quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

.: Livro de Henfil é relançado 30 anos após primeira edição

Considerado o mais brilhante cartunista de sua geração, Henfil (1944-1988) tem seu último livro – “Como se faz humor político” - relançado pela Editora Kuarup, 30 anos depois da primeira edição. A obra é uma entrevista de Henrique de Souza Filho, o Henfil, concedida ao jornalista e crítico musical Tárik de Souza, que continua pertinente ao momento político atual.

O livro revela os detalhes do ofício desse craque do humor político brasileiro que criou personagens clássicos, como os Fradinhos e a Graúna. Seu relançamento coincide com o aniversário de 70 anos de nascimento do humorista e traz prefácio assinado pelo jornalista e escritor Sérgio Augusto.

Em 1984, a Editora Vozes, em parceria com o IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), encomendou a Henfil um livro com o título “Como se faz humor político”, para integrar a Coleção Fazer. Sempre muito atarefado, ao invés de redigir o texto, convidou o jornalista e amigo Tárik de Souza para entrevistá-lo sobre o assunto em questão. Tárik conta que já havia entrevistado o cartunista várias vezes, sendo “quase um especialista na função”.

“Gravador ligado, o que rola neste livro é quase um improviso jazzístico. Não houve pauta, nem quaisquer perguntas combinadas previamente. Saímos tabelando sem deixar a bola cair até o final - que aconteceu exatamente como está no texto. O trabalho de edição foi mínimo: o que saiu do gravador já era o livro. Não fiquei surpreso ao reler “Como se faz humor político” 30 anos depois, e encontrá-lo ainda denso e pertinente. Em parte, porque mudam os nomes, circunstâncias e as mazelas continuam suplantando as virtudes humanas. Mas na maior parte, porque o Henfil é craque. E sua arte - e o modo de fazê-la - atemporal.” Escreveu Tárik na apresentação do livro.

Título: “Como se faz humor político”
Autor: Henfil
Depoimento a Tárik de Souza
Editora: Kuarup - www.kuarup.com.br
Número de páginas: 128. Tamanho: 15 x 23 cm . Peso: 185 g
Edição: 1ª (reedição). Ano: 2014



O MOLEQUE ENGAJADO – prefácio, por Sérgio Augusto

Já me perguntei mais de uma vez e não me canso de repetir: o que estaria fazendo hoje o inquieto Henrique de Souza Filho? Se em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais, o setentão Henfil — o mais singular, brilhante, moleque e engajado cartunista de sua geração —, provavelmente estaria atirando em todas as direções, testando as mídias disponíveis; quem sabe confinado a um site na internet onde pudesse dar vazão ao seu humor malicioso, anárquico, raivoso, grotesco – e politicamente incorreto pelos padrões de hoje?

Infelizmente, não podemos senão imaginar o tratamento que suas charges, seus cartuns e quadrinhos teriam dado à eleição direta para presidente no Brasil (pela qual tanto lutou), à Guerra do Golfo, à invasão do Iraque e demais desatinos cometidos pelos dois Bush, ao desgoverno Collor, à queda do Muro de Berlim, à ascensão de Lula e Obama à Presidência, à histeria em torno do bug do milênio, à montante evangélica, à praga do celular, ao processo do mensalão, ao desperdício de dinheiro público para atender ao “padrão Fifa”, à instalação das upps nas favelas cariocas, ao estrago causado pelos vazamentos do WikiLeaks, aos protestos de rua de 2013 – eventos, fenômenos e epifenômenos que ele, morto há 25 anos, não pôde acompanhar, celebrar ou, como era mais do seu feitio, escrachar.

Que novos personagens teria criado? E quais dos antigos teria abandonado? Os Fradinhos? A Graúna? (Esta, jamais. Prodígio de design minimalista, pouco mais que um ponto de exclamação, nenhuma outra figura criada por ele superou-a em argúcia, empatia e popularidade.) Desconfio que ele, só de molecagem, teria rebatizado O Preto que Ri de O Afrodescendente que Ri e arrumado outro tipo de paranoico para pôr no lugar do Ubaldo – um petista envergonhado com o partido que ajudara a fundar, por exemplo. Desconfio também que, apesar de mineiro e decepcionado com o PT, Henfil não teria votado em Aécio.

De todas as suas criações, nenhuma, a meu ver, superou a turma da caatinga, formada por um cangaceiro beberrão e machista (Zeferino), um bode intelectual (Orelana), uma graúna (ou melhor, a Graúna) e uma onça anarquista (Glorinha). Num árido cenário de Glauber Rocha - solo crestado pelo sol inclemente, vez por outra adornado por um cacto solitário e o resto de uma ossada - Henfil montou um cordel gráfico astuciosamente subversivo sobre as mazelas do Brasil: a indústria da seca, a desigualdade social, o mandonismo latifundiário, o fundo falso do milagre econômico patrocinado pela ditadura, a censura, a opressão masculina, o crescimento parasitário do Sul Maravilha, e o que mais se prestasse à sátira, à paródia, à alegoria.

Sua criação mais polêmica, porém, foi o metropolitano Cabôco Mamadô. Misto de exu e babalorixá, ele comandava o Cemitério dos Mortos-Vivos, onde só enterrava pessoas que a imprevidência divina ainda mantinha vivas. Impedido de confrontar diretamente os donos do poder concentrou sua ira naqueles que de algum modo serviam ou haviam servido ao regime militar. Antes de enterrar seus mortos-vivos, entregava-os à sanha de um Tamanduá (“a besta do apocalipse que assola nosso torrão”), que se alimentava de cérebros humanos, chupando-os implacavelmente: “Xuip!”. O cantor Wilson Simonal inaugurou a mórbida e pândega sucção. Outras vítimas: Nelson Rodrigues, Gustavo Corção, o animador de TV Flávio Cavalcanti. Até Roberto Carlos teve o miolo chupado.

Para Caetano Veloso sobrou a Patrulha Odara. Contraponto às patrulhas ideológicas, não deixava em paz quem fechasse os olhos ou desse mole para os abusos da ditadura, quem, enfim, ficasse “odara”, neologismo inventado por Caetano Veloso, que Henfil entendia como um convite à abstinência política, para ele, não o maior, mas o único pecado.

HENFIL – perfil, por Tárik de Souza

Mesmo sob a artilharia pesada da ditadura, foi o indômito mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988) o desenhista que mais dialogou politicamente com as massas, a ponto de transformar-se num raro popstar, num ramo onde poucos sobressaem por trás das pranchetas e (hoje) computadores. No tempo em que os estádios, a preços razoáveis, superlotavam e as torcidas ainda digladiavam-se dentro de limites civilizados, seus personagens futebolísticos como o Urubu (Flamengo), Bacalhau (Vasco), Cri-Cri (Botafogo) Pó-pó (Fluminense) foram adotados em substituição aos Popeyes e outros símbolos importados anteriores.

No jornal carioca O Dia, Henfil lançou o personagem Orelhão, que além de servir-se do aparelho de rua mais acessível na era pré-celular, operava como uma espécie de ouvidor das causas populares. Egresso da Juventude Católica e um dos fundadores do PT, Henfil também colaborou intensamente (e de graça, claro) em publicações sindicais. Mas sua projeção nacional ocorreu através do estouro do semanário Pasquim, onde se tornou um dos principais impulsionadores de vendas com sua galeria de personagens agressivos, politizados, humanistas e iconoclastas.

A dupla dialética de Fradins, o “Cumprido” (baseado em seu amigo, o jornalista mineiro Humberto Pereira) reprimido e conservador e “Baixinho” (um indisfarçável auto-retrato), um sádico libertário, nasceram ainda na Belo Horizonte, onde se formou emigrado da periférica Ribeirão das Neves. Na revista Alterosas, o desenhista de bonequinhos pornográficos da oficina, foi compelido a criar personagens, já que o diretor achava seu traço parecido com o do francês Bosc. Mais tarde, o comparariam ao ativista Wolinski, mas o fato é que Henfil desenvolveu um percurso único. Limitado fisicamente pela hemofilia, como seus irmãos, o sociólogo Betinho (imortalizado em “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc), que o influenciou politicamente, e o violonista e compositor Francisco Mário (“Terra”, “Revolta dos palhaços”, “Pijama de seda”), que realizava seu lado musical, ele lutava contra dores diárias. E fazia periódicas transfusões de sangue, que acabariam custando-lhe a vida. O início da epidemia de AIDS desnudou mais uma tragédia da péssima administração da medicina no país, a falta de fiscalização da qualidade do sangue, que acabaria decretando a sentença de morte dos irmãos Souza.

Além dos Fradinhos, protagonistas de uma revista periódica independente de larga tiragem, Henfil criou o cangaceiro Zeferino (publicado inicialmente no Jornal do Brasil), moldado na figura bonachona e um tanto coronelesca do pai, um livre atirador que ocupou diversos cargos, de diretor de penitenciária a agente funerário. Havia ainda o Bode Orellana, o intelectual da tira, que ele ironizava sem dó, inspirado no arisco cantador erudito baiano Elomar. A Graúna, era a personagem feminina da trama, que oscilava entre a submissão e o ativismo. Graficamente, talvez fosse sua mais genial e sucinta criação: o corpo da ave era pouco mais que um ponto de exclamação. Ainda no Pasquim, Henfil disparava sua máquina inventiva sem cessar. Ilustrava uma tira de crítica musical e paria personagens que operavam como uma espécie de termômetro do momento político, à medida que a ditadura avançava. Do didático Caboco Mamadô, que no cemitério dos mortos-vivos enterrava os colaboracionistas, ao Tamanduá Chupador de Cérebros, a Patrulha Odara (em contraponto às patrulhas ideológicas) e o espinhoso Ubaldo, o Paranóico. Bolado com o redator destas linhas, que o nomeou num final de semana, em Arraial do Cabo , ele surgia em sincronia com o assassinato de nosso amigo e colega jornalista Wladimir Herzog, o Wlado, nos porões do DOI-CODI paulistano. A paranóia grassava. E, infelizmente, não era imaginária.

O enorme sucesso de Henfil também estava associado à sua absurda capacidade de trabalho. E para cada nova frente aberta ele criava uma linguagem, como ao preencher a página final da revista Isto É com as “Cartas da Mãe”. Utilizando a foto da própria D. Maria Souza como uma espécie de escudo, ele desafiava os poderosos da vez, incluindo o então presidente-general, João Batista Figueiredo, a quem chamava de primo por conta de um longínquo parentesco. Criou a anárquica TV-Homem, dentro da TV Mulher, apresentada pela jornalista Marília Gabriela, em plena onipotente Globo. No teatro, escreveu a “Revista do Henfil”, em parceria com Oswaldo Mendes , musical com alguns de seus personagens. O ator Paulo César Pereio ficou com o papel de Bode Orelana, Sonia Mamede encarnou a Graúna, Rafael de Carvalho , Zeferino, e Sergio Ropperto, Ubaldo, o paranóico. Entre a chanchada e o protesto, a peça teria a trilha lançada em disco. No cinema, dirigiu o não menos inconformista “Tanga _ Deu no New York Times”, a partir da experiência de tentar publicar seus quadrinhos nos EUA. Aceitos, a princípio, pelos sindicatos que os distribuíram para dezenas de jornais, os Fradinhos (The Mad Monks) logo foram rechaçados pelo conservadorismo da pátria da (estátua da) liberdade, sob a pecha de “sicks” (doentios).

Mas, de certa forma, anteciparam os corrosivos e hoje abençoados Simpsons. Das cartas que enviava para os amigos a partir da matriz, escreveu o livro “Diário de um Cucaracha” (Editora Record, 1983), do ponto de vista de um subdesenvolvido no chamado Primeiro Mundo. Da mesma forma, uma viagem à China, ainda comunista e excomungada pelo regime militar, rendeu outro “best-seller” literário, o histórico “Henfil na China (antes da Coca-Cola)”. O livro saiu em 1980 pela Codecri (Comando de Defesa do Crioléu), editora que fundou dentro do Pasquim, e se tornou propulsora das finanças do jornal. Mais que uma sigla, que os políticamente corretos poderiam hoje interpretar mal, ao pé da letra, o título era uma espécie de divisa de quem deu a vida em defesa dos oprimidos - crioléus de todas as cores, gêneros e credos.

KUARUP MÚSICA: Criada em 1977, no Rio de Janeiro , a Kuarup é considerada uma das principais gravadoras independentes do Brasil e acumulou diversas premiações, incluindo dois Grammy Awards. Especializada em música brasileira de alta qualidade, o seu acervo concentra a maior coleção de Villa-Lobos em catálogo no país, além dos principais e mais importantes trabalhos de choro, música nordestina, caipira e sertaneja, MPB, samba e música instrumental em geral. A Kuarup passa a fazer parte do mercado editorial com o lançamento do livro Os Outubros de Taiguara, obra dedicada ao cantor mais censurado da MPB.

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