu carro quebrou na estrada, preciso de ajuda", disse. A senhora intercedeu, impaciente. "Você só sairá daqui quando escutar toda a verdade". Fortuna prosseguiu. "Você tem de escolher entre realidade e sonho. Está preso entre um e outro, mas hoje ficará ciente e poderá se libertar". Brusco, Aurélio se levantou. "Não quero escutar nada!". Ela o segurou, com força incomum para uma senhora. "Sua história foi longe demais, você tem de saber!", balbuciou lentamente em tom de voz ameaçador. Com os braços apertados pelas mãos fortes de Fortuna e receoso do que poderia acontecer, Aurélio se sentou e bebeu, resignado, outro gole de água.

"Você passará noites de frio, percorrerá trilhas perigosas e enfrentará tempestades. A calmaria virá quando aceitar a sua verdade", explicou. As palavras caíam como um soco no estômago de Aurélio, tudo começava a se encaixar. "Quando você voltar para casa, Evangeline estará à sua espera. Marcela sairá de sua vida se você permitir. Evangeline é uma mulher de carne e osso, está apaixonada por você e entrou em sua vida para libertá-lo de algo que criou. Marcela só existe para você. As pessoas tentaram alertá-lo várias vezes, de diversas maneiras, mas você nunca aceitou. Tão teimoso a ponto de forçar pessoas a se adaptarem à sua realidade".
"E as histórias? Ela escreve livros!", tentou justificar. Fortuna balançou a cabeça. "Assim como Marcela, os livros são criação sua. Já que não tem talento suficiente para publicá-los, sua esposa teria dupla função: além de desfocar sua solidão, o frustrado não seria você", disse, ao abrir a porta. "Vá em paz e decida-se entre realidade e ilusão".

Aurélio caminhou alguns passos, para hesitar em seguir em frente. Avistou centenas de homens encapuzados que bebericavam e conversavam em uma confraternização velada. Anos da vida dele foram roubados e naquele momento não saberia responder se fora por culpa dele, ou de Fortuna, uma desconhecida que, sem o cuidado sequer de ter se apresentado, sentiu-se no direito de contar uma verdade indesejada.

Voltou para o casebre disposto a se vingar, queria sua vida de volta, mesmo que naquele momento ela não fizesse mais sentido. Agressivo, exigiu que Fortuna desmentisse tudo o que havia dito e, em uma tentativa desesperada, a segurou pelos braços e a sacudiu com toda força. Impassível, ela o olhava fascinada, e soube naquele exato momento que seria assassinada. Não reagiu, nem gritou. Em sua crise de nervos, incapaz de medir sua força, Aurélio a esganou sem intenção.

Depois de abandonar a mulher no chão, correu para a calada da noite. Tornara-se um assassino. Conseguiu escapar sem ser visto porque escorregou na trilha e se escondeu no matagal. Ficou ali, sem se mover até não escutar nenhum passo dos homens que rodeavam a casa e ainda desconheciam a morte de Fortuna. Tentaria recuperar o tempo perdido. Marcela nunca existira. Evangeline, que planejou tudo para salvá-lo, o esperava sem saber se, ciente da verdade, seria aceita como esposa. Livre do trauma, cansado para dirigir e com algum dinheiro no bolso, voltaria de Táxi. Não pensaria mais sobre os problemas do passado, concluiu que vida é muito prática para perder tempo com conjecturas.


Escrito em 2006, por Helder Miranda.

0 comments:

Postar um comentário

Deixe-nos uma mensagem.

Tecnologia do Blogger.